Consciência Lavada
Quem já não se perguntou como um político corrupto pode ter uma boa noite de sono depois de um dia recheado de falcatruas? Como consegue dormir sem peso na consciência? Talvez um banho antes do sono tenha alguma coisa a ver com isso…
Esse tema é uma das áreas mais fascinantes da neurociência contemporânea, que é a busca experimental da compreensão da consciência humana. O problema começa com a própria definição de “consciência”, que para uns não passa de uma forma de “atenção” e, assim sendo, não é de forma alguma restrita a nossa espécie: até mesmo um sapo precisa se concentrar para pegar uma mosca! O assunto atraiu bastante a atenção do público com a notícia de que uma paciente de 23 anos, vítima de uma lesão cerebral e diagnosticada como em estado vegetativo, apresentou uma inesperada atividade cerebral quando interrogada verbalmente por pesquisadores (Owen et al, Science 313:1402, 2006). Estaria ela realmente consciente do seu estado e do que estava se passando ao seu redor, ou os pesquisadores estariam apenas detectando uma atividade cerebral aleatória em resposta a estímulos verbais?
Afinal, como poderemos estudar a consciência se não sabemos nem ao menos defini-la? O dilema vem atraindo cada vez mais cientistas de outras áreas, como por exemplo Francis Crick, um ícone da biologia molecular por ter participado da descoberta da estrutura do DNA. Crick acreditava que a consciência é algo mais complicado do que simplesmente atenção, envolvendo conceitos culturais como a moral e a ética. Além disso, Crick defendia a idéia de que certas formas de consciência podem ser mensuráveis através de experimentos científicos (para uma excelente visão das idéias de Crick sobre o assunto, convido o leitor a degustar o livro de sua autoria “The Astonishing Hypothesis: The Scientific Search for the Soul”).
Ora, mesmo que intuitivamente, a grande maioria de nós tem plena consciência da própria imagem moral perante a sociedade ou mesmo de quando estamos sendo anti-éticos em determinadas situações. E mais, podemos até apagar ou compensar essas atitudes anti-éticas, fortalecendo nossa imagem moral. Isso acontece diariamente em diversas religiões que, muitas vezes, utilizam alguma forma de purificação física, como banhos hindus ou mesmo o batismo católico.
Aparentemente, a conexão entre pureza corporal e consciência já é inerente a algumas sociedades. E foi recentemente alvo de um estudo cientifico, publicado na prestigiosa revista “Science” (Zhong & Liljenquist, 138: 1451, 2006). O trabalho de dois pesquisadores, um do Canadá e outro dos Estados Unidos, descreve o efeito “Macbeth” (talvez aqui no Brasil tenderíamos a chamá-lo de efeito Pilatos), que diz que qualquer ameaça à nossa pureza moral induz uma limpeza física. Os experimentos foram desenhados de forma elegante, com devidos controles e submetidos a rigorosos testes estatísticos. A tragédia de Shakespeare empresta o nome a esse efeito, devido ao fato de que Lady Macbeth acredita poder se livrar do peso da consciência do assassinato do rei Duncan lavando-se com água. Lady Macbeth fica obcecada em limpar sua consciência ensangüentada removendo todo respingo de sangue que encontra (como comentam os autores do trabalho, impressionante mesmo é a afiada visão de Shakespeare sobre a psiquê humana!).
Para medir a consciência “suja”, os pesquisadores pediram aos participantes para se lembrar de episódios éticos e não-éticos em que estiveram envolvidos no passado. Depois, os participantes foram submetidos a um jogo de palavras onde poderiam optar por um grupo de palavras relacionados a limpeza (como por exemplo: sabão) ou totalmente não relacionadas, mas ortograficamente semelhantes (salão). Participantes que se lembraram de episódios não-éticos optaram significativamente mais por palavras relacionadas a limpeza. Além disso, no final do experimento, os participantes podiam escolher um brinde (um lápis ou uma toalha anti-séptica – ambos previamente testados e classificados como neutros por um grupo de participantes-controle). A maioria daqueles que se lembraram de episódios não-éticos optou por escolher a toalha anti-séptica, evidenciando a preferência por limpeza física.
