folk matinal
Já entramos na tarde de sábado, dá para ouvir ao longe o esquenta do bloco Simpatia É Quase Amor, mas as últimas horas foram de Beck a… Byrds.
Com alguma simpatia e doses de reserva, acompanho a carreira de Beck desde “Odelay”, o incensado disco de 1996 que transformou o rapaz de 26 anos num dos caras do pop. Beck David Campbell, que então já tinha três outros álbuns lançados, é em certo sentido como Prince (Rogers Nelson), multitalentoso e disperso. “Morning phase” (Fonograf/Capitol), que terá lançamento oficial nesta segunda-feira (24), reforça minha simpatia, tem muito do talento de Beck, agora focado num folk psicodélico. O novo disco caiu na rede em fins de janeiro e desde o dia 16 de fevereiro pode ser ouvido por streaming neste site. Completando duas décadas de carreira discográfica – “Mellow gold”, sua estreia, é de 1994 -, o folk sempre foi uma das referências de Beck, mesmo que numa relação de amor e ódio, ao lado do antagônico hip-hop. E, claro, do rock. Em 1989, quando trocou sua Los Angeles natal por Nova York, como contou em entrevista recente, ele tanto frequentava a cena alternativa (The Melvins, Nirvana, Jon Spencer) quanto a de veteranos do folk como Dave Van Ronk e Ramblin’ Jack Elliott.
Coincidentemente, os dois últimos, influentes figuras da cena folk dos anos 1950 e 60, estão presentes em muitos trechos do livro de Ben Sidran que me sequestrou, lido num iPad de primeira geração, ainda sem câmera e meio que largado. Van Ronk (descendente de irlandeses no Brooklyn, apesar do nome holandês) foi uma das referências de Bob Dylan e, agora, também dos irmãos Coen para o filme “Inside Llewyn Davis”), assim como Ramblin’ Jack Elliott (nascido Elliot Adnopoz no Brooklyn), que muito antes de Robert Allen Zimmerman trocou de nome, pegou um violão e foi para as estradas também inspirado em Woody Guthrie - aquele cujo violão trazia a frase “Esta máquina mata fascistas” .
Mas como a capa já explicita, o folk de “Morning phase” é ensolarado, psicodélico, remete aos fins dos 1960, início dos 1970, da mesma forma que “Croz” (Blue Castle Records), o novo do velho David Crosby que também anda hospedado aqui em casa. No disco novo de Beck, o violão acústico conduz as canções, com eventuais vinhetas orquestrais arranjadas por seu pai, David Richard Campbell, e além de Crosby (“Heart is a drum” parece sair de um disco de Crosby, Stills & Nash) há ecos de Simon & Garfunkel (na pastoral “Turn away”), Donovan (em “Don’t let it go”), The Band (em “Country down”).
Esta última, country até no nome, também remete ao mais obscuro The Flying Burrito Brothers, grupo country-rock no qual estava Gram Parsons antes de ser chamado para os Byrds, que àquela altura já tinham expulso Crosby…
Crosby poderia ter morrido após o clássico dos clássicos do folk psicodélico “If I could only remember my name” que lançou em 1971. Talvez fosse cultuado hoje como alguns dos folkies que partiram cedo (do britânico nascido na Birmânia Nick Drake ao americano Gram Parsons). Não faltaram chances, ele afundou nas drogas de todos os tipos, fez um transplante de fígado em 1994, passou um ano preso por porte de armas (que ainda adora) e drogas (heroína, cocaína, álcool, das quais se livrou, voltando recentemente à maconha, como contou em entrevista para a “Rolling Stone”). “Croz”, após 20 anos sem um disco solo, prova que Crosby também sobreviveu artisticamente. Belas e suaves camadas de vocais, cordas (guitarra, bandolim, dobro…), teclas, percussão que gravou com um grupo de músicos liderados por James Raymond, multi-instrumentista, co-produtor e filho (que só reencontrou homem feito). Com pontuais participações, como as de Mark Knopfler (guitarra em “What’s broken”) e Wynton Marsalis (solo de trompete na viajante “Holding on to nothing”).
Na quase recaída folk dessa semana, “Cedar & fire”, EP independente com cinco faixas já no iTunes do trio Noahs, também soa bem. Dois irmãos, Murilo (voz e violão) e Danilo Brito (baixo), que na adolescência viveram algum tempo no Canadá, mais o produtor, vocalista e multi-instrumentista Bruno Bastos. Brasileiros mas cantando em inglês, com influências, como me conta Danilo em mensagem, do “indie folk de Of Monsters and Men, Mumford & Sons e The Lumineers”. Não acompanho a cena folk contemporânea e tais referências me soaram como David Crosby, The Band, Van Morrison (de “Astral weeks”). Ou seja, os Noahs são realmente interessantes.
Para fechar (enquanto troco os três discos digitais por uma versão vagabunda em CD de “Fifth dimension”, dos Byrds) já devorei as 502 páginas virtuais de “There was a fire”, no qual o compositor, cantor, arranjador Ben Sidran tenta explicar a força dos judeus na música dos EUA e é leitura apaixonante para quem se interessa por música. Entre os senões, a ausência de qualquer menção a Laura Nyro, a cantora e compositora de Nova York, também de família judia, que ao surgir no início dos anos 1960 encantou tanto a Stephen Sondheim quanto a Bob Dylan, então de universos opostos na música. Aliás, sobre Dylan, ao listar suas influências, Sidran bota entre eles o “judeu-alemão” Bertolt Brecht. Mas o dramaturgo alemão era filho de protestante e católica, mesmo que detestado pelos nazistas por seu marxismo. Detalhe que em nada tira o interesse do livro de Sidran.