Imagem de microscopia mostra à esquerda o Sars-CoV2, o novo coronavírus, atacando a membrana de uma célula — Foto: IOC/Fiocruz
A alta na mortalidade provocada pelo novo coronavírus, constatada aqui na última terça-feira, pode ter duas explicações. A primeira, mais óbvia, é o impacto da pandemia no sistema de saúde. Mais gente morre de outras doenças porque não é atendida em hospitais sobrecarregados. Menos tumores são removidos a tempo. O cuidado com moléstias crônicas sofre relaxamento. Há também uma segunda explicação, menos evidente: a ignorância sobre os efeitos da Covid-19 no organismo.
A ação do vírus Sars-CoV2 vai além da pneumonia caracterizada pelo aspecto de vidro fosco nas tomografias do pulmão. O coronavírus também pode atingir rins, cérebro, olhos, fígado, intestino e coração. Pacientes morrem em geral pela reação do sistema imune, que tenta combater a doença, sai do controle e ataca células do próprio corpo.
Entender a reação complexa do corpo humano ao vírus é um desafio que intriga os cientistas. Um médico de 32 anos que trabalhava na Zona Leste paulistana e no ABC, infectado com o Sars-CoV2, só foi sentir falta de ar na véspera do dia em que buscou internação. Morreu horas depois. A ação silenciosa do vírus faz que várias vítimas não sintam dificuldade para respirar, ainda que seus níveis de oxigênio estejam caindo a níveis perigosos. Quando se dão conta, pode ser tarde demais.
O mistério da queda no oxigênio – tecnicamente chamada de “hipóxia” – sem falta de ar foi investigado em 27 pacientes do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. “O pulmão continua inflando, então os pacientes se sentem bem”, afirmou à revista Science a pneumologista Elnara Marcia Negri. A hipótese da equipe dela, relatada num estudo preliminar publicado no repositório MedRxiv que ainda não passou por revisão de pares médicos, é que a hipóxia seja provocada por minúsculos coágulos que se formam no pulmão e impedem o sangue de distribuir o oxigênio de modo eficaz, sem que o paciente sinta dificuldade para respirar (provocada em geral pelo excesso de gás carbônico).
A equipe do Sírio tratou os pacientes com uma droga anticoagulante, a heparina, e verificou uma melhora mais rápida do que a registrada noutros hospitais. Negri recomenda que um doente busque assistência médica quando seus níveis de oxigênio caírem abaixo de 93%, ainda que se sinta bem. É possível verificar essa medida com oxímetros caseiros usados por atletas.
A relação entre os coágulos e a hipóxia silenciosa em pacientes de Covid-19 é apenas um dos mistérios que intrigam os pesquisadores. O impacto do vírus no corpo tem sido objeto de inúmeras linhas de investigação e gerado uma avalanche de novos estudos. Os principais envolvem a relação com o sistema imune, a ação do Sars-CoV2 no coração, nos rins, no cérebro e nos intestinos.
O mecanismo de ataque do vírus se vale de moléculas na superfície das células, cujo formato serve de encaixe para a ação de uma enzima conhecida pela sigla ECA-2 (ou enzima conversora da angiostensina-2), que ajuda a regular a pressão sanguínea. É nessas moléculas que se acoplam as protrusões do coronavírus que lhe dão o aspecto de coroa. Depois do encaixe, o vírus penetra nas células e usa seu aparato genético para replicar-se e produzir novas partículas virais.
As portas de entrada ao Sars-CoV2 estão nas células dos alvéolos pulmonares, mas também no coração, vasos sanguíneos, rins e intestinos. “A profusão de receptores da enzima ECA-2 nos vasos sanguíneos, intestino, coração e, claro, na porta de entrada pulmonar é um grande facilitador da disseminação viral”, afirma o cardiologista Sergio Kaiser, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Em Brescia, na Itália, uma mulher de 53 anos chegou à emergência com todos os sintomas de um ataque cardíaco, mas exames não detectaram nenhum bloqueio em suas coronárias. Ela estava com Covid-19.
Pesquisas recentes com pacientes de Wuhan, na China, constataram danos cardíacos em quase 20% dos pacientes graves e arritmia em quase metade deles. Coagulação anormal, a hipótese investigada no Sírio, foi constatada em quase 40% dos pacientes num estudo holandês. “Se a Covid-19 ataca vasos sanguíneos, isso poderia explicar por que pacientes com danos pré-existentes, de diabetes ou pressão alta, enfrentam risco mais alto”, diz uma análise na Science.
Apesar de a doença atacar os pulmões, em geral não mata tanto os asmáticos ou portadores de outras doenças respiratórias. Em compensação, quase um terço dos internados num hospital de Wuhan apresentavam problemas renais. O sistema nervoso, onde também existem células com receptores da ECA-2, é outro alvo de ataques. Pacientes apresentam dores de cabeça, convulsões, nos casos sérios até derrames. Noutros casos, o alvo é o intestino. Uma paciente americana de 71 anos, com diarreia e vômitos, foi diagnosticada com infecção intestinal até testar positivo para o Sars-CoV2.
O principal mecanismo por meio do qual o vírus mata, contudo, é aparentemente a reação descontrolada do sistema imune. A produção desenfreada de moléculas chamadas “citocinas”, necessárias à coodenação da resposta do organismo a invasores, desencadeia uma multiplicação nas células de defesa, que começam a atacar as células do próprio corpo, gerando as inflamações que levam à morte.
“É essa tempestade de citocinas que mata”, diz o oncologista Bruno Filardi, do Instituto do Câncer Brasil. “Doenças como artrite reumatoide, lúpus, poliomielite, linfomas ou infecção pelo HIV também podem evoluir para esse tipo de resposta.” Daí a tentativa de tratar os pacientes de Covid-19 com drogas que se revelaram eficazes contra essas doenças. Até agora, contudo, apesar de vários estudos promissores, o vírus ainda tem levado a melhor. Combatê-lo de modo eficaz exigirá mais conhecimento sobre sua ação sorrateira e silenciosa.