Num segundo experimento, os participantes tiveram de copiar uma redação em primeira pessoa, descrevendo uma atitude ética (como auxiliar um colega) ou não-ética (como sabotar um colega). Logo depois, tiveram que qualificar uma série de produtos de acordo com o seu desejo ou atração naquele instante. Novamente, os participantes que copiaram a redação com conteúdo não-ético optaram por produtos de limpeza ou higiene pessoal.
Mais revelador foi o último experimento, no qual os participantes que se lembraram de episódios não-éticos e que receberam a toalha anti-séptica puderam, ou não, usar a toalha para lavar as próprias mãos. Em seguida os pesquisadores perguntaram a eles se topariam participar de um outro estudo como voluntários, sem nenhuma remuneração. Presumidamente, os que lavaram as mãos iriam se sentir menos propensos a atividades voluntárias pois já haviam lavado a “consciência” e restaurado a imagem moral – não necessitariam então de ações compensadoras. Como esperado, o ato físico de lavar as mãos reduziu drasticamente o voluntariado!
Mas quais seriam as implicações dessa sobreposição psicológica entre limpeza moral e física? Será que forçar certos políticos a um rigoroso processo de higiene os tornaria mais éticos? Ou será que, ironicamente, a limpeza física teria o efeito oposto, fornecendo uma licença para comportamentos não-éticos? Teríamos então que impedir o hábito da higiene pessoal na política? Certamente ainda estamos longe de responder a essas questões, mas esses resultados mostram como atividades mundanas diárias podem ter um impacto profundo na forma como percebemos e julgamos nosso próprio comportamento.
20 outubro, 2006 as 4:34 pm
Focando um pouco na questao da consciencia. Ela nao poderia ser definida como percepcao dos proprios processos mentais (como o pensamento)?
20 outubro, 2006 as 5:45 pm
Poderíamos afirmar que o girassol tem conciência, pois movimenta-se guiado por algo exterior ao seu corpo.
20 outubro, 2006 as 6:35 pm
além do fator consciência existe o fator caráter que cada indivíduo traz desde a sua formação
20 outubro, 2006 as 7:56 pm
Será que um Nariz tem consciência?
Abraços Alysson!
Ass: Nakoso
20 outubro, 2006 as 8:09 pm
Talvez se os políticos se submetessem a esse processo de experiência higiênica, com toda a cara de pau deles eles continuriam a experiência, porém, quanto ao fato de experimentarem sem ressarcimento… aí sim, haveria até uma extinção de poliíticos no mundo.
21 outubro, 2006 as 1:17 am
Com certeza é interessante estudar e descobrir através de experiências as diferentes formas do pensamento humano. Mas ficam aqui alguns questionamentos: Se um dia os cientistas pudessem controlar impulsos não-éticos, não poderiam também criar padrões considerados “normais”, assim caminhando para uma espécie de higienização das mentes, o que me parece bastanté perigoso?
21 outubro, 2006 as 11:49 am
As questões éticas (escândalos/decoro parlamentar)que se evidenciaram nesses últimos tempos, vieram de sistemas viciados e facilitadores que se instalaram, ao longo dos tempos, dentro das entranhas políticas do brasileiríssimo Congresso Nacional e sob as vistas míopes das nossas Leis. Por esse aval, ficou escancarada a liberação geral para a demanda da corrupção. Consequentemente o que menos pesaria, até para “político-santo”, seria algum peso na consciência por esse tipo de crime. Enquanto as nossas leis estiverem sendo feitas por gente que tem medo de ser presa, jamais político algum desse país corre o risco de dormir intranquilo.
21 outubro, 2006 as 12:43 pm
Acho que a educação é a alma da negócio. Por exemplo, um sujeito bem educado desde criança, nos padrões expostos pela sociedade civil, sabe que não é certo roubar. Mas um sujeito mau educado sabe que é errado e o faz do mesmo jeito, porém pode se “benzer” e voltar a errar por estar mais “”puro”?? Será que este peso na consciência pode ser elimidado? Ou o sujeito esta enganando a si próprio ao achar que esta mais “puro”? Acho que a única solução é a educação das pessoas.
