Quem foi o verdadeiro Robert Oppenheimer, criador da bomba atômica — Foto: GETTY IMAGES
Eram as primeiras horas do dia 16 de julho de 1945. Robert Oppenheimer esperava em um bunker de controle por um momento que mudaria o mundo.
A cerca de 10 km de distância dali, ocorreria o primeiro teste de uma bomba atômica do mundo – o chamado teste Trinity – nas areias brancas do deserto de Jornada del Muerto, no Novo México (Estados Unidos).
Oppenheimer era o retrato da exaustão nervosa.
Ele sempre foi magro, mas três anos como diretor do “Projeto Y” (o braço científico do “Distrito de Engenharia de Manhattan”, que havia projetado e construído a bomba) fizeram com que seu peso caísse para apenas 52 kg. E, com 1,78 m de altura, ele parecia extremamente magro.
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Naquela noite, Oppenheimer havia dormido apenas quatro horas. Sua ansiedade e a tosse causada pelo fumo o mantiveram acordado.
Aquele dia em 1945 é um dos diversos momentos importantes da vida de Robert Oppenheimer descritos pelos historiadores Kai Bird e Martin J. Sherwin na sua biografia American Prometheus (“Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano, Ed. Intrínseca, 2023), publicada em 2005. O livro foi a base do novo filme biográfico Oppenheimer, que estreia no Brasil e nos Estados Unidos em julho.
Nos minutos finais da contagem regressiva, segundo Bird e Sherwin, um general do Exército observou o estado de espírito de Oppenheimer bem de perto: “o Dr. Oppenheimer... ficou mais tenso quando soaram os últimos segundos. Ele mal respirava...”
A explosão ofuscou o sol. Com potência equivalente a 21 mil toneladas de TNT, aquela foi a maior detonação já observada. Ela criou uma onda de choque que foi sentida a 160 km de distância.
Enquanto o estrondo tomava conta do cenário e a nuvem em forma de cogumelo subia no céu, a expressão de Oppenheimer ficava relaxada, em sinal de “tremendo alívio”. E, minutos depois, seu amigo e colega Isidor Rabi pode observá-lo à distância.
“Nunca esquecerei seus passos; nunca esquecerei a forma como ele saiu do carro...”, contou ele. “Seu andar era como [no filme] Matar ou Morrer... empertigado daquela forma. Ele havia conseguido.”
Em entrevistas concedidas nos anos 1960, Oppenheimer acrescentou ainda mais seriedade à sua reação. Ele afirmou que, nos momentos após a detonação, veio à sua mente um verso do Bhagavad Gita, o livro sagrado do hinduísmo: “Agora, eu me tornei a morte, o destruidor de mundos.”
‘The Gadget’ (‘O Dispositivo’) foi colocado no alto de uma torre para o teste Trinity em 1945, a primeira bomba nuclear detonada no planeta. — Foto: GETTY IMAGES
Nos dias que se seguiram, seus amigos relataram que ele parecia cada vez mais deprimido.
“Robert ficou muito quieto e ruminando durante aquelas duas semanas”, relembrou um deles, “porque ele sabia o que estava para acontecer.”
Certa manhã, ele foi ouvido lamentando (em termos condescendentes) o inevitável destino dos japoneses: “aquelas pobres pessoas, aquelas pobres pessoas”, dizia ele. Mas, poucos dias depois, ele estava novamente nervoso, concentrado e rigoroso.
Em uma reunião com seus colegas militares, ele parecia ter esquecido tudo sobre as “pobres pessoas”. Bird e Sherwin relatam que, na verdade, ele estava concentrado na importância das condições certas para o lançamento da bomba.
“É claro que eles não devem lançá-la na chuva ou na neblina... não os deixem detoná-la alto demais”, instruía ele. “A ilustração colada nela é exatamente o certo. Não deixem que ela suba [mais alto] ou o alvo não sofrerá tantos danos.”
