Por Marina Franco, G1


Manifestantes se abraçam perto de memorial ao estudante universitário Jonathan Morales durante protesto contra o presidente Daniel Ortega em Manágua, na Nicarágua — Foto: Oswaldo Rivas/Reuters

Com um clima permanente de conflito na ruas, a Nicarágua vive uma de suas crises mais sangrentas da história recente. Manifestantes contrários ao governo de Daniel Ortega são reprimidos pela polícia, acusada de atuar em coordenação com grupos armados. Mais de 350 pessoas morreram em confrontos. A brasileira Raynéia Gabrielle Lima, estudante de medicina, foi a mais recente vítima da violência.

Inicialmente os protestos foram motivados por uma reforma da previdência. Mas cresceram com a repressão do Estado e se transformaram em um movimento contra Ortega. O presidente, que está em seu quarto mandato presidencial (o terceiro consecutivo), abriu um diálogo com seus opositores. As conversas são mediadas por bispos da Igreja católica.

Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, e sua vice-presidente, Rosario Murillo, chegam a evento em comemoração ao 39º aniversário da Revolução Sandinista — Foto: Jorge Cabrera/ Reuters

Mas na semana passada Ortega chamou os bispos de "golpistas" e os acusou de apoiar forças internas e externas de tirá-lo do poder. Sua mulher e vice-presidente, Rosario Murillo, disse que está em curso um "golpe terrorista e criminoso" e acusou os manifestantes opositores de se matarem para responsabilizar o governo.

Para o secretário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Paulo Abrão, o governo nicaraguense ignora o diálogo com os opositores e tenta enfraquecer os esforços para uma saída pacífica. Brasileiro doutor em Direito, Abrão está à frente da CIDH desde 2016.

Paulo Abrão, secretário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) — Foto: Katie Schubauer/AFP

O órgão, que é ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), tem a missão de monitorar o respeito aos direitos humanos nas Américas. A CIDH pode fazer recomendações aos Estados membros da OEA e apresentar casos à jurisdição da Corte Interamericana.

Em entrevista ao G1, antes da morte da brasileira Raynéia, Abrão também denuncia um “ambiente generalizado de intimidação e medo” no país, além da “violência brutal” e conivência com grupos paramilitares por parte da polícia.

Denúncias

Abrão coordenou duas visitas da CIDH a Nicarágua. O grupo esteve em maio em quatro cidades - Manágua, Leon, Masaya e Matagalpa – onde visitou hospitais, prisões e instalações estatais e entrevistou mais de 1 mil testemunhas.

“Encontramos um ambiente generalizado de intimidação e medo instalado na sociedade com a atuação da polícia, autoridades estatais, os grupos parapoliciais”, diz.

Entre os pontos denunciados pelo grupo após a visita estão:

  • uso abusivo da força por parte da polícia, reprimindo os protestos com “violência brutal”;
  • conivência das autoridades policiais com grupos terceiros armados;
  • prática de execuções extrajudiciais;
  • detenções arbitrárias em massa;
  • destituição de terras e propriedades;
  • e maus tratos cruéis nas prisões.

Entre maio e o início de julho, quando foi realizada a segunda visita, o número de mortos no conflito apurados pela CIDH deu um salto: de 76 para 280. O balanço mais recente da Associação Nicaraguense pelos Direitos Humanos (ANPDH) aponta 351 mortos e 261 desaparecidos. O governo não divulga números.

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“Há um incremento significativo na violência no país”, comenta Abrão.

Investigação independente

Depois da primeira visita, a CIDH publicou um informe com recomendações ao governo de Ortega, e duas delas foram atendidas. Uma foi a instalação no país de um grupo internacional de especialistas independentes para investigar os atos de violência. O grupo está levantando informações e documentos para identificar os responsáveis pelos atos de violência e abrir processos judiciais.

