Cabeças de Repolho

sex, 20/04/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Uma das discussões mais sem fundamento da biologia talvez seja a questão de quando começa a vida. Sem fundamento porque não sabemos nem definir direito o que é vida, quanto mais tentar adivinhar quando ela começa. Numa visão reducionista, identificar o início da vida permitiria ao homem encaixá-la dentro da sua própria ética, consentindo sua manipulação, seja no cultivo de células-tronco embrionárias, seja na questão do aborto.

Filosofias à parte, a resposta de muitos neurocientistas para o início da vida é, em geral, que ela começaria junto com a formação do sistema nervoso. Assumindo “vida” como “vida consciente”, acabam passando para a sociedade a errônea mensagem de que organismos sem um sistema nervoso não estariam vivos. Esse seria o caso de milhares de microorganismos e também das plantas. Mas, afinal, não teriam as plantas um sistema nervoso, responsável pela capacidade vegetal de perceber e interagir com o ambiente?

O fato das plantas não terem um sistema nervoso parecido com nosso não significa que elas não tenham nenhum. Pelo contrário, se tivessem, seria mais provável que fosse diferente do nosso, talvez até usando estratégias semelhantes, como sinapses e neurotransmissores.

Há três anos, o campo das ciências vegetais assistiu ao nascimento e à propagação de uma idéia provocativa – a neurociência vegetal. Seus seguidores afirmam que as plantas possuem um sistema nervoso, sinapses e uma estrutura equivalente a um cérebro localizada em algum lugar perto das raízes. Com isso tudo, afirmam que as plantas teriam consciência e seriam seres inteligentes (Brenner e colegas, “Trends in Plant Science”, 2006).

A idéia da inteligência e consciência vegetal vem do fato de que as plantas seriam capazes de sentir o ambiente e direcionar esforços na busca ativa por nutrientes, “decidir” onde estocá-los no organismo, quando e quais partes devem crescer ou senescer (envelhecer), quando e como se reproduzir, como se preparar para um eventual ataque (feito, por exemplo, por vírus e microorganismos) e, finalmente, como transmitir sinais químicos a outros organismos na mesma região. Todas essas respostas devem levar em consideração alterações ambientais, como quantidade de nutrientes, disponibilidade de luz, acesso a água, vento e temperatura. Ora, toda planta faz isso.

Argumentos que suportam essa teoria incluem a propagação de impulsos elétricos em plantas e a presença de substâncias parecidas com neurotransmissores animais, como o glutamato. Plantas também possuem genes que codificam receptores para essas moléculas, indicando que esses genes seriam conservados em animais e plantas. Essas evidências sugerem uma forma de comunicação intracelular que não seja por difusão química (um tipo de comunicação celular encontrado em plantas).

De acordo com a neurociência vegetal, o transporte da auxina (um hormônio vegetal ligado ao crescimento e polarização do organismo) poderia ser realizado através de vesículas semelhantes às que são usadas na transmissão sináptica em neurônios animais. Isso porque a auxina, em algumas situações, costuma ficar concentrada em vesículas perto da parede celular, pronta para ser liberada, enviando um sinal para a próxima célula e assim por diante, até atingir distâncias relativamente longas.

A idéia de um sistema nervoso em plantas pode ter forte impacto social. Para uns, as plantas representam uma justificativa para uma conduta vegan: só como o que não sente dor. Para outros, plantas são como bichinhos de estimação: pode-se conversar e interagir com elas; seriam sensores do humor humano. Pois bem: não é porque alguns “acham” que as plantas sentem algo é que vamos extrapolar isso para um sistema nervoso organizado. Afinal, semelhanças moleculares entre neurônios e células vegetais não querem necessariamente dizer que a propagação de sinais é a mesma entre células, tecidos ou órgãos.

Você já viu uma samambaia esquizofrênica?
Recentemente, um grupo de 33 cientistas de diversos países publicou um artigo refutando muitas das evidências e do raciocínio por trás da neurociência vegetal (Alpi e colegas, “Trends in Plant Science”, 2007). O principal contra-ataque é que os neurotransmissores não são transportados de célula a célula por longas distâncias, como seria o caso da auxina. Além disso, a evidência de que a auxina usaria vesículas como meio de transporte não tem uma base científica sólida, existindo diversos outros dados que contradizem essa idéia.

Talvez o melhor argumento seja o de que, se houvesse um sistema nervoso em plantas parecido com o de animais, deveríamos também observar distúrbios e síndromes relacionadas com esse tipo de tecido, como a degeneração nervosa, por exemplo.

Admiro muito a coragem de pesquisadores por trás de novos conceitos e idéias, contradizendo o status quo e procurando fazer o conhecimento avançar. No entanto, isso tem de ser feito de forma criativa e com extremo rigor científico. De nada adianta basear-se em analogias superficiais e extrapolações questionáveis. O sucesso de uma nova idéia será sempre medido pela forma como o cientista busca mostrar que está errado.

Gosto também se discute

sex, 06/04/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Nossos sentidos são responsáveis pela geração de uma representação do mundo exterior no interior de nossas mentes. Entender como cada sentido funciona e se interconecta com os outros é desvendar um dos maiores mistérios da neurociência.

