Príons e os italianos que não dormiam

sex, 23/03/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Recentemente participei de uma conferência organizada pelo The Science Network sobre os mecanismos do sono (Waking Up to Sleep). Curiosamente, não sabemos porque dormimos mas, paradoxalmente, sabemos que precisamos dormir. A falta de sono é letal. Experimentos em roedores mostram que animais mantidos acordados por um período longo de tempo apresentam dificuldade em manter a temperatura corpórea (com suor excessivo ou sudorese), lesões na pele, tremedeira, constipação, falta de apetite, fadiga crônica, perda de peso, aumento da pressão arterial e lesões no cérebro, levando-os à morte em algo em torno de 2 a 4 semanas.

Em humanos não sabemos exatamente as conseqüências da falta de sono. O adolescente americano Randy Gardner detém o recorde de 11 dias sem dormir. Após esse período, ele apresentava clara redução na coordenação motora, mas recuperou-se depois de 14 horas seguidas de sono. “Foi como renascer” — disse ele em uma entrevista. O estudo do sono é importante, pois nos permite compreender mais sobre a fisiologia humana e como nosso corpo reage em condições extremas. É o caso das longas horas de trabalho dos controladores de vôo, motoristas e médicos. De acordo com o trabalho de Charles Czeisler (Harvard Medical School), médicos em longos plantões aumentaram o número de erros em diagnósticos que levaram a morte do paciente em 464%!

Doenças genéticas relacionadas a distúrbios do sono são raras. A Insônia Familiar Fatal (IFF), como o próprio nome sugere, é uma doença hereditária. Estima-se que existam apenas 200 famílias portadoras dessa doença no mundo e que provavelmente apareceram de forma independente, esporádica. Portadores da doença morrem por falta de sono, de forma semelhante ao que acontece com os roedores. Os sintomas começam por volta dos 50 anos: o corpo perde a capacidade homeostática e não regula direito a temperatura, causando o suor excessivo. A pessoa passa a dormir cada vez menos, acumulando fadiga e irritação. Tentam dormir fechando os olhos, mas o corpo não deixa, alcançando estados de exaustão imensa, além da compreensão humana. A doença é cruel, pois a pessoa está acordada e lúcida, totalmente ciente do que está acontecendo e da evolução de seu estado. Pior, sabe que vai morrer em questão de meses após a identificação dos primeiros sintomas.

Uma dessas famílias afetadas fica em Veneto, região da Itália perto de Veneza. Por dois séculos, essa família observou a morte de um terço de seus membros. Morreram todos de IFF. As origens da doença eram obscuras até que alguns anos atrás, Ignázio, um jovem médico que se casou com uma das moças da família, decidiu investigar a origem dessa doença misteriosa. Na Itália, os registros de nascimento e morte, ficam guardados em igrejas locais, com acesso restrito. Convencer os padres a bisbilhotar esses documentos não é fácil — eu mesmo tive que assistir diversas missas num mesmo dia quando em busca de documentos sobre a origem da minha família.

Ignázio tinha outra técnica: convencia os padres a deixá-lo tocar órgão na igreja e assim conseguia a confiança do padre. Aproveitando-se de momentos oportunos, ele ia ao porão e fotografava os registros de morte de todas as pessoas com o mesmo sobrenome de sua mulher. Sua pesquisa mostrou que o primeiro portador de IFF foi um veneziano que vivia num gueto judeu, por volta de 1760. Por ele, a doença chegou em Veneto transmitida por um aristocrata chamado Giuseppe. Obviamente isso ainda precisa ser confirmado, pois os arquivos anteriores ao período napoleônico foram todos destruídos durante as guerras.

Na década de 1980, um outro membro da família chamado Silvano viu duas de suas irmãs morrerem de IFF. Na época, Silvano era o chefe da família e um bon vivant, curtia a vida e não estava preparado para lidar com essa doença devastadora. Esbelto e atraente, Silvano sabia que poderia também adquirir a doença, mas procurava viver ao máximo, freqüentando baladas e viagens, sem se importar com a possibilidade de ser também portador de IFF. Um dia Silvano estava numa tradicional festa de família e, enquanto dançava com sua mãe, começou a suar de forma excessiva. Silvano sabia que esse era o sintoma inicial dessa insônia fatal. Naquele momento, Silvano sabia que também desenvolveria a doença.

