Os novos neurônios, a canabis, o Viagra e o budismo

sex, 26/01/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Um dos temas mais atraentes da neurociência atual é a descoberta de que o sistema nervoso tem capacidade de produzir novos neurônios, mesmo no cérebro adulto. Esse fenômeno é conhecido como neurogênese e faz parte da minha linha de pesquisa há alguns anos. Mas nem sempre foi assim. “O tecido nervoso não se regenera” ou “você nasce e morre com o mesmo número de neurônios” são afirmações ainda encontradas em livros de ensino de ciências e foi, por décadas, um dogma da biologia.

Evidências de que neurônios são gerados no cérebro adulto levaram à identificação das chamadas células-tronco neurais. Essas células contribuem para a formação de novos neurônios em pelo menos duas regiões do cérebro: na zona subventricular e no hipocampo. Neurônios nascidos na zona subventricular migram para o bulbo olfatório e contribuem para o reconhecimento de novos aromas, pelo menos para os camundongos. Já os novos neurônios gerados no hipocampo sofrem de crise de identidade: ninguém ainda sabe exatamente o que eles fazem lá.

Curioso também é o fato de que roedores expostos a novos ambientes apresentam um aumento no número de novos neurônios no hipocampo, como se o ambiente estimulasse as células-tronco dormentes no cérebro. Um belo exemplo é o exercício físico. Ao colocarmos animais sedentários em gaiolas com rodinhas giratórias, o número de novos neurônios aumenta significativamente. Esse aumento foi também correlacionado com uma melhoria na memória e capacidade de aprendizado. Dessa forma, quando comparamos a habilidade mental de animais idosos que se exercitaram regularmente notamos que ela era equivalente a de jovens sedentários! Vale notar que o efeito só é válido com exercício voluntário. Por sinal, o estresse causado pelo exercício forçado pode até diminuir a neurogênese.

A publicação desses resultados teve um grande impacto na sociedade, afinal uma das conclusões é que você tem a capacidade de alterar as redes nervosas do seu próprio cérebro, simplesmente expondo-se a novos ambientes — só depende de você! Uma das pessoas interessadas no andamento dessas pesquisas é o líder espiritual Tenzin Gyatso (o Dalai-Lama). Nosso grupo foi convidado a apresentar esses resultados a ele. O Dalai-Lama teve a preocupação de incorporar essas novas informações científicas nas explicações budistas sobre o potencial da meditação.

Tudo isso e o fato de que células-tronco neurais foram também identificadas em humanos trouxe grande entusiasmo e expectativa para o tratamento de doenças do sistema nervoso. Afinal, o aumento do número de neurônios no hipocampo parece estar relacionado a um efeito positivo ao indivíduo. Isso foi observado em pacientes com depressão (o mal do futuro?) ou ansiedade, por exemplo. Hoje sabemos que diversos medicamentos para essas doenças aumentam a neurogênese através de diferentes vias de ação. É o caso de antidepressivos, estabilizadores de humor, a canabis, esteróides e até o Viagra.

Esses experimentos foram feitos em condições experimentais com animais de laboratório e ninguém está estimulando o uso dessas drogas, mas sim tentando entender a amplitude do seu espectro de ação. Afinal, como é possível que a neurogênese melhore a depressão? Ainda não sabemos exatamente qual é o mecanismo por trás dessa melhora, mas acredita-se que a neurogênese altere as conexões do hipocampo com regiões cerebrais envolvidas com emoções, como a amígdala. E se você retirou a “amígdala” em algum momento, você não irá ter depressão — estou falando de outra “amígdala”, aquela região do cérebro que faz parte do sistema límbico!

Infelizmente, dependendo da doença, o aumento da neurogênese nem sempre vem junto com uma melhora clínica. É o caso da epilepsia: ataques epiléticos freqüentemente aumentam o número de novos neurônios. No entanto, eles não conseguem se desenvolver como esperado. Como conseqüência, temos uma série de novos neurônios capengas que prejudicam, em vez de melhorar as redes neurais. Nesse caso, parece que a redução da neurogênese deve ser beneficial para os portadores de epilepsia.

A busca pelas bases moleculares desse curioso fenômeno do cérebro é uma área em plena ascensão. Desvendar os segredos da neurogênese abrirá novas alternativas para o tratamento de doenças neurológicas e para a compreensão de como funciona nosso cérebro em resposta ao ambiente em que vivemos. E modificando nossas próprias redes neurais mudamos quem somos e, aí sim, poderemos mudar o mundo!