Quando ele anunciou a uma multidão de colegas o sucesso do bombardeio em Hiroshima, no Japão, menos de um mês depois do teste Trinity, um observador notou a forma com que Oppenheimer “apertava e movia sua mão sobre a cabeça, como um pugilista vitorioso” – tudo ao som de entusiásticos aplausos.
O 'enigma'
Robert Oppenheimer (1904-1967) era o coração intelectual e emocional do Projeto Manhattan, que produziu a primeira bomba atômica. Mais do que qualquer outra pessoa, ele fez da bomba uma realidade.
Seu colega Jeremy Bernstein trabalhou com Oppenheimer depois da guerra e ficou convencido de que ninguém mais poderia ter desenvolvido aquele projeto. Em sua biografia publicada em 2004, Portrait of an Enigma (“Retrato de um enigma”, em tradução livre), ele escreveu:
“Se Oppenheimer não tivesse sido diretor em Los Alamos [o laboratório onde a bomba atômica foi desenvolvida], tenho a certeza de que, para o bem ou para o mal, a Segunda Guerra Mundial teria terminado... sem o uso de armas nucleares.”
A variedade das reações de Oppenheimer que foram relatadas enquanto ele presenciava o resultado dos seus trabalhos pode parecer desconcertante – sem falar na velocidade com que ele mudava de uma reação para outra.
É difícil esquadrinhar em uma única pessoa essa combinação de fragilidade nervosa, ambição, grandiosidade e pessimismo mórbido, especialmente por se tratar de alguém tão instrumental para o próprio projeto que despertou essas reações.
Bird e Sherwin também chamam Oppenheimer de “enigma”: “um físico teórico que exibia as qualidades carismáticas de um grande líder e cultivador da estética e de ambiguidades”, segundo eles.
Oppenheimer era um cientista, mas também, segundo descreveu outro amigo, “um manipulador da imaginação de primeira classe”.
Pelo relato de Bird e Sherwin, as contradições do caráter de Oppenheimer – as qualidades que seus amigos e biógrafos tiveram dificuldade de explicar – parecem ter estado presentes desde o início da vida.
O físico nasceu em Nova York, nos Estados Unidos, em 1904, filho de imigrantes judeus alemães de primeira geração que ganharam dinheiro com o comércio de tecidos.
A família morava em um grande apartamento no lado superior oeste de Manhattan, com três empregadas e um motorista. Obras de arte europeias adornavam as paredes da residência.
Mesmo com essa criação luxuosa, seus amigos de infância relembravam Oppenheimer como uma criança generosa e que não era mimada.
Sua amiga de escola Jane Didisheim lembrava-se dele como alguém que “ficava corado com extraordinária facilidade”, era “muito frágil, tinha o rosto muito rosado, muito tímido...”, mas era também “muito brilhante”.
“Todos perceberam com muita rapidez que ele era superior e diferente de todos os demais”, contou ela.
Com nove anos de idade, o pequeno Oppenheimer lia filosofia em grego e latim e era obcecado por mineralogia. Ele passeava pelo Central Park e escrevia cartas para o Clube de Mineralogia de Nova York sobre o que encontrava.
Suas cartas eram tão competentes que o clube pensou que ele fosse adulto e o convidou para dar uma palestra.
Essa natureza intelectual gerou um certo grau de solidão para o jovem Oppenheimer, segundo Bird e Sherwin. “Ele estava frequentemente apreensivo com o que quer que estivesse fazendo ou pensando”, relembrou um amigo.
Oppenheimer não se preocupava em adequar-se às expectativas de gênero. Ele não se interessava por esportes, nem pelas “confusões e dificuldades inerentes à sua faixa etária”, segundo seu primo. “Ele era provocado e ridicularizado com frequência por não ser como seus colegas.”
Mas seus pais tinham certeza de que ele era um gênio.
“Retribuí a confiança dos meus pais em mim desenvolvendo um ego desagradável”, comentou Oppenheimer posteriormente, “o que certamente deve ter afrontado as crianças e os adultos que tiveram a infelicidade de entrar em contato comigo.”
