Pés descalços na calçada da Central do Brasil — Foto: Marcos Serra Lima/G1
Segunda-feira (10) desafiei o novo normal. Saí de casa mesmo debaixo de chuva, que traz frio a um mês tão calorento. Peguei guarda-chuva, calcei botas, e fui para a rua mesmo depois de ter lido que as autoridades aconselhavam cariocas a não saírem de casa se aqui chovesse tanto quanto choveu em São Paulo.
Não estimulo ninguém a agir como eu. Naquele momento tive uma ligeira crise de desobediência civil. Cansada de beber água com cheiro de barro e ouvir autoridades dizerem que “é alarmismo”. Cansada de perceber pelas esquinas da minha cidade o aumento constante de pessoas miseráveis e de ter ouvido a autoridade máxima da nação dizer que “não existe fome no Brasil”. Cansada, enfim, de observar a velha especulação imobiliária, em conivência com o poder público, torcer o nariz para a necessidade de preservar alguns terrenos sob pena de se ter uma cidade cada vez mais vulnerável às grandes tempestades ou secas, o novo normal do clima. Cansada de quem nega, insistentemente, as mudanças climáticas.
Feito o desabafo, quero dizer logo que nada aconteceu comigo, felizmente. Fui e voltei de transporte público e sem grandes atropelos, a não ser uma poça ou outra gigante que precisei atravessar. E me angustiei, como de costume, quando passei por famílias inteiras sob marquises, tentando se esquivar e proteger seus colchões do aguaceiro.
É, a gente se acostumou a ver a miséria humana pelas calçadas, mas não devia. E a pergunta recorrente entre amigos é: o que fazer para mudar isto?
Talvez em busca de uma resposta, saí para ir à sede do Instituto Clima e Sociedade atendendo a um convite para debater os resultados de um estudo sobre desigualdades sociais e eleições no Brasil. E foi bom ter ido. Como sempre, compartilho com os leitores as informações e tento ampliar, assim, a rede de reflexão.
Como disse Pedro Telles, o pesquisador que fez entrevistas qualitativas e deu o nome a seu estudo de “Democracia de quem?” (pode ser acessado aqui), “acabar com a desigualdade” é uma frase hoje quase tão usada quanto “conseguir a paz mundial”. E, como comprovam aquelas pessoas com quem dividi uma parte da calçada para chegar ali – elas, deitadas sobre trapos, eu a caminhar – virou uma intenção enormemente distante de gestos afirmativos para acabar com o problema.
Assim sendo, é importante tentar ir à raiz da questão e, quem sabe, talvez uma ponta dela esteja mesmo no sistema que dá poder a homens e mulheres que podem – ou não, como se vê – mudar as coisas. Dados expostos já no sumário do trabalho de Pedro Telles escancaram o cenário indigesto:
“No Brasil, a quarta maior democracia do mundo, 85% dos membros do Congresso são homens e 76% são brancos, deixando mulheres, negros e indígenas drasticamente sub-representados. O patrimônio declarado médio de um congressista é de R$ 3,6 milhões, sendo que 49,7% deles possuem mais de R$ 1 milhão, o que os coloca no grupo dos 0,1% mais ricos da população, enquanto 27% dos brasileiros vivem na pobreza”.
Fachada do Congresso Nacional, a sede das duas Casas do Poder Legislativo brasileiro, durante o amanhecer. As cúpulas abrigam os plenários da Câmara dos Deputados (côncava) e do Senado Federal (convexa), enquanto que nas duas torres - as mais altas de Brasília, com 100 metros - funcionam as áreas administrativas e técnicas que dão suporte ao trabalho legislativo diário das duas instituições. Obra do arquiteto Oscar Niemeyer. — Foto: Pedro França/Agência Senado
Isto não acontece só no Brasil, mas nem de longe nos serve como consolo. E é bom detalhar: metade do Congresso Nacional tem uma renda média de 1 milhão de reais, enquanto a renda do cidadão médio é de R$ 60 mil. Só na cidade de São Paulo há 24 mil vivendo nas ruas. Aqui no Rio, são cerca de 15 mil, e a Prefeitura só tem abrigo para cerca de duas mil pessoas.
