Pela lente da gente

Por Aline Midlej

Aline Midlej é apresentadora do Jornal das Dez, na GloboNews


Ter respeito pressupõe atenção, cuidado, comprometimento. É praticar a deferência, consideração e cumprir com o que lhe cabe. Uma pergunta é inevitável diante de um dos momentos mais grave da Pandemia que acontece agora, no Brasil: o que aumentou a conta para mais de 215 mil brasileiros mortos?

Qual a contribuição da mentira, do ódio, do desprezo à dor alheia? Continua sendo difícil medir, mas os cientistas do país já dividem seu tempo em busca de algumas respostas.

Para Pedro Hallal, epidemiologista e autor de uma carta publicada na renomada revista científica "Lancet", o mais estarrecedor é imaginar os números do Brasil se eles estivessem dentro da média mundial.

Não, não estamos falando de um trabalho de contenção do vírus como o feito pela Nova Zelândia. Estamos falando de estar dentro da média mundial.

Hallal estima que o número do Brasil seria algo como 57 mil em vez dos atuais 215 mil.

Estamos falando de mais de 150 mil vidas que poderiam ter sido poupadas.

"Ou seja: mais de 150 mil pessoas morreram no país pela falta de uma política clara de enfrentamento à Pandemia”, diz Hallal, que também é reitor da Universidade Federal de Pelotas e esteve à frente de um dos maiores mapeamentos sobre a população já infectada pelo novo coronavírus no Brasil.

No texto para a "Lancet", ele aponta as razões que levaram o país ao segundo lugar em número de mortes e de terceiro em casos.

O epidemiologista lembra o risco da falta de vacinas, a falta de rastreamento de casos e de uma campanha nacional promovendo o distanciamento social, nossa maior proteção.

Joe Biden e sua mulher Jill, Kamala Harris e o marido Doug Emhoff participam de cerimônia em homenagem aos mais de 400 mil mortos pela Covid-19 nos EUA, em Washington DC, na terça-feira (19) — Foto: AP Photo/Evan Vucci

Não há campanha, não há unidade em torno dessa guerra que só poderia ter um lado, não há união – essa última a palavra mais usada por Joe Biden nos seus primeiros dias de governo. Não por acaso.

“Foi o primeiro momento que os Estados Unidos, enquanto nação, pararam para homenagear a morte das 400 mil pessoas e os enlutados. Nenhuma morte havia sido oficialmente honrada até então. Lembrando que para cada morte existem entre 4 e 10 enlutados, ou seja, ele falou diretamente com milhões de pessoas enlutadas”, me lembrou Tom Almeida.

Ele é criador do Movimento Infinito. A iniciativa busca promover diálogo sobre a morte, o luto, temas sempre cercados de tabus que só nos afastam da nossa humanidade, da nossa consciência, inclusive do coletivo.

Honrar é dar crédito, merecimento, exaltar, glorificar. Joe Biden começou o seu governo honrando o grande luto do seu país, que é do mundo. Olhei aquelas mais de 400 mil luzes espelhadas em frente ao Lincoln Memorial durante a transmissão na GloboNews e me arrepiei, desejei uma liderança empática, humana. Desejei que nos uníssimos num ritual diante dos nossos.

Tom me diz que, nos Estados Unidos, assim como aqui, havia um vácuo a ser preenchido. O nosso continua. Na quarta-feira, durante a cerimônia de posse em Washington, houve um reconhecimento sobre a importância de cada uma daquelas vidas.

“As pessoas se sentiram vistas, com suas dores validadas. O luto é um processo natural humano resultado do rompimento de um vínculo afetivo importante. Ele ocorre de forma dual, ora voltado para a perda, ora voltado para o enfrentamento. Biden, de certa forma, demonstrou isso na prática honrando claramente as 400 mil vidas e também se comprometendo a vacinar 100 milhões de pessoas nos primeiros 100 dias do seu governo”, completou.

Perdas e reparações, aprendi. Outra lição que fica está em um trecho do discurso, em que Joe Biden diz: “Para curar, devemos nos lembrar. Às vezes é difícil de lembrar, mas é assim que curamos. É importante fazer isso como uma nação”.

Tom Almeida acredita que o exemplo do novo presidente americano, antagônico ao seu antecessor em tantos aspectos, acende uma esperança pra gente, aqui, onde não se honra a memória, onde as histórias se perdem e, por consequência, nos perdemos.

“A esperança é de que podemos ter um líder humano e respeitoso que, independente da sua linha política ideológica, tenha capacidade de unir o mundo dividido que vivemos hoje.”

A empatia, o engajamento e a representativa simbolizados em Joe Biden e Kamala Harris não os blinda de críticas e cobranças durante a gestão que acabam de iniciar, muito pelo contrário. A promessa de união, respeito e cuidado vai ser cobrada.

Precisamos exigir isso no Brasil. A vacinação vai se estender até 2022, o processo apenas começou e no fim dele está uma nova vida que já não será como a de antes da Pandemia. Não tem como ser.

Encerro com uma última fala do novo presidente norte-americano que restaurou a humanidade na maior potência mundial e que exalta o sentimento norteador dos textos desta coluna, a empatia: “Vamos nos colocar nos sapatos de outras pessoas, nem que seja só por um momento. Não há nada do que a fé não possa fazer”.

Vamos respeitar a vida, mas não apenas a nossa.

Veja também

Mais lidas

Mais do G1
Deseja receber as notícias mais importantes em tempo real? Ative as notificações do G1!