“Não é engraçado virar as páginas de um livro e dizer ‘sim, sim, é claro, eu sei disso’”, comentou ele certa vez com outro amigo.
Quando saiu de casa para estudar química na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, a precária estrutura psicológica de Oppenheimer ficou exposta. Sua frágil arrogância e sensibilidade pouco disfarçada, aparentemente, tinham pouca utilidade para ele.
Em uma carta de 1923, publicada em uma coleção de 1980 editada por Alice Kimbal Smith e Charles Weiner, ele escreveu:
“Trabalho e escrevo inúmeras teses, observações, poemas, contos e inutilidades... crio mau cheiro em três laboratórios diferentes... sirvo chá e falo com conhecimento para algumas almas perdidas, saio no fim de semana para destilar a energia negativa na forma de risadas e exaustão, leio grego, cometo gafes, procuro cartas na minha mesa e desejo que estivesse morto. Voilà.”
Cartas posteriores reunidas por Smith e Weiner revelam que os problemas prosseguiram ao longo da sua pós-graduação em Cambridge, no Reino Unido. O tutor de Oppenheimer insistia em aplicar trabalho de laboratório, o que era uma das fraquezas do cientista.
“Estou tendo momentos bastante ruins”, escreveu ele em 1925. “O trabalho no laboratório é terrivelmente maçante e sou tão ruim nele que é impossível sentir que estou aprendendo alguma coisa.”
Ainda naquele ano, a intensidade de Oppenheimer quase causou um desastre, quando ele deixou deliberadamente uma maçã envenenada com substâncias químicas do laboratório na mesa do seu tutor. Seus amigos especularam posteriormente que sua ação pode ter sido causada por inveja e sentimentos de inadequação.
O tutor não comeu a maçã, mas a vaga de Oppenheimer em Cambridge ficou ameaçada. Ele só foi mantido sob a condição de consultar um psiquiatra. O médico diagnosticou psicose, mas depois deu alta ao físico, afirmando que o tratamento não traria benefícios.
Relembrando esse período, Oppenheimer contaria mais tarde que considerou seriamente a possibilidade de suicidar-se na época do Natal daquele ano.
No ano seguinte, durante uma viagem a Paris, seu amigo próximo Francis Fergusson contou a ele que havia pedido sua namorada em casamento. Oppenheimer reagiu tentando estrangulá-lo.
“Ele pulou em cima de mim por trás com uma alça de bagagem”, relembrou Fergusson, “e a enrolou no meu pescoço... Consegui sair de lado e ele caiu no chão, chorando.”
Ciência e poesia
Aparentemente, quando a psiquiatria não era suficiente para Oppenheimer, a literatura vinha em seu auxílio.
Segundo Bird e Sherwin, ele leu Em Busca do Tempo Perdido, do escritor francês Marcel Proust (1871-1922), durante um feriado na Córsega (Itália). No livro, ele encontrou um pouco de reflexão sobre o seu próprio estado de espírito, o que o tranquilizou, abrindo espaço para um modo de ser mais solidário.
Ele decorou um trecho do livro sobre a “indiferença aos sofrimentos causados”, que é uma “forma terrível e permanente de crueldade”. Essa questão do comportamento em relação ao sofrimento se tornaria um interesse permanente para Oppenheimer, orientando suas preferências sobre textos filosóficos e espirituais por toda a vida – o que teria papel importante no trabalho que definiria sua carreira.
Naquelas mesmas férias, ele fez um comentário para seus amigos que parecia profético: “o tipo de pessoa que mais admiro é aquela que se torna extraordinariamente boa em fazer muitas coisas, mas ainda mantém o semblante marcado pelas lágrimas”.
Oppenheimer voltou para Cambridge com o espírito mais leve e sentindo-se “muito mais gentil e mais tolerante”, como ele próprio relembraria mais tarde.
