Moradora de Paraisópolis mostra panela vazia durante protesto em São Paulo — Foto: André Penner/AP Photo
São pouco mais de 4 km de trajeto de casa até o trabalho, passando sempre pelo mesmo cruzamento. E são cada vez mais crianças, ali, com placas de papelão que gritam silenciosas para nossa consciência seletiva.
Ele não devia ter mais de 16 anos e, de fora, pelo vidro, observou um saco no banco do passageiro. Levou as mãos na direção da boca, quando os olhos já suspeitavam que havia comida. E havia. Eram frutas para o lanche da tarde. Paralisei. Era quinta-feira e, naquele dia, eu faria um debate na GloboNews sobre... fome.
A fome aumenta no país. A fome não devia existir. Naquela mesma tarde, Paulo Guedes disse que o governo estuda formas de direcionar alimentos desperdiçados pelas famílias brasileiras aos programas sociais. E ainda criticou o que chamou de “excessos” nas refeições dos brasileiros.
“A gente pode dar um incentivo para que tudo isso que seja perdido, ao invés de jogado fora, seja transformado e justamente canalizado para os programas sociais. Como se fossem postos de atendimento, para que isso possa ser endereçado aos mais necessitados”, disse.
Quem está perdido é o Brasil, na ausência de uma política de estado, não de governo, que garanta o básico para todo mundo. O agronegócio bate recordes de produção.
“O problema da fome não tem nada a ver com desperdício. A gente tem que evitar o desperdício, e uma maneira é aprendendo a cozinhar. Essa fala do ministro é um pouco na defensiva, tentando jogar o problema pra um lugar que não existe. É um absurdo querer alimentar quem está passando fome com esse tipo de sobra... Não é porque a pessoa está passando fome que ela vai comer qualquer coisa, pelo contrário”, disse Rita Lobo, uma das nossas convidadas para o debate da última quinta-feira que você pode assistir aqui ou abaixo.
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Fome tem a ver com pobreza, exclusão. O impacto da pandemia no mercado de trabalho já gerou uma desigualdade recorde no país, desde 2012. Na prática, diferença que separa os ganhos de ricos e pobres ficou ainda maior durante a crise sanitária. Os dados foram divulgados esta semana pelo centro de estudos FGV Social.
Insegurança alimentar é quando não há garantia de que teremos o que comer na próxima refeição. Isso é a realidade, de hoje, para mais da metade da população brasileira – 117 milhões de pessoas, brasileiros como eu e você.
A culpa é minha, é sua, é nossa. Enquanto tiver uma pessoa passando fome no país, precisamos nos sentir parte da responsabilidade por isso. A mensagem veio de Daniel Balanban, representante do programa da ONU de combate a fome no Brasil, outro convidado da mesa.
“O primeiro passo é indignação. Começar a falar sobre o problema. É incompreensível que nós tenhamos pessoas que morrem de fome. Nós temos que conversar sobre isso, achar meios, cobrarmos dos nossos líderes. Hoje vemos muitas organizações, igrejas, iniciativas privadas, mas não vejo os líderes discutirem esse assunto”, disse Daniel.
Fome tem a ver com falta de recurso. Não só de comida. Na segunda-feira, mais de mil botijões de gás foram distribuídos para mulheres de Salvador, no programa Mães da Favela, durante a Pandemia.
A iniciativa da Cufa (a Central Única das Favelas), que também distribui alimentos e kits de higiene, impacta diretamente mulheres chefes de família em mais de 5.000 comunidades do país.
Kalyne Lima, vice-presidente da organização, foi a terceira convidada que compôs a mesa: “Não é um problema de quem passa fome, mas de toda a sociedade. Quando a gente entende os privilégios que possui, pode ressignificar a nossa jornada de forma individual com nossa consciência humana, entender que vivemos num planeta que precisa de todos nós. A falta de alimentos, a diferença social, gera consequências que vão atingir todo mundo. Não pode fingir, assumir uma postura de isenção”.
Na sexta-feira, o mesmo caminho, o mesmo cruzamento. Um embrulho extra no banco, janela do carro aberta e a disposição para uma conversa. A fome tem a ver com entender as razões de ela existir.