Criança exibe cartucho de bala após confronto em Jinotepe, na Nicarágua, na terça-feira (24) — Foto: Reuters/Oswaldo Rivas
A Nicarágua está envolvida atualmente em sua maior crise política e na maior onda de violência desde a Revolução Sandinista, que terminou com a ditadura da dinastia Somoza em 1979. Mais de 440 pessoas morreram nos últimos três meses em repressões a manifestações contra o governo de Daniel Ortega, que se nega a antecipar eleições presidenciais.
Na noite de segunda-feira, a brasileira Raynéia Gabrielle Lima, de 30 anos, se tornou uma dessas vítimas ao ser morta em Manágua, onde cursava medicina. Segundo Ernesto Medina, reitor da Universidade Americana em Manágua (UAM), ela foi alvo de tiros disparados por paramilitares, versão negada pela Polícia Nacional, que acusa um vigilante de segurança privada.
Veja a seguir perguntas e respostas sobre a crise na Nicarágua.
Quando começou a atual crise da Nicarágua? Por quê?
O estopim para os conflitos foi a publicação de um decreto de regulamentação de reforma da previdência, que aumentava as contribuições de empresários e trabalhadores, em 18 de abril.
Os primeiros protestos aconteceram na capital Manágua no mesmo dia, já com confrontos entre manifestantes e membros da Juventude Sandinista, simpatizantes do governo. No dia seguinte ocorreram as primeiras três mortes, as manifestações se espalharam por mais cidades e o presidente Daniel Ortega mandou tirar do ar cinco canais de TV independentes.
Entenda o conflito na Nicarágua
Em 22 de abril, Ortega revogou a Reforma da Previdência, mas os protestos – e confrontos – continuaram, agora já pedindo a renúncia do presidente. O número de mortes não parou de crescer.
Desde então o país já teve duas greves nacionais de 24 horas, universitários ocuparam a Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (Unan) e um grupo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão ligado à OEA, visitou quatro cidades e denunciou uso abusivo da força policial e conivência com grupos paramilitares. O governo se reuniu com opositores sob mediação de bispos da Igreja Católica mais de uma vez, mas os diálogos não obtiveram sucesso.
Manifestantes durante funeral de Agustin Ezequiel Mendoza, que foi morto baleado em protesto contra Daniel Ortega, em Tipitapa — Foto: Oswaldo Rivas/Reuters
Quem são os grupos envolvidos nos conflitos?
As primeiras manifestações envolveram trabalhadores, indígenas e estudantes. Quando o movimento cresceu, já exigindo a renúncia de Ortega, os universitários se destacaram e tornaram-se também as maiores vítimas de violência, mas diversos setores da sociedade continuam participando dos atos.
Não existe uma liderança específica e não há um nome único que represente a oposição. As negociações para tentar encerrar os conflitos foram mediadas pela Igreja Católica, através de bispos da Conferência Episcopal, e envolveram representantes do governo e a Aliança Cívica pela Justiça e a Democracia, que reúne universitários, setor privado, camponeses e organizações civis.
A Polícia Nacional reprime manifestações violentas e, de acordo com Ortega, “jamais interferiu em nenhuma manifestação pacífica”, afirmação que é contestada pela oposição. O Exército se pronunciou em junho, pedindo o fim da violência, mas até o momento não atuou diretamente para atacar ou defender nenhum dos lados.
O grande problema são os grupos paramilitares, que agem com extrema violência e são acusados da grande maioria das mortes, detenções ilegais e desaparecimentos. Embora suas vítimas sejam os manifestantes, Ortega nega com veemência que esses grupos tenham qualquer conexão com o governo. “Durante a noite, quando não há manifestações pacíficas, há choques violentos provocados por forças paramilitares organizadas por pessoas que estão contra o governo”, chegou a afirmar nesta terça-feira (24), durante entrevista à Fox News.