“O impacto das desigualdades nas eleições é um problema sistêmico, não tem solução mágica. Há falta de informações sobre isto”, disse o pesquisador.
Pedro Telles alavancou, com base nas entrevistas qualitativas que fez com candidatos nos períodos pré e pós eleições – e alguns eleitos - e em referências bibliográficas, sete aspectos que julgou importantes para a questão que quis enfatizar.
O primeiro aspecto é a falta de acesso dos candidatos negros e das candidatas mulheres a pessoas que tenham dinheiro para apoiar sua candidatura:
“Mesmo as candidaturas de mulheres, negros e pessoas de baixa renda que têm acesso a redes mais ricas ainda podem enfrentar dificuldades para arrecadar verba, porque não se encaixam na imagem padrão de um político de sucesso. ‘Estamos tão apegados à imagem do homem branco limpinho e bem educado”, afirmou uma das pessoas entrevistadas”, diz o texto do trabalho.
A disponibilidade de tempo é o segundo aspecto importante ressaltado na pesquisa. Esta é uma condição que impacta sobretudo os candidatos que precisam continuar trabalhando ou as mulheres que não têm pessoas que possam ajudá-las a fazer o trabalho doméstico para que se dediquem à candidatura. Aqui tem uma informação importante: em 2016, não se sabe o motivo, o período oficial da campanha eleitoral foi reduzido pela metade, de 90 para 45 dias. É difícil que um candidato consiga se apresentar ao eleitor nesse curto espaço de tempo, se já não tem uma extensa rede ou se não estiver concorrendo à reeleição.
Um parêntesis, uma observação minha: a vitória do atual governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, que começou no ranking de candidatos com uma posição inexpressiva, e recebeu 41,2% de votos já no primeiro turno corrobora este dado. Witzel não era conhecido do grande público, mas recebeu apoio do presidente Jair Bolsonaro e sua rede. E venceu.
Witzel vota no RJ — Foto: Jose Lucena/Futura Press/Futura Press/Estadão Conteúdo
Falta de apoio do partido é o terceiro aspecto que merece atenção na pesquisa de Pedro Telles. Os candidatos “escolhidos” pelo partido são aqueles que têm condições de ganhar ou os homens brancos e/ou de origem privilegiada, o que deixa muitos de fora. A tal ponto que a experiência de se tornar candidato, para um dos entrevistados, é algo que ele nunca mais quer repetir na vida. Não custa lembrar que vivemos num país no qual, segundo o IBGE, 40% de toda a renda estão concentrados nas mãos de 10% da população.
O risco de violência, hostilidade e discriminação também foi um dos fatores que apareceu muito fortemente na pesquisa. Não é à toa: entre 1998 e 2016, pelo menos 79 candidatos foram assassinados no Brasil, tornando essa grave forma de violência um fenômeno nacional. O caso de Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018, num crime ainda sem resposta, como se vê, é um de muitos. Diante de um cenário desses, torna-se difícil mesmo imaginar alguém, com o mesmo perfil da vereadora morta, querer ser candidato. A menos que os partidos colaborem, implementando políticas rígidas de combate a esses riscos.
A maioria das pessoas que responderam as perguntas de Pedro Telles ressaltou a necessidade de políticas de ação afirmativa por parte dos partidos. E muito também se falou quanto aos trâmites burocráticos, que tornam difícil a candidatura se a pessoa não tiver uma estrutura formada por advogado e contador.
Foi bom o debate. E me deixo pensando sobre os conceitos de poder (aquilo que afasta alguém do que realmente pode) e potência que, segundo filósofos como Gilles Deleuze, Espinosa e Frederick Nietsche, imprime “relações que se constituem por harmonias delicadamente encontradas onde os dois ganham”. É para refletir. E muito.