Ao invés de se deixar levar pela doença, Silvano decidiu investir tudo o que tinha (seu tempo e suas finanças) para tentar entender o que estaria matando as pessoas de sua família durante séculos. Com ajuda de Ignázio, foram buscar auxílio num hospital especializado em distúrbios do sono em Bologna. O primeiro contato de Silvano com os médicos foi certamente inusitado. “Sei que vou morrer, será da mesma forma que meu pai e minhas duas irmãs morreram. Posso te dar todos os detalhes de como a doença progride”, disse Silvano ao médico especialista. O médico, acostumado com eufemismos acadêmicos, se espantou com a forma direta de Silvano e disse: “Por favor, senhor, existem remédios que podem ajudar…”. Silvano interrompeu no melhor estilo italiano: “Pare com essa baboseira, você terá meu cérebro assim que eu morrer”. Essa e outras histórias podem ser encontradas no livro The family that couldn’t sleep, de D.T. Max.

Silvano morreu com os mesmos sintomas de seus ancestrais. A análise de seu cérebro e de outros membros da família trouxe as primeiras evidências de que doença era de certa forma, similar a uma outra doença chamada Creutzfeldt-Jakob ou CJD (da sigla em inglês). CJD é uma doença causada por uma proteína infecciosa, conhecida como príon, encontrada em carnes obtidas de animais contaminados, como no caso da doença da vaca-louca ou do scrapie, em carneiros.

Além de CJD, a contaminação por príon também foi a causa mortis de diversos membros da tribo Fore, de Papua-Nova Guiné. Nessa tribo, o ritual canibalista foi o responsável pela epidemia conhecida como “kuru”, que dizimou a população de forma excepcionalmente acelerada. A descoberta de que “kuru” era causada por uma nova forma infecciosa levou Carleton Gajdusek ao prêmio Nobel em 1976. O prêmio foi concedido pelo reconhecimento de seus trabalhos no campo, mostrando que o agente infeccioso era, de fato, transmissível.

O príon é uma proteína como outra qualquer, codificada por um gene presente em todas as células de nosso organismo, e que, quando adquire uma alternativa conformação tridimensional, torna-se infecciosa e letal. Dessa forma, quando comemos carne contaminada com a doença da vaca-louca, ingerimos príons nessa segunda conformação. A proteína consegue escapar do sistema digestivo e atingir, de alguma forma ainda desconhecida, nosso sistema nervoso. No cérebro, a forma modificada do príon animal consegue se reproduzir alterando os príons humanos para a forma infecciosa, causando CJD.

A teoria atual indica que essa segunda conformação tem a capacidade de alterar a conformação original de príons presentes na célula, numa reação em cadeia. Essa infecção protéica representa uma nova forma de replicação independente de DNA e quebra o dogma da biologia DNA-RNA-Proteína, uma heresia para os cientistas dos anos 90. Mesmo segundo a teoria de Darwin, somente seres vivos, movidos a ácido nucléicos, teriam razão para se reproduzir. Mas não uma proteína.

A idéia do príon vem chacoalhar toda a biologia. Ainda hoje essa teoria não é unanimidade entre os biólogos. Até mesmo James Watson (da dupla Watson e Crick, descobridores da dupla-hélice do DNA), não está convencido e acredita que o príon possui algum tipo de ácido nucléico (DNA ou RNA), mas que ainda não foi encontrado, pois seria pequeno e estaria protegido pela estrutura protéica do príon. A descoberta desse novo princípio de infecção levou o maior rival de Gajdusek, o excêntrico e polêmico neurocientista Stanley Prusiner (Universidade da Califórnia), a receber o prêmio Nobel de Medicina em 1997.