Paramilitares são vistos em camionetes no bairro de Monimbo, em Masaya, na Nicarágua, em 18 de julho — Foto: Marvin Recinos/AFP
Quais são as cidades mais afetadas?
Além da capital, Manágua, onde foram registrados os maiores números de confrontos e mortes, há um grande foco de resistência em Masaya, cidade que em 19 de junho se declarou “território livre” do governo de Ortega e nomeou uma junta de “autogoverno”, e onde a população local bloqueou estradas e levantou barricadas nas ruas.
Por diversas vezes o local, símbolo da resistência à antiga ditadura de Somoza, foi alvo de ataques de grupos paramilitares, e estes circulam pelas ruas em camionetes, fortemente armados, intimidando a população. A situação também é especialmente tensa na cidade de Diriamba, onde um grupo de bispos foi atacado quando tentava entrar em uma igreja, mas casos de violência já foram relatados em praticamente todo o país.
Quantas pessoas já morreram?
O balanço mais recente da Associação Nicaraguense pelos Direitos Humanos (ANPDH) aponta 351 mortos, 261 desaparecidos e mais de 2.100 feridos. A mesma fonte diz ainda que 738 pessoas haviam sido relatadas como sequestradas por civis armados e policiais (em detenções ilegais) em todo o país apenas entre domingo e madrugada da segunda-feira (23). O governo não divulga números.
O que exigem os manifestantes? Qual a resposta do governo?
A principal demanda é que Ortega deixe o poder, que ocupa desde 2007. Os manifestantes exigem que ele ao menos aceite antecipar as eleições presidenciais para março do ano que vem. Uma pesquisa do instituo Ética y Transparencia (EyT), publicada pelo site do jornal nicaraguense “Confidencial” nesta terça (24), diz que 79% da população acredita ser conveniente mudar a data.
No dia 18 deste mês, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou uma resolução para pedir a Ortega que aceite antecipar para março de 2019 as eleições marcadas para 2021. Mas o presidente nicaraguense já declarou em diversas ocasiões que não irá deixar o cargo antes da data originalmente programada. Também nesta terça, em entrevista à emissora da TV Fox News, ele voltou a dizer que não aceita a antecipação, alegando que isso “criaria instabilidade, insegurança e pioraria as coisas”. “O povo vai decidir quem assumirá o governo em 2021”, afirmou.
Parentes abraçam universitário livre após ficar preso durante a noite toda na Igreja Católica da Divina Misericórdia para fugir de emboscada na Universidade Autônoma Nacional da Nicarágua (Unan), em Manágua, em 14 de julho — Foto: Reuters/Oswaldo Rivas
Como a situação afeta a população? Há registro de falta de alimentos e artigos de consumo? E a economia?
Diferente da Venezuela, que também enfrentou violentos protestos contra o governo no ano passado, a Nicarágua não enfrenta sérios problemas econômicos. Apesar de não ser muito rico, o país tem a sexta maior economia da América Central e a maior parte da população não passa fome ou enfrenta falta de produtos básicos. Mas Hajo Lanz, representante da Fundação Friedrich-Ebert (FES) para a Nicarágua ouvido pela Deutsche Welle, ressalta que a desigualdade tem crescido e que grandes setores da economia estão nas mãos da família e de aliados de Ortega.
Além disso, a economia local já começa a ser afetada pela atual crise política. O setor de turismo foi diretamente atingido e três hotéis em Léon anunciaram seu fechamento, além de um resort de luxo. A companhia mexicana Volaris também anunciou a suspensão temporária de voos para o país. A previsão de crescimento da economia para 2018 já foi reduzida de 4,5% a 5% para 0,5% a 1,5% e a inflação, que chegaria a 6,5%, agora é estimada em até 8,5%. O FMI prevê que a Nicarágua terá um crescimento seis décimos abaixo do previsto este ano e a agência qualificadora Standard & Poor’s reduziu a nota do país de B+ para B, com perspectiva negativa.