O outro pedido atendido foi a presença de uma equipe permanente da CIDH para acompanhar a crise, denunciando violações de direitos humanos e concedendo medidas cautelares para pessoas com risco de vida. Essa equipe também está ajudando a Comissão de Verificação e Segurança – acordada pela Mesa de Diálogo Nacional -, que acompanha a desmobilização de barricadas dos opositores e outras ações do Estado.

Apoiadores do presidente Daniel Ortega falam com jornalistas na cidade de Diriamba, na Nicarágua — Foto: Oswaldo Rivas/Reuters

Segundo Abrão, uma visita semelhante deve ocorrer no Brasil em novembro. A CIDH vem ao país para avaliar a situação dos Direitos Humanos relacionadas a três questões, que foram denunciadas pela sociedade civil: a intervenção federal no Rio de Janeiro, a situação de crianças e adolescentes atendidas pelo governo e as mortes violentas no sistema prisional.

Desrespeito ao diálogo

Abrão avalia o atual momento dessa crise: “Nesse momento o Estado realiza as chamadas ‘Operações de Limpeza’. Estão tomando determinadas localidades de madrugada, com apoio de grupos paramilitares, para realizar prisões, invasões de domicílios e há registros de novos assassinatos”, afirma.

“Há uma ação unilateral das autoridades nacionais ignorando os acordos que haviam sido firmados na Mesa de Diálogo Nacional”, diz.

O secretário cita dois episódios que exemplificam o desrespeito ao diálogo com a sociedade civil na Nicarágua. O primeiro é o ataque armado contra estudantes que estavam entrincheirados na Nacional Autônoma da Nicarágua (Unam), no dia 14 de julho.

Amigos e familiares carregam o caixão com o corpo de Gerald Vasquez, um estudante de engenharia que foi morto durante o ataque de 14 de julho pela polícia e forças paramilitares à Universidade Nacional de Manágua, na Nicarágua — Foto: Alfredo Zuniga/AP

A polícia e paramilitares atacaram a universidade por mais de 12 horas. A ação continuou no dia seguinte contra a Igreja que fica ao lado do prédio da Unam. Dois estudantes morreram e 16 ficaram feridos. Após uma negociação do arcebispo de Manágua e outros líderes católicos, aqueles que continuavam entrincheirados foram retirados da universidade.

“Três dias antes os estudantes haviam anunciado que queriam desocupar a universidade de maneira pacífica e espontânea. O Estado ignorou essa disposição e atacou de maneira unilateral”, diz Abrão.

O outro episódio foram as agressões cometidas contra bispos da Igreja Católica há duas semanas na cidade de Diriamba, no sudoeste do país. Centenas de seguidores do presidente Daniel Ortega e paramilitares sitiaram a Basílica de San Sebastián e agrediram os líderes católicos que queriam entrar no local.

Foto de 9 de julho mostra mulheres se protegendo dentro da Basília de San Sebastián, em Diriamba (Nicarágua), que estava sitiada por apoiadores armados do presidente Daniel Ortega — Foto: Inti Ocon/AFP

Os bispos tinham chegado para apoiar um grupo de manifestantes, que se entrincheiravam ali para se proteger do assédio das forças governistas. No dia anterior, um ataque de paramilitares na região havia deixado opositores mortos e feridos.

“Os bispos são os mediadores do diálogo nacional. Atacá-los é uma maneira de estigmatiza-los para enfraquecer os espaços de buscas de uma solução pacífica ao conflito”, diz o secretário Abrão.

Homem passa por barricada de rebeldes na cidade de Masaya, na Nicarágua — Foto: Oswaldo Rivas/Reuters

Eleições antecipadas

Na última quarta, o Conselho Permanente OEA, que vinha discutindo os informes da CIDH, aprovou uma resolução que condena a violência e pede a Ortega que antecipe as próximas eleições presidenciais, marcadas para 2021, para março de 2019. Essa é uma das reivindicações dos opositores no diálogo com o governo.