Gajdusek estava encarcerado quando ficou sabendo da notícia de que Prusiner havia ganho o Nobel. Irritado, declarou que Prusiner havia ganho o prêmio baseado em suas idéias e que não havia contribuído com nada original. Gajdusek fora sem dúvida um pesquisador formidável, mas algumas de suas ações eram socialmente estranhas. Por exemplo, ele adotou diversas crianças da Micronésia para morar em sua casa, alegando que teria condições de criá-las num ambiente melhor. Pouco depois, algumas dessas crianças o acusaram de pedofilia. A história cresceu e, após uma investigação do FBI, Gajdusek acabou sendo condenado a 18 meses de prisão. Diversas autoridades, incluindo o duas vezes prêmio Nobel Linus Pauling, protestaram em seu favor, mas de nada adiantou. Sentado em sua cela, Gajdusek jurou nunca em sua vida usar o termo príon (cunhado por Prusiner) e hoje vive no exílio, em Amsterdã. Mais detalhes desse dramático episódio científico encontra-se em The genius who loved boys, de Robert Draper.

Curiosamente, o gene que codifica o príon é conservado entre os mamíferos e mesmo entre outras espécies, como em sapos, sugerindo que a proteína saudável tem uma função importante e ainda desconhecida para as células. A própria existência do príon ainda não foi totalmente comprovada cientificamente e permanece um mistério a ser desvendado no futuro. Entretanto, a possibilidade de sua existência tem estimulado intensos e frutíferos debates científicos e sociais. Nada mal para uma simples, pequena e, eventualmente “não-viva”, entidade protéica que habita o moderno “mundo de DNA”.

A ciência e a transformação social

sex, 09/03/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Ultimamente, como brasileiros, temos poucas coisas de que nos orgulhar. No entanto, ao voltar do II Simpósio de Neurociência do IINN-ELS (Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra), senti que podia me orgulhar desse empreendimento patropi.

O IINN-ELS é um centro científico sonhado e concretizado por mentes brasileiras. Entre esses sonhadores, destaco Miguel Nicolelis, seu pupilo Sidarta Ribeiro e Cláudio Mello – os três fundadores do instituto. Nicolelis (prefiro usar o sobrenome, mais sonoro) é um dos mais expressivos neurocientistas brasileiros, com um currículo invejável, é autoridade quando o assunto é a interface cérebro-máquina (termo cunhado por ele mesmo). Seus projetos visam compreender como redes neurais são recrutadas para o estabelecimento de atividades motoras, como o uso dos braços e pernas. Nem é preciso falar que o uso desse conhecimento deverá causar uma revolução na vida de pacientes paralíticos ou que sofrem de alguma disfunção motora, além de outras aplicações.

Sidarta é um jovem pesquisador, com pós-doutorado no laboratório de Nicolelis, e que agora é líder do primeiro grupo de pesquisa nesse novo instituto de pesquisa. Conheço o Sidarta há um certo tempo e sei que, embora pouco divulgado, ele foi o primeiro a ter a idéia de construir um centro de excelência numa região carente do Brasil. Mas o carisma, peso científico, capacidade gerencial e a expressão emotiva de Nicolelis é que foi a ferramenta para amplificar esse idéia. Sidarta não se incomoda com essa confusão de autoria e, com uma humildade digna de Buda, sabe que, quando o projeto tem um impacto social grande, pouco importa quem teve a idéia, importa é que ela se concretize. Além deles, vale ressaltar o esforço de diversas outras pessoas, como Janaina Pantoja, também aluna de Nicolelis, que contribuem de forma silenciosa para o sucesso do projeto.

Tanto Nicolelis quanto Sidarta são frutos de uma neurociência legitimamente brasileira. Foram formados no Brasil e depois migraram para a terra do Tio Sam buscando algo mais. Os dois partiram da mesma forma que muitos outros cérebros também cruzam as fronteiras todos os anos. Mas a neurociência brasileira continua viva, pois muitos dos que foram voltam mais experientes e cheios de energia. Segundo dados da SBNeC (Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento), o número de filiados é hoje algo em torno de mil, um número nada desprezível em comparações internacionais. O site da sociedade é uma ótima referência sobre o histórico da neurociência e seus centros de pesquisa no Brasil. A nova diretoria vem também homenageando renomados neurocientistas brasileiros por sua contribuição científica através da “Medalha Neurociências Brasil”. Nada mais justo, afinal esses são responsáveis pela formação de diversos outros Sidartas e Nicolelis que, eventualmente, irão também trazer sua contribuição ao Brasil.