O que diz a comunidade internacional? E o Brasil?
Daniel Ortega recebeu apoio dos presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e da Colômbia, Evo Morales, e uma declaração favorável do governo de Cuba. Por outro lado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnudh) responsabilizaram o governo da Nicarágua por "assassinatos, execuções extrajudiciais, maus tratos, possíveis atos de tortura e prisões arbitrárias". De acordo com a CNN, o número de países que condenam as ações do governo Ortega já passa dos 50 e inclui os membros da União Europeia. O ministro espanhol de Relações Exteriores, Josep Borrell, inclusive desaconselhou viagens à Nicarágua afirmando que o país está “quase em guerra civil”.
O Brasil já estava na lista de países a criticar o governo nicaraguense, e elevou suas críticas nesta terça, após a morte da estudante brasileira Rayneia Gabrielle Lima em Manágua. “O governo brasileiro torna a condenar o aprofundamento da repressão, o uso desproporcional e letal da força e o emprego de grupos paramilitares em operações coordenadas pelas equipes de segurança, conforme constatado pelo Mecanismo Especial de Seguimento para a Nicarágua instalado para implementar as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, diz trecho de comunicado divulgado pelo Itamaraty.
Manifestante exibe morteiro caseiro com uma flor durante marcha para exigir libertação de presos políticos em Manágua, na Nicarágua, em 21 de julho — Foto: Reuters/Oswaldo Rivas
Há perspectivas para o fim da crise?
Com a recusa de Ortega em aceitar qualquer diálogo relacionado à antecipação das eleições e suas críticas aos bispos que conduziam as tentativas de acordo com a oposição – a quem chamou de golpistas e acusou inclusive de usar igrejas para guardar armas, é difícil prever que qualquer acordo pacífico possa ser alcançado em breve.
O Cardeal da Nicarágua, Monsenhor Leopoldo Brennes, anunciou que a Igreja Católica avalia esta semana se continuará em seu papel de mediação. Nos Estados Unidos, o senador republicano Marco Rubio anunciou a apresentação de uma proposta bipartidária para que sejam introduzidas sanções diplomáticas e econômicas, sem especificar quais seriam e se estariam direcionadas à Nicarágua ou ao próprio Ortega.
Quem é, afinal, Daniel Ortega? Como ele chegou ao poder?
Daniel Ortega, de 72 anos, era um estudante nos anos 1950, quando se juntou às manifestações para derrubar a dinastia Somoza - que era apoiada pelos EUA e governava a Nicarágua havia quatro décadas. As atividades de Ortega fizeram com que fosse acusado de terrorismo e preso por sete anos no governo de Anastasio Somoza Debayle. Após sua liberação, em 1974, ele aderiu à Frente de Libertação Nacional Sandinista (FLNS). Em 1979, o último presidente Somoza caiu.
Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, durante comemorações da Revolução Sandinista — Foto: Reuters/Oswaldo Rivas
Nas eleições de 1984, virou presidente da Nicarágua pela primeira vez - com o apoio de cerca de 70% dos eleitores. Mas, em 1990, o fraco crescimento econômico e a desilusão política vinham minando suas credenciais, e Ortega perdeu a presidência para uma antiga companheira de guerrilha, Violeta Barrios de Chamorro.
Ortega perdeu três eleições seguidas, em 1990, 1996 e 2001. Ele voltou ao poder em 2006, com 38% dos votos. Críticos o acusam de se entrincheirar na presidência, inspirando-se nas táticas adotadas pela dinastia Somoza contra seus inimigos políticos: assassinar suas reputações manipulando a imprensa e reprimindo qualquer dissenso nas ruas. Também como Somoza, ele distribuiu parte da riqueza nacional e de sua influência com a família - sua indicação mais controversa foi escolher sua mulher, Rosario Murillo, como vice-presidente.
Mapa da Nicarágua — Foto: G1