O choro dos humanos
Numa conversa de botequim com amigos surge a questão sobre quais características definem o ser humano em contraste com outras espécies. Rapidamente, muitos respondem: “o polegar oponível” ou o “tamanho do cérebro”. Essas respostas, certamente equivocadas, me levaram a refletir sobre o assunto. Afinal, quais são as características unicamente humanas?
Com certeza o choro é uma delas. Só os humanos choram, nenhum outro animal chora. Pode até parecer simplório ou comum para muita gente, mas o choro é, sem dúvidas, um comportamento muito bizarro na natureza.
Lacrimejar é parte do ato de chorar. Isso, apesar de óbvio, trouxe muita confusão, principalmente para aqueles que se aventuraram a tentar descobrir por que choramos. Outros animais também lacrimejam. No caso do homem, em algum momento da evolução, redes neurais ligadas aos sentimentos se juntaram a glândulas responsáveis pela produção de lágrimas. Por alguma razão, essa estranha conexão não foi eliminada, mas se manteve presente até hoje, o que sugere que isso tenha uma função para a espécie humana.
Existem três tipos de lágrimas. Lágrimas basais servem para lubrificar os olhos. As lágrimas reflexivas estimulam as glândulas lacrimais em resposta a uma irritação ocular. A terceira lágrima é a sentimental (a do choro). Estas são quimicamente diferentes das basais e reflexivas, pois contêm 25% mais proteínas, quatro vezes mais potássio e trinta vezes mais manganês. Além disso, elas são carregadas de hormônios, como a prolactina e adrenocorticotropina (que, apesar de terem outras funções no organismo, são produzidas em altas quantidades quanto estamos em estresse).
Dessa análise, surgiu a idéia de que o choro seria uma forma de balancear os níveis hormonais quando em situações adversas ou tensas, buscando um equilíbrio. Isso permite que, passada a situação traumática, voltemos para as nossas atividades mais aliviados.
No entanto, é complexo validar essa hipótese, afinal, induzir o choro em laboratório não é tarefa simples e a quantidade de hormônio liberada não parece ser tão grande assim para justificar um balanço hormonal. Além disso, é difícil imaginar alguma vantagem evolutiva, afinal o choro nos deixa com a visão embaçada e emocionalmente susceptíveis. Curioso é que essa susceptibilidade emotiva talvez seja importante para entender o significado do choro.
No choro, as lágrimas devem ter uma função importante. O professor de psicologia Randolph Cornelius (Vassar College) coleta imagens de pessoas chorando após um incidente trágico para pesquisa. Nelas, as lágrimas devem ser claramente visíveis. Quando encontra uma imagem apropriada, ele elimina digitalmente as lágrimas da figura, criando uma versão da pessoa chorando, mas sem as lágrimas escorrendo pelo rosto, mantendo inalterada a expressão facial. Essas imagens foram mostradas a participantes de um estudo científico. A uma parte do grupo foi mostrada as fotos originais e, para outra parte, as fotos editadas sem lágrimas. Nenhum participante viu a mesma imagem com e sem lágrimas e nem sabiam dessa edição digital.
Ambos os grupos tiveram que descrever o estado emocional das pessoas nas imagens. Aqueles que viram as imagens com lágrimas descreveram que elas estariam, sem dúvida alguma, tristes. Mas o grupo que viu as imagens sem lágrimas ficou nitidamente confuso sobre o que as pessoas da foto estariam sentindo. Os palpites foram muitos, como cansaço e irritação. Pode-se concluir que as lágrimas não deixam dúvidas — elas enfatizam o estado emotivo de pessoas tristes.
Choramos desde que nascemos, apesar de que as lágrimas só surgem após os 6 meses. Os bebês expressam diferentes tipos de choros (fome, dor, separação, etc) que são prontamente reconhecidos pelos pais. Esse vocabulário rudimentar surge antes das primeiras palavras e sugere que o choro estaria envolvido com alguma forma primitiva de comunicação. No entanto, crianças e adultos utilizam outras formas mais sofisticadas de comunicação (linguagem, gestos, olhares, expressão facial) e ainda assim choram. Choram não só por algo triste e dolorido, mas também de emoção ou mesmo de forma manipuladora.
Não sei se isso acontecia com nossos ancestrais ou se é característico do homem moderno. Será que a evolução cultural estaria modificando a razão evolutiva original do choro? Nessa visão, o choro serviria como um tipo extraordinário de comunicação. Principalmente porque os humanos estão entre os animais mais sociáveis, formando sociedades complexas, favorecendo uma evolução cultural sem precedentes. Afinal, quem não se sente atraído por alguém que chora? Queremos saber o porquê, queremos confortar e ajudar. Esse comportamento pode ter colocado grupos humanos em vantagem pelo simples fato de criar fortes conexões afetivas entre seus integrantes.
Durante os seis milhões de anos passados, nossos ancestrais mudaram muito, principalmente do pescoço pra cima. Nosso cérebro dobrou de tamanho e nossos músculos faciais se tornaram mais refinados, alterando a forma de mostrar e reconhecer afeição. Essas modificações permitiram uma melhor comunicação entre nós. As partes do cérebro associadas com nossas emoções e experiências foram conectadas às glândulas lacrimais. Relações humanas complexas imploram por complexas formas de comunicação. Nesse contexto, a linguagem surge como uma adaptação essencial. As lágrimas, óbvias e literalmente na cara, surgem como outra adaptação humana.
A mistura das nossas experiências e sentimentos no choro e se transformam numa das mais potentes formas de comunicação humana. Seja no amor por alguém, na emoção da música, na dor da perda ou no prazer da conquista, o choro nos leva para um lugar longe do espectro de ação da sintaxe, longe de qualquer vocabulário, de qualquer língua. Choramos nessas situações e as marcamos em nossa memória pra sempre, formando um linha do tempo aonde está claramente definido momentos em que choramos. Lembramos de quem estava perto, de quem nos aninhou. Chora-se pela vida e pela morte. Todos nós já passamos por isso. Sem o choro, não seriamos definitivamente humanos.