Para funcionar, o IINN-ELS precisa de financiamento. Para isso, foi criada a AASDAP (Associação Alberto Santos Dumont de Apoio à Pesquisa), com a função de captar recursos para o projeto. Além disso, o instituto contou com o apoio filantrópico da brasileira Lily Safra, classificada pela revista inglesa “Eurobusiness” como uma das mais ricas do mundo, com um patrimônio de US$ 4,7 bilhões (sim, dólares), que inclui as atividades do banco Safra e as lojas Ponto Frio. Para minha surpresa, Lily Safra já apoiava a pesquisa de neurociência em outros países. Não foi revelado o quanto foi doado ao Instituto de Natal, mas deve ter sido uma quantia razoável, uma vez que o nome do instituto agora acomoda o sobrenome Safra. Fiquei curioso do porquê de empresários não apoiarem a ciência nacional antes. Talvez falte comunicação entre cientistas e empresários. Se for isso, temos (nós, cientistas) que aprender com Nicolelis como arrumar financiamento, seja em território nacional ou internacional, para nossos próprios projetos sem depender das instáveis agências de fomento governamentais.

Mas nem só de financiamento vive um projeto científico. É preciso muita competência, traduzida diretamente em publicações em revistas de alto impacto. No final, é isso que vai chamar a atenção de pesquisadores do mundo inteiro para Natal. Atraindo os cientistas mais talentosos, cria-se uma massa crítica local fundamental para geração de novas idéias, atraindo mais financiamento, promovendo o crescimento sócio-econômico da região e mantendo o ciclo de excelência. Começar esse processo não é óbvio. A idéia de ciência como agente de transformação social não é nova e já provou que funciona em diversas partes do mundo, mesmo no Brasil. Como exemplo marcante, cito o Instituto Salk de pesquisa, em San Diego, na Califórnia. O instituto foi idealizado por Jonas Salk (o criador da primeira vacina contra poliomielite), que conseguiu atrair mentes brilhantes (como uma série de jovens pesquisadores promissores, além de já conceituados prêmios Nobel) para uma região pouco desenvolvida dos EUA. Em dez anos, San Diego transformou-se num dos maiores pólos biotecnológicos do mundo.

O estabelecimento do IINN-ELS em terra tupiniquim é, pelo menos, dez vezes mais difícil. Primeiro porque não temos um Prêmio Nobel brasileiro para nos ajudar. Depois, contamos com muito menos verba que, quando é ameaçada pelo surgimento de um novo estabelecimento de pesquisa, cria uma certa tensão na comunidade científica, pois o pedaço que já era pequeno agora tem que alimentar mais uma boca. Soma-se a tudo isso o descaso das autoridades e a falta de auto-estima da população. Romper com esse quadro exige um esforço sobrenatural. Então, por que começar algo tão difícil, justamente distante do dito eixo-científico SP-RJ? A resposta de Sidarta e Nicolelis é simples: porque, se funcionar lá, funcionará também em outras regiões carentes do Brasil. E, para fazer isso, temos que começar já, mesmo com todos os problemas e dificuldades, pois a diferença tecnológica entre países ricos e pobres cresce exponencialmente.

Durante o simpósio, foram inauguradas algumas das instalações do instituto, incluindo a escola Alfredo J. Monteverde e o Centro de Saúde Materno-Infantil Anita Garibaldi. As palestras científicas do simpósio foram excelentes, um verdadeiro show de diversidade para quem soube aproveitar. Infelizmente, as tradicionais perguntas aos palestrantes não puderam ser feitas logo após as apresentações, privando os estudantes do prazeroso jogo de raciocínio. Em compensação, os intervalos eram recheados de interação, com os mais de 700 participantes comendo quitutes e tomando café brasileiro, ao som de um talentoso trio de chorinho.

De volta à minha rotina, refleti um pouco sobre o que aconteceu em Natal. O que mais me impressiona é que tudo isso foi feito por cientistas: desde o sonho até a realização. Nenhum deles teve treinamento formal em política ou administração. Tiveram que sacrificar a vida pessoal além de continuar o próprio trabalho de forma paralela. Nenhum deles deve ficar rico ou famoso (pelo menos não tanto quanto um jogador de futebol ou um BBB). Mesmo assim fizeram, pelo prazer de modificar. Impressiona o poder da vontade. Se alguns cientistas estão conseguindo mudar a realidade de uma área carente do Brasil, que poder de transformação não deve ter um político ou empresário?



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