O Bando Mastodontes bate tambores aos orixás em seu primeiro disco “Ciranda Celestial”. O trabalho revela uma Amazônia ancestral, preta e indígena, de ritos e cura. O álbum combina batuque, sons progressivos e cultura popular em dez faixas. O trabalho reflete a marca do grupo, que alia teatro, literatura e música em suas performances que colocam o público para ferver. O lançamento do disco é nesta sexta-feira (22), em todas as plataformas digitais.
“A gente percebeu que na pandemia, com mais de 600 mil mortos, era um momento muito importante a gente convocar a energia dos orixás pra dentro dessa ciranda. E nossa Amazônia transcendental está intimamente ligada à ideia de que existe força na nossa pajelança. Cantamos para nos curar, reverenciamos a espiritualidade existente na ancestralidade de nosso canto. Em síntese, o álbum 'Ciranda Celestial', sonoramente falando, se alinha a uma tríade: é batuque, é progressivo e é transcendental“, explica Luciano Lira, violonista e uma das vozes da trupe, sobre o disco, um projeto realizado com patrocínio do edital Natura Musical, por meio da lei estadual de incentivo à cultura do Pará (Semear).
Fundado em 2015, o grupo é um dos maiores destaques da música contemporânea do Norte. A trupe é diversa, e reúne gente teatro, do audiovisual, da comunicação, do direito e da psicologia - artistas que têm a música como ponto de comunhão. O grupo é formado por Jimi Britto (guitarra), Ana Marceliano (percussão, voz e composição), Fernanda Noura (voz), Luciano Lira (violão, voz e composição), Caio Azevedo (bateria), Katarina Chaves (percussão), Bruna Cruz (percussão, voz e composição), Armando Mendonça Filho (voz, percussão, violino, violão e bandolim) e Rodolfo de Mendonça (baixo).
O primeiro disco de estúdio do grupo chega após dois EPs. Com dez faixas, “Ciranda Celestial” traz as participações da escritora Paloma Amorim; Zélia Amador, um dos mais relevantes nomes do ativismo preto na América Latina; Trio Manari, Banda Nação Ogan; Mansu Nangetu, terreiro de candomblé angola que é referência regional e nacional na cultura religiosa afro-amazônica (representado na obra por Mametu Nangetu, Tata Kamungeji e Tata Kalepensi); e Edimar Silva, contramestre de capoeira angola nas percussões.
“O Ciranda Celestial é a nossa fase mais madura enquanto grupo, musicalmente falando. A gente sente que o nosso som está mudando e resolvemos nos acolher nessas transformações. Temos como referências a sonoridade do Trio Manari, Matheus Aleluia, Baden Powell, Sérgio Sampaio, Baiana System, Nação Zumbi, e todo e qualquer lugar que trabalhe o tambor como protagonista das narrativas. Os tambores do bando materializam para nós o nosso elo de ligação enquanto família mastodôntica, a gente gosta mesmo é de estar juntes para fazer gira com nosso batuque etéreo”, diz Luciano.
Em entrevista ao g1, o Bando conta como o projeto começou, e fala sobre o processo criativo do novo trabalho. Confira:
O Bando é conhecido por fazer apresentações ao vivo de muita energia, de performance. O projeto surgiu do teatro. Conta um pouco sobre essa relação da música e atuação.
Ana Marceliano: O bando começou em 2015, como o projeto Mastodontes, com quatro integrantes. Naquele momento, a gente tocava as trilhas dos espetáculos que a gente fazia. Somos na verdade pessoas de teatro, atores, atrizes, palhaços, que nos encontramos nesse espaço da música. Quem ouve nossa música percebe que há traços de dramaturgia dentro do repertório. As canções são imagéticas. A gente, quando toca, imagina essa canção vindo junto com uma performance, uma cena, uma intervenção. Esse é um traço da nossa poética enquanto banda, ou melhor, enquanto bando. Até o nome traz esse aspecto que vem do teatro, que traz essa questão da coletividade, a forma como a gente se organiza tem mais a ver com grupo de teatro, família, comunidade, do que com uma banda, um projeto que a gente vai lá e só toca junto. A gente partilha laços afetivos.
O Bando traz integrantes de múltiplas "origens": gente do teatro, da psicologia, do direito, da educação. Como equalizar tantas mentes no processo criativo das músicas?
Rodolfo de Mendonça: Temos um processo interessante sobre as composições coletivas. Somos pessoas diversas e com individualidades muito fortes, tanto musicalmente como de conceito. E a gente traz tudo isso na hora de compor e fazer a música. E essas coisas se chocam. Pegamos referencias que cada um traz e a gente choca. Vem Sérgio Sampaio, vem Ave Sangria, vem Matheus Aleluia, cultura de terreiro, cultura popular paraense, samba. Vem muita coisa a gente dá uma misturada. E é um lugar de respeito, porque a gente tratar dessas batidas de terreiros, de cunho espiritual, cada batida tem um determinado sentido, um fluxo. A gente teve cuidado ao pesquisar e entender que tipo de batida poderíamos usar. Tudo isso é a sonoridade do Bando.
Luciano, você diz que quer “colocar os orixás na pista” com esse primeiro disco de estúdio, que traz muito tambor, o fio condutor para contar as histórias reunidas no álbum. Como se deu essa relação de música e fé nesse projeto?
Luciano Lira: Quando eu olho para o “Ciranda Celestial”, vejo três pilares muito forte: a gente fala sobre existencialismo, política e ancestralidade.
A ancestralidade é uma característica muito forte dentro do Bando desde quando começamos. A gente fazia muito teatro de rua e música na rua. E o elemento que aglutinava o coletivo era o tambor, que sempre trouxe para gente essa relação de cura. A gente canta para se curar, toca para ficar melhor. E foi esse elemento que nos ligou ao público.
No momento de criar o “Ciranda Celestial”, a gente acentuou ainda mais essa relação que já temos com o tambor e com os cantos de matriz africana. Resolvemos convocar as energias de alguns orixás para dentro do trabalho. O disco abre com Xaxará, que é uma música feita por Obaluaê, um orixá que trata das doenças e trata das curas, a gente percebeu que na pandemia, mais de 600 mil mortos, e era um momento muito importante a gente convocar a energia desse orixá pra dentro dessa ciranda. Acho que as pessoas precisam ouvir isso, acho que a gente precisa se fortalecer dentro desses lugares de ancestralidade. A gente canta também para Xangô, que é um orixá da justiça. A pandemia também trouxe isso, esse dado das injustiças sociais, que ficaram mais latentes. Quem mais morreu na pandemia foi o povo preto e pobre. A gente precisa colher desses ensinamentos e sabedoria que o orixá Xangô traz. A gente também canta para Zambi, um deus criador de todas as coisas para o povo bantu.
Quando eu digo que queremos trazer os orixás para pista quer dizer trazer os orixás para dentro do nosso cotidiano. Nossa música não quer converter ninguém, mas vai numa corrente para que as pessoas, ao ouvir nosso som, que as pessoas se conectem com essa energia que os orixás trazem para dentro da nossa vida.