No início de 1926, ele conheceu o diretor do Instituto de Física Teórica da Universidade de Göttingen, na Alemanha, que se convenceu rapidamente dos talentos de Oppenheimer como teórico e o convidou para estudar ali.
Posteriormente, Oppenheimer descreveria 1926 como o ano da sua “entrada na física”, segundo Smith e Weiner. E, de fato, aquele ano acabou representando uma reviravolta.
Ele conseguiu seu título de PhD e cursou pós-doutorado no ano seguinte. O físico também passou a fazer parte de uma comunidade que estava liderando o desenvolvimento da física teórica, conhecendo cientistas que se tornariam amigos de toda a vida. Muitos acabariam trabalhando com ele em Los Alamos.
O professor
Robert Oppenheimer lia de tudo, desde poesia até filosofia oriental — Foto: GETTY IMAGES
De volta aos Estados Unidos, Oppenheimer passou alguns meses em Harvard antes de se mudar em busca de sua carreira de físico na Califórnia.
O tom das suas cartas daquele período reflete uma mentalidade mais firme e generosa. Ele escreveu para seu irmão mais novo sobre romance e seu contínuo interesse em artes.
Na Universidade da Califórnia, Berkeley, o físico trabalhou ao lado de experimentalistas, interpretando seus resultados sobre raios cósmicos e desintegração nuclear. Posteriormente, ele descreveu ter descoberto que era “o único que compreendia do que tudo isso se tratava”.
Ele acabou criando um departamento, levado, segundo ele, pela necessidade de comunicar a teoria que ele amava.
“Explicar primeiro para a faculdade, os funcionários e colegas e, depois, para quem quiser ouvir... o que aprendi, quais eram os problemas não resolvidos”, contou ele.
Oppenheimer descrevia a si próprio como um professor inicialmente “difícil”, mas foi com esse cargo que ele aperfeiçoou o carisma e a presença social que o conduziriam durante sua passagem pelo Projeto Y.
Citado por Smith e Weiner, um colega relembrou como seus alunos “o imitavam o melhor que podiam. Eles copiavam seus gestos, seus maneirismos, suas entonações. Ele realmente influenciou a vida deles.”
A filosofia hindu
No início dos anos 1930, enquanto desenvolvia sua carreira acadêmica, Oppenheimer continuou a explorar as ciências humanas.
Foi nesse período que ele descobriu os textos hindus. Ele aprendeu sânscrito para ler o Bhagavad Gita no idioma original. Foi dali que extrairia a famosa citação “agora, eu me tornei a morte”.
Parece que seu interesse não era apenas intelectual, mas a continuação da biblioterapia que ele havia receitado a si mesmo a partir da leitura de Proust, quando ele tinha pouco mais de 20 anos de idade.
A história do Bhagavad Gita, baseada na guerra entre dois ramos de uma família aristocrática, ofereceu a Oppenheimer uma base filosófica que se aplicava diretamente à ambiguidade moral confrontada por ele no Projeto Y.
O livro enfatiza as ideias de dever, destino e distanciamento dos resultados, destacando que o medo das consequências não pode ser usado como justificativa para a falta de ação.
Em uma carta ao seu irmão em 1932, Oppenheimer faz referência específica ao Bhagavad Gita e indica a guerra como uma circunstância que poderia oferecer a oportunidade de colocar essa filosofia em prática:
“Acredito que, por meio da disciplina... podemos atingir a serenidade... Acredito que, por meio da disciplina, aprendemos a preservar o que é essencial para a nossa felicidade em circunstâncias cada vez mais adversas...”, escreveu ele.
“Portanto, acho que tudo aquilo que evoca a disciplina: o estudo e nossos deveres para com os homens e a comunidade, a guerra... deve ser acolhido por nós com profunda gratidão; pois, somente com isso, podemos atingir o mínimo de desapego; e, só assim, podemos conhecer a paz.”
Em meados dos anos 1930, Oppenheimer também conheceu a física e psiquiatra Jean Tatlock (1914-1944), por quem se apaixonou.
