Desmatamento da Caatinga preocupa pesquisadores e especialistas em meio ambiente
Não é preciso ter acesso à zona rural dos municípios do Sertão de Pernambuco para enxergar áreas descampadas, queimadas, usadas para pastagem ou agronegócio. No caminho entre o Recife e cidades como Petrolândia e Tacaratu – mais próximas da Bahia – ou Serra Talhada, São José do Egito e Brejinho, essa última na divisa com a Paraíba, bem às margens das rodovias, é possível se deparar com parte do cenário responsável pelos 3.356.688 hectares de Caatinga desmatados no estado.
Para conhecer mais sobre a Caatinga e os impactos do desmatamento, a equipe do g1 percorreu 791 quilômetros e cruzou o Sertão de Pernambuco de Norte a Sul, visitando dez municípios.
No caminho, as espécies típicas da região, como mandacaru, umbuzeiro, juazeiro, catingueira, palma, xique-xique, avelã e macambira, indicam a presença e riqueza do bioma que, aos poucos, dá lugar aos descampados, ocupados pelo gado e por indústrias.
Para efeitos comparativos, a área degradada equivale ao território somado de 54 dos 184 municípios pernambucanos.
Flagrantes de desmatamento da Caatinga não são raros às margens das rodovias — Foto: Ezequiel Quirino/TV Globo
LEIA TAMBÉM:
O bioma ocupa 84% do território de Pernambuco. É um total de 8.277.900 hectares que, anualmente, têm a paisagem alterada e a área reduzida pelo desmatamento.
Os dados são da plataforma de monitoramento dos biomas, da rede de pesquisas MapBiomas, formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia. O grupo faz um mapeamento anual da cobertura dos biomas no Brasil.
Esse estudo do desmatamento usa imagens de satélites que monitoram o território, a partir do ano de 1985. Os dados mais recentes da plataforma são de 2021 e foram publicados neste ano.
No mapeamento da MapBiomas, além desses municípios, Belém do São Francisco, Cabrobó, Bodocó e Ouricuri historicamente fazem parte da lista de municípios com mais áreas de vegetação desmatada.
No relatório anual do desmatamento no Brasil de 2021, elaborado pela rede, chama a atenção o número de alertas de desmatamento registrados no país, colocando a Caatinga em segundo lugar no ranking dos biomas com maior notificação para esse tipo de degradação ambiental.
Do total de alertas, 66,8% estão no bioma Amazônia, com uma área de 977 mil hectares desmatados. O bioma Caatinga aparece em seguida, com 15,2% dos alertas, totalizando 190 mil hectares, seguido pelo Cerrado, com 9,9% dos alertas e 500 mil hectares.
O bioma Mata Atlântica teve 1,8% dos alertas e 30,2 mil hectares desmatados, seguido do Pantanal com 1,7% e 28,6 mil hectares desmatados, e o Pampa, com 0,1% e 2,4 mil hectares desmatados.
No ranking dos estados inseridos no bioma caatinga, Pernambuco aparece em terceiro lugar como o que mais apresentou áreas desmatadas durante 2021. Foram 14.257 hectares de área.
O primeiro colocado foi a Bahia, com 48.058 hectares, seguido do Ceará, com 21.193 hectares. O Piauí registrou desmatamento em 12.044 hectares de área de vegetação do bioma.
Nos últimos 37 anos, um quarto (25,59%) de todas as áreas do bioma, no país, que foram modificadas pela ação do homem, perderam vegetação nativa, de acordo com o estudo da MapBiomas. Mais de 15% da área do bioma foi queimada, totalizando 13.770 hectares. A redução de áreas naturais superou os 6 milhões de hectares, representando 10,54% da área mapeada em 1985.
Em Serra Talhada o desmatamento na Caatinga cresceu 115% de 2020 a 2021, de acordo com MapBiomas — Foto: Ezequiel Quirino/TV Globo
A Caatinga
Com mais de 862.818 quilômetros quadrados, o equivalente a 10,1% do território nacional, a Caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro, que se estende por nove estados. Desses, cinco têm mais da metade de seu território no bioma: Pernambuco, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
De acordo com Ministério do Meio Ambiente, esse é o bioma de semiárido mais biodiverso do mundo. O Centro Nacional de Conservação da Flora (CNC Flora), do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, monitora algumas espécies.
De um total de 7.524 espécies da flora brasileira avaliadas quanto ao estado de conservação, 3.209 estão na Caatinga. Dessas, 253 são consideradas criticamente em perigo, 848 em perigo e 342 na categoria vulnerável. Em Pernambuco, são 147 espécies monitoradas pelo centro. Dessas, 81 estão ameaçadas.