No texto da OEA, a organização reitera sua "enérgica condenação e sua grave preocupação" pelos atos de violência cometidos por policiais e paramilitares na Nicarágua e exige o "desmantelamento dos grupos parapoliciais", que atuam com o consentimento do Executivo, segundo grupos humanitários. A iniciativa não responsabiliza Ortega pela violência.

Cardenal Leopoldo Brenes e bispo Silvio Baez chegam à cidade de Diriamba, na Nicarágua, em meio a protestos contra o governo de Daniel Ortega — Foto: Oswaldo Rivas/Reuters

A resolução da OEA foi aprovada com o voto favorável de 21 dos 34 países que são membros ativos da organização, entre eles o Brasil. Três (Nicarágua, Venezuela e São Vicente e Granadinas) votaram contra. Houve sete abstenções e três ausentes.

No âmbito internacional, a crise na Nicarágua foi condenada por diversos países do continente americano, entre eles o Brasil e os Estados Unidos, pela União Europeia, pelo Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos e o Papa Francisco.

Veja a cronologia da crise na Nicarágua:

  • 18 de abril: Daniel Ortega publica decreto que regulamenta reforma da previdência que aumenta as contribuições de empresários e trabalhadores. Manifestantes – estudantes, empresários e aposentados - fazem os primeiros protestos nas ruas. Há confronto com membros da Juventude Sandinista, simpatizantes ao partido de Ortega Frente Sandinista de Liberación (FSLN).
  • 19 de abril: As manifestações se estendem a mais cidades e são repreendidas pela polícia nacional. São registrados os primeiros mortos nos confrontos.
  • 22 de abril: Ortega anuncia a retirada da Reforma da Previdência. Os confrontos nas manifestações continuam e deixam 30 mortos.
  • 7 de maio: Estudantes ocupam a Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (Unan).

Nelson Gabriel Lorio Sandoval beija a mão de seu filho, bebê que foi morto atingido por um tiro durante protesto de estudantes contra o governo de Daniel Ortega na Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (UNAN), a sudoeste de Manágua — Foto: Andres Martinez Casares/Reuters

  • 17 de maio: Um grupo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão ligado à OEA, visita quatro cidades do país e denuncia uso abusivo da força policial e conivência com grupos paramilitares. Também divulga balanço de 76 mortos.
  • 18 de maio: Governo começa a se reunir com representantes da oposição sob mediação de bispos da Igreja Católica. Mais tarde, o diálogo é suspenso e retomado algumas vezes.
  • 14 de junho: Empresários fazem primeira greve nacional de 24 horas.
  • 19 de junho: A população de Masaya de declara “território livre” do governo de Ortega e nomeiam uma junta de “autogoverno”. A população local bloqueia estradas e levanta barricadas nas ruas. Confrontos com forças policiais e paramilitares na cidade deixam mortos.
  • 7 de julho: A Associação Nicaraguense de Direitos Humanos divulga balanço de 351 mortos.
  • 9 de julho: Grupo de bispos é atacado quando tentava entrar em igreja na cidade de Diriamba que estava sitiada por grupos armados.
  • 13 de julho: País tem nova greve nacional de 24 horas.
  • 14 de julho: Policiais e paramilitares atacam estudantes entrincheirados na Unan. Dois estudantes morrem.
  • 15 de julho: Governo lança operação para retirar barricadas das ruas de cinco cidades, entre elas Masaya.
  • 16 de julho: Países latino-americanos, entre ele os Brasil, expressam sua preocupação com a situação no país.
  • 17 de julho: Policiais e paramilitares voltam a atacar Masaya. Há confrontos no bairro indígena Monimbó. Parlamento aprova lei sobre terrorismo que pune quem danificar ou destruir bens públicos e privados.

Um paramilitar permanece em uma rua do bairro de Monimbo após confrontos com manifestantes contra o governo, em Masaya, Nicarágua — Foto: Marvin Recinos/AFP

Mapa da Nicarágua — Foto: G1

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