Segundo o relato de Bird e Sherwin, Tatlock tinha um caráter tão complexo quanto o de Oppenheimer. Em grande parte, ela era compreendida e dirigida por sua consciência social. Um amigo de infância descreveu Tatlock como tendo sido “tocada pela grandeza”.
Oppenheimer pediu Tatlock em casamento mais de uma vez, mas ela recusou. Acredita-se que ela o tenha apresentado a políticos radicais e à poesia do inglês John Donne (1572-1631).
Os dois continuaram a se ver ocasionalmente depois que Oppenheimer se casou com a bióloga Katherine “Kitty” Harrison (1910-1972) em 1940. Harrison trabalharia com Oppenheimer no Projeto Y como flebotomista, pesquisando os perigos da radiação.
Robert Oppenheimer em momento de descontração com a família. Sua esposa, Katherine ‘Kitty’ Harrison, era bióloga e trabalhou com ele no Projeto Y — Foto: GETTY IMAGES
Surge o Projeto Manhattan
Em 1939, os físicos estavam muito mais preocupados com a ameaça nuclear do que os políticos. Foi uma carta de Albert Einstein que chamou a atenção dos principais líderes do governo americano para o assunto.
A reação foi lenta, mas o alarme continuou a soar na comunidade científica, até que o presidente americano Franklin D. Roosevelt (1882-1945) foi convencido a agir. E, como um dos principais físicos do país, Oppenheimer esteve entre os diversos cientistas indicados para começar a examinar com mais seriedade o potencial das armas nucleares.
Em setembro de 1942, graças, em parte, à equipe de Oppenheimer, ficou claro que a bomba era possível e os planos concretos para o seu desenvolvimento começaram a tomar forma.
Bird e Sherwin contam que, quando ouviu que seu nome estava sendo sugerido para liderar a empreitada, Oppenheimer começou suas próprias preparações.
“Estou eliminando todas as conexões com comunistas”, disse ele a um amigo na época. “Porque, se não o fizer, o governo terá dificuldade de me usar. Não quero deixar que nada interfira com minha utilidade para a nação.”
Einstein afirmaria posteriormente que “o problema de Oppenheimer é que ele ama [algo que] não o ama – o governo dos Estados Unidos”. E, de fato, seu patriotismo e o desejo de agradar claramente influenciaram seu recrutamento.
O general Leslie Groves (1896-1970), líder militar do Distrito de Engenharia de Manhattan, era o responsável por encontrar um diretor científico para o projeto da bomba. Uma biografia de 2002, Racing for the Bomb (“A corrida para a bomba”, em tradução livre), afirma que Groves enfrentou oposição quando propôs que Oppenheimer fosse esse líder científico.
Os “antecedentes extremamente liberais” de Oppenheimer eram uma preocupação. Mas, além de observar seu talento e seu conhecimento da ciência, Groves também destacou sua “arrogante ambição”.
“Eu me convenci de que não só ele era leal, mas que não deixaria que nada interferisse com o desempenho bem sucedido da sua tarefa e, portanto, com o seu lugar na história da ciência”, declarou o chefe de segurança do Projeto Manhattan.
No livro The Making of the Atomic Bomb (“A fabricação da bomba atômica”, em tradução livre), de 1988, o amigo de Oppenheimer Isidor Rabi (1898-1988) é citado dizendo que esta era “uma nomeação muito improvável”, mas ele concordou posteriormente que havia sido “um verdadeiro golpe de gênio da parte do general Groves”.
Em Los Alamos, Oppenheimer aplicou suas convicções interdisciplinares diferenciadas da mesma forma que em outros lugares. Na sua autobiografia de 1979, What Little I Remember (“O pouco de que me lembro”, em tradução livre), o físico austríaco de nascimento Otto Frisch (1904-1979) relembrou que Oppenheimer havia recrutado não só os cientistas necessários, mas também “um pintor, um filósofo e alguns outros personagens improváveis; ele sentia que uma comunidade civilizada seria incompleta sem eles”.