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pelo monitoramento da fauna brasileira, observa alguns dos animais que vivem na Caatinga. Das 2.267 espécies monitoradas pelo órgão, 212 estão ameaçadas de extinção. Em Pernambuco, ele já encontrou 976 espécies, 51 delas ameaçadas.
Impactos do “progresso” na paisagem do Sertão
O coordenador da MapBiomas Caatinga, Washington Rocha, é o responsável pelo estudo do bioma na rede de pesquisas. Entre os motivos indicados para o desmatamento, ele relaciona a agropecuária como o mais tradicional, e a exploração de áreas de vegetação para instalação de parques de energias renováveis como um dos motivos mais recentes.
“Nós percebemos, por exemplo, o crescimento da própria atividade de exploração da vegetação e de áreas de vegetação para instalação de parques eólicos. Tradicionalmente, a extração de madeira para carvoaria ainda permanece como uma motivação. Além disso, a gente percebe também a expansão da agropecuária, com instalação de área de pastagem e também de cultivo dentro de áreas [de residência familiar], ampliando essa fronteira e ampliando o desmatamento em áreas naturais”, declara Rocha.
Em Jatobá, cidade vizinha a Petrolândia e Tacaratu, no Sertão de Pernambuco, está o território indígena Pankararu. São 25 aldeias, divididas em duas áreas: 8,1 hectares do território indígena Pankararu, com 3,8 mil famílias e 14 aldeias, e a terra indígena Entre Serras Pankararu, com 6.194 hectares, onde vivem mil famílias, distribuídas em 11 aldeias.
O território, cortado por riachos e serras, fica a 10 quilômetros das margens do Rio São Francisco. Do centro da cidade até a região, localizada na zona rural do município, o mandacaru, o umbuzeiro e as palmas, plantas nativas da Caatinga, estão presentes na frente e no quintal das casas das aldeias indígenas. Mas segundo os moradores da região, a vegetação na cidade e no território já foi mais rica.
Mandacaru e plantas nativas da Caatinga compõem os cenário do território indígena Pankararu, em Jatobá — Foto: Ezequiel Quirino/TV Globo
O cacique Marcelo, 39 anos, vive na Aldeia Bem-querer de Cima, do território indígena Pankararu, desde que nasceu. Ele conta que da sua infância até hoje, a paisagem local mudou, perdeu parte do verde e da água da região.
“Aqui a realidade nossa é bem nítida. Nós temos riachos na nossa aldeia, que dos meus 10 anos de idade até os meus 20 anos de idade era água corrente permanente. Nas nossas nascentes também: ela caía com a força de uma cachoeira e mini cachoeiras. Elas caíam com um grande volume de água. Hoje elas estão quase pingando. Nós realmente estamos num processo de extinção das nossas nascentes dentro do território. Eu atribuo tudo isso ao que o homem branco chama de progresso. É um progresso que visa o capitalismo”, lamenta o cacique.
Cacique Marcelo, 39 anos, nasceu no território indígena Pankararu e viu as mudanças na paisagem local — Foto: Ezequiel Quirino/TV Globo
Além da redução da vegetação nativa e do volume de água, a fauna também vem sendo afetada com a chegada dos novos negócios na região.
“Agora mesmo estou vendo que estão sendo construídos parques eólicos e solares às margens do território e isso tudo também afasta os nossos animais. Onde tinha um tatu, um veado, algumas caças e alguns animais, eles se distanciam, se afastam. Isso tudo mexe com o equilíbrio da Caatinga e em especial do nosso território. [...] Uma coisa que observo: a Caatinga, além de estar em uma ameaça de se acabar mesmo, se você for avaliar, não é tão vista com os bons olhos pelos nossos governantes. [...] Você vê que existe até incentivo para matas preservadas em outros biomas. Mas isso só é visto onde? Mata Atlântica”, declarou.
A mudança na paisagem percebida pelo cacique pode ser ilustrada por alguns números. De acordo com o último censo agropecuário realizado pelo IBGE, em 2017, Pernambuco tem 281.688 empresas ligadas à agropecuária. Elas ocupam uma área de 4.471.219 hectares.
Em alusão à presença das turbinas eólicas na região e no estado, os números revelam que o mercado está crescendo: são 39 em operação, três em construção, e 11 previstas para serem construídas, mas que ainda não tiveram as obras iniciadas.
