Pela lente da gente

Por Aline Midlej

Aline Midlej é apresentadora do Jornal das Dez, na GloboNews


Profissional de saúde em corredor no Hospital das Clínicas, em Porto Alegre — Foto: Jefferson Bernardes/AP Photo

E a vida voltou. Chegou sutilmente no que parecia ser mais um dia de luta naquele quarto. Mais um dia de movimentos reduzidos, falando com os olhos, respirando pelo tubo de oxigênio. Acreditando. A danada chegou dentro de um envelope, foi se revelando aos poucos, apesar de o remetente estar muito claro. O fisioterapeuta intensivista Roni Rodrigues contou, em forma de carta, que aquela era uma manhã de vitória para Regina Pires, de 56 anos, depois de dez dias internada num hospital de Fortaleza. Ela teve alta médica. Veja no vídeo abaixo:

Equipe médica usa cartazes para informar paciente com Covid-19 que ela será extubada

Equipe médica usa cartazes para informar paciente com Covid-19 que ela será extubada

As imagens viralizaram porque fizeram um bem enorme a cada um que deu o clique. Os integrantes da equipe, procurados por jornalistas, contaram que levar carinho de forma lúdica é rotina. Fabricam nuvens de afeto numa tempestade chamada Pandemia e que nunca deixou tantos à deriva. Março se despede como o mês mais mortal de todo o período.

“Vi florestas devastadas, terras indígenas devastadas pela prepotência. Agora, famílias devastadas, área médica devastada. E a população consciente devastada pela indiferença... Não me iludo, mas sei que vale a pena confiar na força dos corações amorosos”, me escreveu Ermínia, uma seguidora nas redes sociais. Eu havia acabado de postar sobre o número recorde de mortes em São Paulo nesta sexta-feira: 1.193 em 24 horas. Falei sobre a devastação de sensações que me abatiam nesta cobertura diária. Mas fiquei com a esperança em forma de uma resposta pra mim. Ermínia não sabe, mas me enviou uma carta da vida.

O Ministério da Saúde conta com suprimentos do “kit intubação”, aquele que manteve Dona Regina perto da vida, na capital cearense, suficientes para mais alguns dias, informou a Anvisa. Os estoques estão baixos e o sentimento de impotência chega ao insuportável. Em São Carlos, no interior de São Paulo, mais de vinte profissionais da Santa Casa pediram demissão porque não havia mais anestésicos para o atendimento de pacientes com Covid-19.

São mais de seis mil brasileiros aguardando, neste momento, um leito de UTI para a doença. E a Fiocruz alerta que o colapso não foi produzido em março de 2021, mas ao longo de vários meses, “refletindo os modos de organização para o enfrentamento da pandemia no país, nos estados e nos municípios", afirmava o último boletim. A superação dos 300 mil mortos leva a tragédia brasileira para outro patamar e nos exige respeito máximo pela vida (do outro).

Exaustos com a desinformação, médicos brasileiros se juntaram na campanha #canceleacovid. Em vídeos nos lembram que, mesmo havendo novos leitos, já não há equipes para o trabalho. Reafirmam que estão ali para a ajudar, mas que a solução principal está nas mãos dos 210 milhões de brasileiros. Pedem a ajuda de influenciadores, comunicadores, para amplificar a conscientização sobre a urgência do uso de máscaras e o respeito ao distanciamento social.

Desabafos coletivos e solitários. Solidários. A dra. Sabrina Ribeiro, coordenadora da unidade crítica de emergências de um dos maiores hospitais de SP, fez o seu no meio de um plantão. Já não suporta o gasto de tempo e energia com familiares que questionam o tratamento dado aos pacientes. Contou-me que muitos insistem em remédios sem eficácia comprovada: “Os residentes sofrem ainda mais pressão. Nunca imaginei que teríamos que explicar porque não usar substâncias que não funcionam e podem ser danosas. Cada vez que a gente precisa se posicionar é um desgaste”, me disse.

A devastação é desesperança pela falta de responsabilização, e porque já não parece haver lugar seguro, nem para as informações corretas. O pedido da médica foi feito sem rodeios, em forma de texto. É a carta de Sabrina pela vida. Foi escrita em meio aos atendimentos, quando uma angústia tomou seu corpo:

Por favor, só pare!

Estamos exaustos.

Estamos exaustos de ver a dor de pacientes que perderam familiares e estão eles mesmos internados e em piora.

Estamos exaustos de ver o dobro de pacientes que o usual com metade dos recursos.

Estamos exaustos de ver gestantes com suas vidas e as de seus filhos ameaçadas pela COVID.

E você NÃO está ajudando.

Você atrapalha quando espalha fake news sobre vacina e tenho que convencer meus próprios familiares a se vacinarem.

Você nos exaure quando temos que passar minutos preciosos explicando pras pessoas porque elas não estão recebendo um Kit COVID que não funciona e pode MATAR.

Você que é empresário ou publicitário ou autônomo e simplesmente decidiu que é especialista em tratamento de COVID, CALE SUA BOCA.

Você que nem mora no Brasil e sai falando que “não está tão ruim assim”, CALE SUA BOCA.

Você não está sendo inofensivo.

Você está sendo tão deletério como a figura infame que defende.

Não atrapalhe.

Não atrapalhe.

Pelo amor de Deus, NÃO ATRAPALHE.

Nos poupe. Tá difícil o suficiente sem você. Por favor.

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