Sangue nas mãos
Depois da guerra, o comportamento de Oppenheimer aparentemente sofreu mudanças.
Ele descreveu as armas nucleares como instrumentos “de agressão, de surpresa e de terror” e a indústria das armas como “o trabalho do demônio”.
Em uma reunião em outubro de 1945, ele disse ao então presidente norte-americano Harry S. Truman (1884-1972) a frase que ficou famosa: “sinto que tenho sangue nas mãos”. Truman depois declarou: “eu disse a ele que o sangue estava nas minhas mãos – e que eu deveria me preocupar com aquilo”.
Este diálogo é uma repetição surpreendente de outra citação do Bhagavad Gita, entre o príncipe Arjuna e o deus Krishna.
Quando Arjuna se recusa a lutar porque acredita que será responsável pelo assassinato dos seus companheiros, Krishna retira o fardo dos seus ombros, dizendo: “Veja em mim o real assassino desses homens... Ergue-te sobre a fama, sobre a vitória, sobre a feliz intenção real. Eles já estão mortos por mim; seja você o meu instrumento.”
Durante o desenvolvimento da bomba, Oppenheimer havia usado um argumento similar para aplacar as hesitações éticas dos colegas e as suas próprias.
Ele disse que, como cientistas, eles não eram responsáveis pelas decisões sobre a forma de uso da arma, mas apenas por fazer o seu trabalho. O sangue, se houvesse, estaria nas mãos dos políticos.
Mas, aparentemente, quando a façanha foi alcançada, a confiança de Oppenheimer sobre essa posição ficou abalada. Bird e Sherwin relatam que, no seu cargo na Comissão de Energia Atômica no período do pós-guerra, ele combateu o desenvolvimento de outras armas, incluindo a bomba de hidrogênio, mais poderosa, cujo caminho havia sido aberto pelo seu próprio trabalho.
Estes esforços fizeram com que Oppenheimer fosse investigado pelo governo americano em 1954 e tivesse sua licença de segurança cancelada, encerrando seu envolvimento no trabalho político.
A comunidade acadêmica saiu em sua defesa. No jornal The New Republic, em 1955, o filósofo Bertrand Russel (1872-1970) comentou que a “investigação tornou inegável que ele cometeu erros, um deles com gravidade do ponto de vista de segurança. Mas não houve provas de deslealdade, nem de nada que pudesse ser considerado traição... Os cientistas foram pegos em um trágico dilema.”
Em 1963, o governo dos Estados Unidos concedeu a Oppenheimer o Prêmio Enrico Fermi, como gesto de reabilitação política. Mas foi apenas em 2022, 55 anos depois da sua morte, que o governo americano reverteu sua decisão de 1954 de cancelar sua licença e reafirmou a lealdade do físico.
Nas últimas décadas da vida de Oppenheimer, ele manteve expressões paralelas de orgulho pelas conquistas técnicas da bomba e de culpa pelos seus efeitos.
Seus comentários também demonstravam resignação. Ele afirmou mais de uma vez que a bomba era simplesmente inevitável.
Robert Oppenheimer passou seus últimos 20 anos de vida como diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, trabalhando ao lado de Einstein e de outros físicos.
A influência das ciências humanas
Em Los Alamos, Oppenheimer dedicou-se à promoção do trabalho interdisciplinar.
Nas suas palestras, ele enfatizava a convicção de que as ciências exatas precisavam das humanas para melhor compreender suas próprias implicações, segundo Bird e Sherwin. Para isso, ele recrutou um grupo de especialistas em ciências humanas, que incluía estudiosos dos clássicos, poetas e psicólogos.
Mais tarde, ele veio a considerar a energia atômica como um problema que superava as ferramentas intelectuais da sua época. Como disse o presidente Truman, era “uma nova força, revolucionária demais para considerar a estrutura das velhas ideias”.