Das que estão em funcionamento, 13 estão instaladas em municípios do Sertão. São seis em Araripina, cinco em Tacaratu e duas em Ouricuri. A informações são da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Usina Eólica em Tacaratu: parques eólicos mudam o cenário do Sertão — Foto: Ezequiel Quirino/TV Globo
Prejuízos ambientais
O professor do departamento de biologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), André Lima, é especialista em botânica e ecologia vegetal. Ele diz que os números do desmatamento preocupam, porque cada vez que há uma atividade de retirada de vegetação, além de implicar na perda de uma espécie da flora nativa da Caatinga, pode trazer prejuízos para fauna e para o solo, que também é sustentado pelas raízes das plantas.
“Quando se retira a vegetação, você está tirando um potencial fator de atenuação do clima local. Aquela área tende a ser cada vez mais degradada, porque a própria vegetação tende a segurar, por exemplo, o solo, e evitar de ocorrer uma erosão. As plantas que crescem muito suas raízes, conseguem penetrar mais no solo e, consequentemente, a água infiltra melhor dentro do solo”, explicou.
Território indígena Pankaruru
No território Pankararu, em Jatobá, a equipe do g1 visitou uma área que os indígenas chamam de Nascença. É um riacho que corta as aldeias e ajuda a comunidade com o abastecimento de água (veja o vídeo abaixo).
Imagem mostra baixo volume de água do riacho Nascença
Ao chegar no local, uma das áreas de acesso estava cercada, com árvores derrubadas. Eronides Andrade, 45 anos, técnico em agropecuária e indígena Pankararu, levou a equipe até o riacho, que tem um curso estreito de água.
Ele explicou que o estreitamento e o menor volume de água que corre na região deve-se também a esse tipo de desmatamento.
“Quando acontece uma derrubada de uma vegetação nativa, você desprotege o solo e acontece um assoreamento para o riacho, para as nascentes e toda área que deveria ser preservada. [...] São ações que a gente precisa estar discutindo com a comunidade, para que mude um pouco o hábito de cultivo que, até então, tem sido danoso ao meio ambiente”.
O técnico explica que, provavelmente, a área cercada com a vegetação desmatada seria utilizada para agricultura familiar, mas que o cultivo poderia ter sido feito de outra forma.
O líder da aldeia Bem-Querer de Cima, Eronides Andrade, destaca que a questão do desmatamento precisa ser levada e discutida com a comunidade local, que também prejudica o bioma, mesmo que para a prática de agricultura de subsistência.
"A gente precisa estar discutindo com a comunidade, para quem mude um pouco o hábito de cultivo, que até então tem sido danoso ao meio ambiente. Recentemente nós conseguimos recuperar uma área que tinha sido ocupada por posseiros e, no desespero de cultivar as áreas pequenas que nós tínhamos, os indígenas foram apertados para essa região de serras. Então, é natural que, em busca dessa sobrevivência, os indígenas tenham procurado trabalhar nas serras (veja vídeo abaixo).
Técnico agrícola diz que é preciso trabalho em conjunto com comunidade
A preocupação é compartilhada por Amonita Andrade, 35 anos, que nasceu e cresceu na Aldeia Bem-querer de Cima e presenciou as mudanças na paisagem e vegetação do local.
“Existe um desmatamento em demasia. Andando por Pankararu, você vê quantas roças são abertas e você vê a quantidade de espaços vazios que não têm mais árvores como antigamente. E isso reflete no impacto do solo, do clima. A vegetação é cada vez mais seca, a gente sente que precisa ter um cuidado, um olhar, precisa de políticas públicas que possam ensinar as pessoas e a população de Pankararu que eles precisam preservar, porque a gente tem outras gerações por vir e a gente precisa cuidar”.
A indígena Pankararu é formada em gastronomia. Ela utiliza os frutos e as folhas das plantas da Caatinga na sua culinária, e acredita que o cultivo da vegetação nativa do bioma e retirada correta do que o ecossistema oferece pode transformar a vida de uma comunidade e das pessoas que estão em situação de pobreza.
“Onde as pessoas veem mato, eu vejo comida, vejo possibilidades. A gente tem sim uma forma, várias formas de conciliar o viver bem na Caatinga, conseguir desfrutar dela sem destruir. Da Caatinga a gente tira remédio, alimento. A palma, o xique-xique, o mandacaru, tudo isso vira comida, a comida de subsistência, e não só para alimentar os animais. Tudo isso a gente pode comer e pode comer bem. E pode trazer para casa uma infinidade de coisas, de ervas, de plantas, a caatinga tem o poder de tirar as crianças e famílias que vivem em vulnerabilidade. Com o conhecimento certo elas conseguem sobreviver na Caatinga. Eu sonho com uma Caatinga preservada e respeitada e sonho com que as pessoas possam preservar o nosso bioma”.
