Cabeças de Repolho
Uma das discussões mais sem fundamento da biologia talvez seja a questão de quando começa a vida. Sem fundamento porque não sabemos nem definir direito o que é vida, quanto mais tentar adivinhar quando ela começa. Numa visão reducionista, identificar o início da vida permitiria ao homem encaixá-la dentro da sua própria ética, consentindo sua manipulação, seja no cultivo de células-tronco embrionárias, seja na questão do aborto.
Filosofias à parte, a resposta de muitos neurocientistas para o início da vida é, em geral, que ela começaria junto com a formação do sistema nervoso. Assumindo “vida” como “vida consciente”, acabam passando para a sociedade a errônea mensagem de que organismos sem um sistema nervoso não estariam vivos. Esse seria o caso de milhares de microorganismos e também das plantas. Mas, afinal, não teriam as plantas um sistema nervoso, responsável pela capacidade vegetal de perceber e interagir com o ambiente?
O fato das plantas não terem um sistema nervoso parecido com nosso não significa que elas não tenham nenhum. Pelo contrário, se tivessem, seria mais provável que fosse diferente do nosso, talvez até usando estratégias semelhantes, como sinapses e neurotransmissores.
Há três anos, o campo das ciências vegetais assistiu ao nascimento e à propagação de uma idéia provocativa – a neurociência vegetal. Seus seguidores afirmam que as plantas possuem um sistema nervoso, sinapses e uma estrutura equivalente a um cérebro localizada em algum lugar perto das raízes. Com isso tudo, afirmam que as plantas teriam consciência e seriam seres inteligentes (Brenner e colegas, “Trends in Plant Science”, 2006).
A idéia da inteligência e consciência vegetal vem do fato de que as plantas seriam capazes de sentir o ambiente e direcionar esforços na busca ativa por nutrientes, “decidir” onde estocá-los no organismo, quando e quais partes devem crescer ou senescer (envelhecer), quando e como se reproduzir, como se preparar para um eventual ataque (feito, por exemplo, por vírus e microorganismos) e, finalmente, como transmitir sinais químicos a outros organismos na mesma região. Todas essas respostas devem levar em consideração alterações ambientais, como quantidade de nutrientes, disponibilidade de luz, acesso a água, vento e temperatura. Ora, toda planta faz isso.
Argumentos que suportam essa teoria incluem a propagação de impulsos elétricos em plantas e a presença de substâncias parecidas com neurotransmissores animais, como o glutamato. Plantas também possuem genes que codificam receptores para essas moléculas, indicando que esses genes seriam conservados em animais e plantas. Essas evidências sugerem uma forma de comunicação intracelular que não seja por difusão química (um tipo de comunicação celular encontrado em plantas).
De acordo com a neurociência vegetal, o transporte da auxina (um hormônio vegetal ligado ao crescimento e polarização do organismo) poderia ser realizado através de vesículas semelhantes às que são usadas na transmissão sináptica em neurônios animais. Isso porque a auxina, em algumas situações, costuma ficar concentrada em vesículas perto da parede celular, pronta para ser liberada, enviando um sinal para a próxima célula e assim por diante, até atingir distâncias relativamente longas.
A idéia de um sistema nervoso em plantas pode ter forte impacto social. Para uns, as plantas representam uma justificativa para uma conduta vegan: só como o que não sente dor. Para outros, plantas são como bichinhos de estimação: pode-se conversar e interagir com elas; seriam sensores do humor humano. Pois bem: não é porque alguns “acham” que as plantas sentem algo é que vamos extrapolar isso para um sistema nervoso organizado. Afinal, semelhanças moleculares entre neurônios e células vegetais não querem necessariamente dizer que a propagação de sinais é a mesma entre células, tecidos ou órgãos.
Você já viu uma samambaia esquizofrênica?
Recentemente, um grupo de 33 cientistas de diversos países publicou um artigo refutando muitas das evidências e do raciocínio por trás da neurociência vegetal (Alpi e colegas, “Trends in Plant Science”, 2007). O principal contra-ataque é que os neurotransmissores não são transportados de célula a célula por longas distâncias, como seria o caso da auxina. Além disso, a evidência de que a auxina usaria vesículas como meio de transporte não tem uma base científica sólida, existindo diversos outros dados que contradizem essa idéia.
Talvez o melhor argumento seja o de que, se houvesse um sistema nervoso em plantas parecido com o de animais, deveríamos também observar distúrbios e síndromes relacionadas com esse tipo de tecido, como a degeneração nervosa, por exemplo.
Admiro muito a coragem de pesquisadores por trás de novos conceitos e idéias, contradizendo o status quo e procurando fazer o conhecimento avançar. No entanto, isso tem de ser feito de forma criativa e com extremo rigor científico. De nada adianta basear-se em analogias superficiais e extrapolações questionáveis. O sucesso de uma nova idéia será sempre medido pela forma como o cientista busca mostrar que está errado.