Em uma palestra de 1965, publicada posteriormente na coleção Uncommon Sense (“Senso incomum”, em tradução livre), de 1984, ele afirmou: “ouvi de alguns dos grandes homens do nosso tempo que, quando eles encontravam algo brilhante, sabiam que era bom porque tinham medo”.
Ao comentar sobre os momentos de descobertas científicas perturbadoras, Oppenheimer adorava citar John Donne: “está tudo em pedaços, toda a coerência se perdeu”.
O cientista também admirava outro poeta inglês, John Keats (1795-1821), que cunhou a expressão “capacidade negativa” para descrever uma qualidade comum nas pessoas que ele admirava: “quando um homem é capaz de enfrentar incertezas, mistérios e dúvidas, sem qualquer sinal de irritação depois de [procurar por] fatos e razões”.
Aparentemente, era algo que Russell estava descobrindo quando escreveu sobre Oppenheimer e sua “incapacidade de ver as coisas com simplicidade, uma incapacidade que não é surpreendente em alguém com um aparelho mental complexo e delicado”.
Quando descrevemos as contradições de Oppenheimer, sua mutabilidade, sua contínua alternância entre a poesia e a ciência e seu hábito de desafiar as descrições simples, talvez estejamos identificando as próprias qualidades que possibilitaram a ele a busca pela criação da bomba.
Mesmo em meio àquela importante e terrível tarefa, Oppenheimer manteve vivo o “semblante marcado pelas lágrimas” que ele havia previsto com pouco mais de 20 anos de idade.
Acredita-se que o nome do teste Trinity tenha vindo do poema de John Donne intitulado Bate em Meu Coração, Deus de Trina Pessoa:
“Para que eu possa me levantar e permanecer de pé, derruba-me e inflige
Tua força para partir, golpear, queimar e me renovar.”
Jean Tatlock, que apresentou Donne a Oppenheimer – e por quem, segundo acreditam alguns, ele teria permanecido apaixonado –, cometeu suicídio no ano anterior ao teste.
O projeto da bomba foi totalmente marcado pela imaginação do físico e pelo seu sentido de romance e tragédia. Talvez fosse a “arrogante ambição” identificada pelo general Groves durante a entrevista de emprego de Oppenheimer para o Projeto Y, ou talvez sua capacidade de adotar, pelo tempo que fosse necessário, a ideia dessa ambição arrogante.
Além de resultado das pesquisas científicas, a bomba foi também produto da capacidade e da disposição de Oppenheimer de imaginar-se como o tipo de pessoa que poderia fazer a arma acontecer.
Fumante inveterado desde a adolescência, Oppenheimer sofreu episódios de tuberculose ao longo da vida. Ele morreu de câncer da garganta em 1967, com 62 anos de idade.
Em um raro momento de simplicidade, dois anos antes da morte, o físico traçou uma distinção entre a prática da ciência e a poesia.
Ao contrário da poesia, segundo ele, “a ciência é a arte de aprender a não cometer o mesmo erro duas vezes”.
O filme
Com lançamento em julho no Brasil e nos Estados Unidos, o filme Oppenheimer é baseado no livro vencedor do prêmio Pulitzer, Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano (Ed. Intrínseca, 2023).
O ator Cillian Murphy interpreta Robert Oppenheimer. O filme também retrata diversas outras pessoas reais, como o general Leslie Groves (interpretado por Matt Damon), que recrutou Oppenheimer, além de figuras da sua vida pessoal, como a psiquiatra Jean Tatlock (Florence Pugh), que namorou o físico nos anos 1930, e sua esposa Kitty Oppenheimer (Emily Blunt).
Ben Platts-Mills é escritor e artista. Seu trabalho investiga o poder, o raciocínio, a vulnerabilidade e como a ciência é representada na cultura popular. Seu livro Tell Me The Planets (“Conte-me sobre os planetas”, em tradução livre) foi publicado em 2018 e sua conta no Instagram é @benplattsmills.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.