Crianças superpoderosas

sex, 12/01/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Quando eu tinha uns sete anos, andava pelas ruas do bairro com uma capa plástica feita com sacos de supermercado. Aquela capa me deixava com poderes sobrenaturais e eu não tinha medo de nada, estava pronto para enfrentar as mais perigosas situações, seja para salvar minha priminha de vilões imaginários ou recuperar o cachorro sumido da vizinha.

Indagado pelos garotos mais velhos sobre qual tipo de “poder” a capa me trazia, respondi que poderia abrir um buraco na parede com meu super-soco, se quisesse. Todos riram e para salvar minha imagem de herói e impressioná-los soquei a parede com toda minha força. Não abri nenhum buraco e tive uma das mais dolorosas experiências da minha infância. Humilhado, respirei fundo e fui chorar sozinho. Lição aprendida: super-heróis não sentem dor!

Algumas crianças que habitam o norte do Paquistão também acham que são superpoderosas. Uma delas ganha a vida enfiando facas nos braços e andando em brasas. Essa já teve múltiplos ferimentos que a levaram ao hospital diversas vezes. Mas ela nunca reclamou. Outro morreu ao se jogar de um telhado. Fez isso porque não sentia dor e portanto não evitava situações dolorosas ou perigosas que o colocavam em risco, mesmo durante a vida cotidiana.

E foi justamente estudando esse tipo de comportamento que descobriu-se uma das razões genéticas responsável pela total ausência de dor. Até recentemente, casos de pessoas insensíveis a dor eram restritos a defeitos congênitos em fibras nervosas sensoriais. Nesse caso, além de não sentirem dor, também não conseguiam distinguir o quente do frio, por exemplo. Mas em dezembro do ano passado James Cox e colaboradores, da universidade de Cambridge (Nature; 444, 2006), descobriram que as crianças paquistanesas eram diferentes — tinham uma mutação genética num gene chamado SCN9A.

A proteína codificada por esse gene faz parte de uma família gênica de subunidades de canais de sódio. Ao estimularmos certos neurônios sensoriais, são produzidas pequenas alterações de voltagem nas membranas celulares. Esses canais de sódio amplificam esse sinal até um certo limite. Dependendo da magnitude do estímulo, o limite é ultrapassado e ocorre a despolarização do neurônio, gerando um impulso elétrico que sinaliza a dor.

Mutações dessas famílias são dominantes, anulando a função de um dos canais de sódio. Diferentemente de outras mutações, essas causam total insensibilidade à dor, sem outros problemas fisiológicos como a percepção da temperatura. Ainda não se sabe exatamente o porquê disso.

Infelizmente, os modelos de camundongos “nocaute”, geneticamente alterados e defeituosos no gene SCN94, não sobrevivem, e os cientistas acabam tendo reduzidas oportunidades de estudo, uma vez que esse tipo de mutação acontece com uma freqüência menor do que uma em 1 milhão.

E pode até ser que essas mutações também contribuam pela variação da tolerância à dor. Recentemente, em um artigo publicado na revista “Science” (Science; 314, 2006), Nackley e colegas demonstraram que variações na estrutura de um outro gene chamado COMT, responsável pelo metabolismo de certos neurotransmissores, são capazes de causar variações da tolerância à dor.

Nesse caso, as variações não estavam ligadas a mutações do gene em si, pois a proteína produzida era exatamente a mesma, mas sim à estrutura secundária do RNA mensageiro (o intermediário molecular entre o DNA e a proteína). Também não podemos esquecer que sensibilidade à dor está relacionada com as condições psicológicas do indivíduo. Isso tudo sugere que a sensibilidade à dor entre indivíduos é muito mais complexa do que imaginava-se antigamente.

E afinal, para que serve a dor? Em culturas antigas, a dor era vista como um castigo dos deuses, mas com o tempo aceitou-se o fato de que ela faz parte da fisiologia normal do organismo. Assim sendo, a dor é responsável pela demarcação dos limites físicos de nosso próprio organismo, evitando lesões teciduais. Sem ela, por exemplo, poderíamos mastigar a própria língua sem perceber. Além disso, a dor ajuda o cérebro a analisar e decidir sobre situações de risco: a decisão é feita dependendo de quão dolorosas serão as conseqüências.

Estudos dos mecanismos moleculares da dor levaram ao desenvolvimento de diversos tipos de analgésicos. Nessa área, destaco o trabalho do cientista brasileiro Sérgio Henrique Ferreira, do Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. As novas descobertas nessa área deverão ajudar o Sérgio e outros pesquisadores na busca do analgésico ideal, onde os efeitos colaterais são mínimos e com amplo espectro de ação, para todo tipo de dor. Até dor de super-herói quando perde os superpoderes…



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