De braços estendidos, pai reza em frente ao hospital onde o filho está internado para tratar a Covid-19 — Foto: Reprodução/EPTV
Há mais de um ano não dou um beijo no meu pai, período de seu isolamento do mundo para não morrer e não colocar os outros em risco. Choro de saudades, de medo, de culpas que partem de lições ainda em andamento. E no dia em que esta coluna é escrita, meu velho se vacinou. Mas nem comemorar – um pouco – parece justo. A deficiência de caráter da "nação Brasil" se impõe.
Em uma democracia cada um pode ter uma resposta diferente para a mesma situação. A divergência deve ser acolhida, refletida e jogada no pavimento da evolução social. Mas o entendimento sobre o que é respeito à vida, não. É quando caímos num labirinto ético, e a conivência se traveste de precaução. Em algum momento, nos perdemos em repetições, enquanto deboches oficiais são aplaudidos por uma parte da sociedade que, simplesmente, não consegue sentir. Isso está acontecendo agora, durante a maior crise humanitária da história recente. Na próxima coluna estaremos bem mais perto das 300 mil VIDAS perdidas nesta Pandemia.
Olgária Matos, um dos maiores nomes brasileiros da filosofia, diz que quando nós acreditamos muito em algo, com bastante força, aquilo se torna a própria realidade. Mas como tantas consciências escapam de tamanha devastação coletiva? As filas por leitos públicos de UTI só aumentaram na última semana – apenas na capital paulista, a cidade mais rica do país, são quase 500 pacientes - os recordes de óbitos e casos só sobem, também. E as consequências da omissão se escancaram em forma de morte.
A rede privada também não dá mais conta das demandas da desunião. Convênio médico, dinheiro na conta bancária, já não camuflam ninguém no atual campo de guerra. Os tiros estão chegando aos milhares por dia. O coronavírus acumula vitórias, ganha espaço, se fortalece. A gente só se afasta.
O médico Rodrigo Borsari compartilhou comigo, na GloboNews, a dificuldade de compreender as duas realidades impostas a cada manhã em que ele entra pela porta do Hospital Nipo Brasileiro, em São Paulo, onde todas as vagas de terapia intensiva estão ocupadas: “Olho as ruas e vejo as pessoas se comportando como se nada estivesse acontecendo e os hospitais sem condições de atender novos pacientes, os profissionais exaustos”, desabafou.
Trabalhadores essenciais para além do limite imaginável. Essencial é a verdade, e tem uma escancarada: são quase três mil mortos a cada 24 horas.
Se você ou alguém que você ama for infectado pela doença nos próximos dias, ou mesmo acometido por qualquer outra enfermidade, dor, as chances de não ter atendimento adequado são imensas em boa parte do país. Falta ar porque somos abafados por agressões diárias, de onde deveriam partir cuidado, direção. Na França, o governo avaliou que manter as lojas de música abertas poderia ajudar na adaptação a mais um lockdown. Questionável? Sim. Um interessante sinal de atenção? Sim.
Invejo, acho esperança em cada braço vacinado... Até o próximo recorde noticiado em minha voz, uma nova manchete de descontrole e incerteza. De cada quatro pessoas que morreram em decorrência da Covid-19 no mundo esta semana, uma estava aqui. O Brasil tem menos de 3% da população mundial e, hoje, é responsável por 22% de todas as novas mortes e 16% dos novos casos de Covid registrados no mundo. Apenas as expectativas ruins se confirmam. Pergunto à sociedade que componho, ao Congresso Nacional, ao Judiciário, ao jornalismo profissional: até quando? O que mais precisa acontecer?
Aos médicos de Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá, que improvisaram mangueiras de acesso a oxigênio com os próprios estetoscópios, aos profissionais de Olinda que passaram a atender em UTIS improvisadas dentro de contêineres, e aos mesmos corpos sempre sacrificados no transporte público, todo meu respeito e tentativa de comprometimento. Meu pesar.
No epicentro do caos, a omissão também se traveste de cautela.