Indígena Pankararu, Amonita Andrade, 35 anos, faz comidas a partir da Caatinga e diz que o bioma pode transformar vidas — Foto: Ezequiel Quirino/TV Globo
Rios mais secos
Assim como o riacho Nascença, no território Pankararu, em Jatobá, a retirada de vegetação, principalmente às margens de cursos d’água, tem provocado impactos negativos em rios importantes, que cruzam o Sertão. A redução do nível do Rio São Francisco também foi percebida com a passagem do tempo (veja vídeo abaixo).
Rio São Francisco perde volume de água por conta do desmatamento, dizem especialistas
Além dele, o nível baixo do Tio Pajeú, que corta o centro da cidade de Serra Talhada, revela áreas degradadas e sem água. O Pajeú é um rio intermitente, está mais seco neste período do ano, por causa do período mais quente do ano e com menos chuva.
Por causa dessa sazonalidade, a nascente do rio chega a ficar completamente seca, no município de Brejinho, no Sertão de Pernambuco. O problema é que mesmo quando chove, a capacidade hídrica no canal do Pajeú já não é a mesma de anos atrás. De acordo com o estudo da MapBiomas, a Caatinga perdeu mais de 160 hectares de superfície de água nos últimos 37 anos.
Nascente do Rio Pajeú, em Brejinho, no Sertão de Pernambuco, fica seca em determinadas épocas do ano — Foto: Ezequiel Quirino/TV Globo
O professor de geografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Osvaldo Girão, explica que a retirada da vegetação vai diminuindo, aos poucos, as reservas de água em áreas de nascente.
“Essas nascentes têm uma temporalidade. Ela é evidente, a nascente de Brejinho, durante o período de verão, outono. [...] Mas a partir do meio do ano, essa área fica seca praticamente, porque o sistema atmosférico atuante na região, que é a zona de convergência intertropical, não propicia mais o volume de água necessário para a manutenção da nascente, mas há um entendimento, por parte da população que, nas últimas décadas, a erradicação de cobertura vegetal natural vem promovendo uma gradativa diminuição das reservas hídricas na área de nascente, isso é evidenciado pelos moradores”.
O agricultor familiar Givanildo Machado, 43, sempre morou na zona rural de Brejinho. Desde 2008 ele vive numa casa próxima à nascente do rio Pajeú. Do seu terreno dá para ver o caminho que a água do rio faz, quando a água cai, mas a cena do rio margeando as residências da comunidade se tornou uma lembrança do início da adolescência de seu Givanildo.
"Meu avô tinha um roçado aqui e eu vinha aqui deixar o almoço mais minha mãe. Eu tenho um pouco de lembrança do rio escorrendo água ali”, lembrou o agricultor.
Givanildo Machado vive há 43 anos próximo à nascente do Rio Pajeú e sente falta de ver o rio passando caudaloso perto de casa — Foto: Ezequiel Quirino/TV Globo
Risco de insegurança alimentar
Para o professor de geotecnologia da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, e coordenador da Mapbiomas Caatinga, Washington Rocha, a falta de preservação e velocidade do desmatamento podem levar, para as futuras gerações, um outro problema: o aumento da insegurança alimentar.
"Todas essas ameaças, incluindo a desertificação, vêm por comprometer também o patrimônio genético do bioma e gerações futuras vão sofrer com as consequências da perda de biodiversidade. Evidentemente vai ter implicação na segurança alimentar. Além da também segurança hídrica”.
A 57 km de Brejinho, cidade onde fica a nascente do Pajeú, está o município de Ingazeira. A agricultora familiar Luzia Barbosa tem 79 anos e, há pelo menos 50, mora numa casa que fica às margens da PE-275, no trecho entre a cidade de Tuparetama e Ingazeira.
No terreno da casa, planta palma, milho e feijão. Ela vive do que a Caatinga oferece e sente o impacto provocado pelo desmatamento.
"Eu acho que não pode, né? Devia não fazer. Deixar, 'pra mode' não acabar com tudo".
Ao ser questionada "e se acabar?", Luzia é espontânea:
“E se acabar fica difícil. Eu acho que fica difícil porque não tem como a pessoa trabalhar, né?"
Agricultora familiar Luzia Barbosa tem 79 anos, vive em Ingazeira, e teme pelos impactos do desmatamento na Caatinga — Foto: Caroline Rangel/TV Globo