Quando ela observa a leveza da praia depois de algum tempo, um mal estar começa a se formar, por contraditório que seja. A paisagem parece desencaixada de tudo o que ela testemunhou do outro lado do Brasil.
“Teve um momento específico no hospital. Eu estava com uma colega psicóloga no corredor e havia três bifurcações. Em cada uma delas tinha um corpo, de um paciente com Covid. Eu não podia andar, entende? Não poder seguir. Ser desterritorializada. Eu precisei parar e sentar.”
A cena foi descrita por Andrea Chagas, uma psicóloga que acaba de voltar para o Rio de Janeiro depois de quase três meses de atuação no acolhimento de profissionais da saúde no Amazonas. Essa era a primeira imagem em sua mente diante da expressão “catástrofe humanitária”.
— Foto: MSF
Por sinal, essa foi a expressão usada para definir a situação do Brasil pela organização Médicos sem Fronteiras numa carta aberta.
A avaliação da entidade - que presta assistência médica em dezenas de países que enfrentam diferentes tipos de turbulência - é de que a falta de diretrizes, coordenação, planejamento e apoio irrestrito à ciência causou perdas ainda maiores.
“Não aprendemos com as lições. O mundo não consegue entender por que não fizemos diferente quando pudemos”, me disse Antônio Flores, infectologista do MSF, durante entrevista na GloboNews.
Foram semanas de muitos abraços, conversas, todos os apoios possíveis, principalmente dentro do Hospital 28 de Agosto – referência na rede de urgência e emergência do estado - e que se tornou símbolo do colapso na Pandemia.
— Foto: MSF
Um dos locais onde o oxigênio faltou, onde médicos, enfermeiros e técnicos e familiares de pacientes, viveram o inimaginável. Catástrofe é uma rotina com a expectativa de vida em brevidade constante.
Ainda bem que acolher gera acolhimento. Escutar gera escuta. E aqui estamos nós, pra pensar um pouco mais. Catastrófico, hoje, também é não refletir.
Andrea Chagas foi enviada pelo Médico Sem Fronteiras para o suporte de saúde mental daqueles que passamos a chamar de heróis.
São mais de 23 anos de atendimentos pelo SUS, em comunidades vulneráveis do RJ, mais de uma década atuando na própria entidade - onde hoje é vice-presidente do conselho - mas nada a havia preparado o suficiente para viver aquilo. Nas palavras dela, “vivências-limite, e algumas, inclusive, com colegas de profissão".
Um dos trabalhos dos psicólogos era fazer chamadas de vídeo entre pacientes e familiares.
“É um lugar de vínculo dificílimo, muito distante das nossas práticas. Teve um momento, quando um psicólogo tinha acabado de fazer uma interação desse tipo, ele voltou pra sala e aquele paciente tinha ido a óbito”, recordou.
— Foto: MSF
Em fevereiro, já em Tefé, cidade no interior amazonense, lembra de uma técnica de enfermagem frustrada com a recusa de uma moradora da cidade para tomar a vacina contra a Covid-19.
Dizia que a agulha implantaria um chip em seu corpo e ela seria transportada "para o inferno". Ainda complementou que havia recebido essa informação em uma mensagem de celular. Andrea Chagas nunca tinha visto e sentido, daquela forma, como as fake news colocam a vida das pessoas em risco.
Membros do Médico sem Fronteiras continuam atuando no Amazonas e em outros dois estados brasileiros na região Norte.
Há uma preocupação com as vidas afetadas pela Covid-19, mas também com as marcas profundas que já aparecem na alma desses trabalhadores exaustos.
Os efeitos posteriores dessa tragédia urgente virão pra todos nós. Estamos flexibilizando o que não pode ser flexibilizado: o valor da vida. Toda e qualquer vida. Mas enquanto existimos, podemos.
“Estou vivendo uma vida que está valendo ser vivida. O nosso trabalho só acontece porque é possível. Só se sai de grandes catástrofes quando o despertar é coletivo, só acredito no coletivo.” Catastrófico é não refletir.