Abraços Alysson
21 outubro, 2006 as 1:46 pm
Politicos franceses sao mais honestos que os brasileiros porque tomam menos banho??!!!!
brincadeirinha!!!!! Valeu!!!!
21 outubro, 2006 as 5:20 pm
A verdade torna-se consciência. Não se pode tê-la, se não há nenhuma referência que a desperte. Um assassino arrependido, que num momento infeliz de ódio ou por vingança – tem consciência do ato em si. Uma mente perversa não tem consciência do errado, porque para ela, é o certo, está num processo invertido e segundo a psicanálise não tem cura, pq não sofre. Qto ao limpar-se, Jesus lavou os pés simbolicamente dos discípulos, mostrando que aqueles que nEle acreditam, só sujam os pés ao caminhar pelo mundo, pois a alma já está limpa pelo sangue vertido. É um simbolismo muito forte que nos remete a outras verdades nele submersos. Aí fala-se de fé, de crer e entregar-se nas Suas mãos. cont…
21 outubro, 2006 as 5:33 pm
…cont. Um político pode sim, colocar a cabeça no travesseiro e dormir, mas precisamos saber o que ele esconde no seu âmago, pois pode ter ou não consciência do que faz, do que rouba, do que tira, do que trai. Para a sociedade é crime, mas para ele pode não significar nada.
Já aquele que não possui escrúpulos, age independentemente da consciência, sabe a verdade, sabe o que está fazendo. No meu entender, não se pode estudar a consciência isolada.
O autor citou produtos de limpeza e higiene pessoal e vejo que esse fato está mais ligado ao ato em si praticado, pois moralmente falando, na mente daquele que praticou tal “ato”, o desejo de se purificar daquilo que considera “sujo”. Pode até tomar vários banhos seguidamente e se esfregar até quase se esfolar, dependendo da situação. É o conceito de limpeza que nos está incutido, mas que na verdade não funciona, só alivia um pouco a culpa e acalma e os lava (o ato sujo) pro fundo de sua alma. Não é isso?
21 outubro, 2006 as 7:46 pm
Parabens Alysson, como é bom saber de brasileiros que estao no exterior e nos dao tamanho prazer de nos brindar com artigo tao elucidativo.Falar sobre mentes e consciencias sao poucos que o fazem tao bem .Escreva mais …
22 outubro, 2006 as 9:12 pm
Importante contribuição que a Neurociencia nos traz … e como vc lembrou, esse cara chamado Shakespeare (rs !) sabe muito sobre a psiquê humana, num é verdade ?
Acredito que a questão moral e ética passa tbem por fundamentos religiosos e sociais ( que muitas vezes observamos ou ignoramos), mas que de alguma forma, em nossa sociedade, seja ela Oriental ou Ocidental, nos influencia e nos encaminha à determinados pensamentos e atos – apesar de acredir que muitas vezes o complexo mundo ciência pode nos explicar e ir muito mais além, de que nossa vã filosofia – parafraseando nosso Shakespeare …rs
23 outubro, 2006 as 12:17 pm
Simplesmente brilhante!!Parabéns por aliar um tema tão (infelizmente) atual ,com os questinamentos da neurociência! Abçs.
24 outubro, 2006 as 10:01 pm
https://youtube.com/watch?v=55VETQ2lasU&mode=related&search=
28 outubro, 2006 as 2:25 am
Quem sabe o mal que se esconde nos coracoes humanos ? O Sombra sabe.
Narigudo!!! Apenas eu sei a sua Verdade…
hahahaha
19 setembro, 2009 as 2:36 am
muito interessante o resultado das pesquisas…ajudou muito a entender os rituais de tantas religiões que eu não entendia o porquê…batismos na água, lavagem das mãos antes de entrar em templos xintoistas etc…
30 abril, 2013 as 11:35 pm
A questão consciência é antes de tudo cultural. O que é ético para uns não é para outros. Dentro desse formato cultural a consciência do individuo é baseada, ao longo do tempo este ser vai dando uma forma mais pessoal por suas experiências e escolhas baseadas em seu caráter. Daí vemos as aberrações quando o eu não deixa ver o outro e o egoismo norteia o indivíduo deixando-o sem consciência sobre seus atos, primeiro ele, depois ele e por fim ele.