No caso do paladar, receptores periféricos (na língua e em toda cavidade orofaríngea) são os responsáveis pelo gosto dos alimentos ou, evolutivamente falando, pela avaliação dos nutrientes e de eventuais substâncias tóxicas na comida. Essa área de pesquisa tem avançado muito, revisando uma série de dogmas nos últimos anos.

Surpreendentemente, apesar de conseguirmos distinguir uma série de gostos diferentes, qualitativamente, tudo que degustamos pode ser divido em apenas cinco sensações distintas: doce, amargo, salgado, azedo e umami (para aqueles não acostumados com a cozinha oriental, esse sabor é semelhante ao do Ajinomoto). Parece muito simples e modesto para explicar todos os gostos? Pode até ser, mas foi suficiente como base de reconhecimento dos componentes essenciais da nossa dieta durante a evolução.

Dessa forma, o gosto doce permite a identificação de alimentos energéticos; o umami permite o reconhecimento de aminoácidos (essenciais para a síntese protéica no organismo); o salgado garante uma dieta balanceada eletroliticamente e o azedo e amargo chamam a atenção para alimentos potencialmente tóxicos ou contaminados.

A identificação dos receptores para esses gostos é recente. Ao colocarmos os alimentos na boca, eles são parcialmente dissolvidos, liberando moléculas que se encaixam em receptores específicos. Talvez por isso mesmo seja difícil de degustar qualquer coisa com a boca seca. Esses receptores são formados por subunidades e ficam localizados em células epiteliais aglomeradas nos botões gustatórios, encontradas em regiões específicas da língua — as papilas gustativas (aquelas microvilosidades que observa-se mesmo a olho nu). Ao contrário do que um enólogo de araque possa dizer, todos os receptores encontram-se igualmente distribuídos na língua – ao contrário do que dizem alguns livros-texto e de certo mito popular, não há evidências de que exista um “mapa” distribuindo os gostos por regiões específicas da língua.

Vale uma observação aqui: para o gosto picante não temos receptores gustativos, a sensação quente da pimenta é ativada por receptores de dor presente em neurônios que inervam a língua, como se eles estivessem reconhecendo altas temperaturas. Um caso de sadomasoquismo gastronômico muito comum entre alguns humanos. Da mesma forma, o sabor refrescante da menta nada mais é do que a sinalização ao cérebro a baixas temperaturas, também através de um termorreceptor. Curioso, não? Mas é assim mesmo que seu creme dental traz uma sensação refrescante, mesmo estando à temperatura ambiente.

Mas então como é que conseguimos distinguir o doce do azedo na mousse de maracujá? Por décadas, o modelo conhecido como “fibras-cruzadas”, onde diversos receptores seriam encontrados numa mesma célula, reinou absoluto. De acordo com esse modelo, a sensação de um determinado gosto seria o resumo de diferentes sinais nervosos capturados por diversos receptores numa mesma célula epitelial, sinalizando a neurônios a ela conectados. Hoje em dia esse modelo está sendo seriamente desafiado através de novos dados que põem em discussão a exata localização desses receptores.

Um dos precursores de uma nova hipótese é o cientista chileno Charles Zuker, hoje radicado na Califórnia. Zuker e seu time de pesquisadores estão utilizando técnicas de biologia molecular para identificar, clonar e manipular os receptores gustativos em modelos animais. Aparentemente, variações genéticas nos diversos receptores de gosto entre indivíduos podem resultar em capacidade diferencial de detectar sabores.

Para fortalecer essa idéia, o grupo se aproveita da capacidade diferencial das espécies (humanos x camundongos) de discernir gostos. Por exemplo, ao contrário dos humanos, camundongos não possuem uma subunidade do receptor ao doce, chamada T1R2. A falta desse gene restringe o espectro de discernimento doce nos roedores, fazendo com que sejam incapazes de reconhecer adoçantes sintéticos como o aspartame. Ao introduzir o gene humano T1R2 no genoma de camundongos, eles passaram a ter uma preferência ao doce semelhante à dos humanos, chegando até a gostar de Diet Coke (Zhao e cols. Cell 115, 255-266, 2003).

O trabalho de Zuker suporta a idéia que, ao contrário do modelo de fibras-cruzadas, cada célula codifica para um tipo específico de receptor. Sua ativação seria suficiente para enviar sinais exclusivos ao cérebro com amplitudes comparáveis à concentração das moléculas dissolvidas na saliva. Essa descoberta permitirá, num futuro próximo, estabelecer a conexão neural de cada linha definida de informação que liga a língua ao cérebro, visualizando onde e como cada sinal combina-se com os outros no circuito, fornecendo a percepção de gosto e sabor.

Com isso em mãos, poderemos incluir a influência dos sinais recebidos de outros sistemas sensoriais, como o olfato e a visão, facilitando a compreensão dos mecanismos neurais do paladar. A minuciosa observação desse sistema será fundamental para entender certos comportamentos culturais humanos relacionados com a dieta. A ciência é mesmo saborosa para aqueles que tem os olhos maiores que a boca!



Formulário de Busca


2000-2015 globo.com Todos os direitos reservados. Política de privacidade