Blog do Helio Gurovitz

Por Helio Gurovitz

Diretor de redação da revista Época por 9 anos, tem um olhar único sobre o noticiário. Vai ajudar você a entender melhor o Brasil e o mundo. Sem provincianismo


Covas abertas no cemitério da Vila Formosa, na Zona Leste de São Paulo — Foto: Reprodução/GloboNews

As mortes provocadas pela pandemia de Covid-19 no município de São Paulo estão na realidade 168% acima do número atribuído oficialmente ao novo coronavírus, revela uma análise do epidemiologista Paulo Lotufo, da USP, com base em dados exclusivos fornecidos ao G1 pelo Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade (PRO-AIM), da Secretaria Municipal da Saúde.

Levando em conta apenas as mortes por causas naturais (excluindo homicídios e acidentes em geral), praticamente não houve diferença nos números de janeiro e fevereiro em relação à média dos cinco anos anteriores, como mostra o gráfico. Em março, contudo, houve 743 mortes a mais, ou 12,5% acima da média registrada no mesmo mês entre 2015 e 2019. Dessas, apenas 277 foram atribuídas oficialmente ao novo coronavírus, a primeira delas no dia 17 daquele mês.

Excesso de mortalidade por causas naturais em São Paulo durante o primeiro trimestre — Foto: Editoria de Arte/G1

Mesmo que nem todas tenham sido provocadas diretamente pelo vírus ou que muitas até tenham, mas tenham ficado escamoteadas pela falta de testes, é o total que representa o efeito mais relevante da pandemia nas estatísticas paulistanas. Não apenas as 277 comprovadamente resultantes de infecções ou as demais 258 suspeitas, casos de síndromes respiratórias. O total – as 743 – é o que os epidemiologistas costumam chamar de “excesso de mortalidade por todas as causas”, número que traduz não apenas a subnotificação nos casos oficiais, mas o impacto verdadeiro da Covid-19 na cidade (leia mais sobre a subnotificação aqui).

“Quando você tem uma pandemia, há uma alteração total dos relacionamentos de saúde e doença”, afirma Lotufo. “Uma característica especial deste vírus é um quadro mais grave para quem já tem, por exemplo, doença cardíaca. Essas pessoas iam viver por mais quatro, cinco, dez anos e acabam morrendo. Começa a haver competição pela atenção médica com outras doenças.”

Pouco importa se alguém morre de Covid-19 oficialmente, se seu caso é registrado apenas como pneumonia ou se bate o carro, sofre traumatismo craniano e não encontra vaga na UTI. “Mesmo que a razão imediata da morte seja outra, a causa de tudo não deixa de ser a Covid-19”, afirma Lotufo. Enquanto a atenção se volta para o combate ao vírus, cirurgias deixam de ser feitas, tumores deixam de ser extraídos, há queda na vacinação infantil, em programas de combate a tuberculose ou hanseníase e vários outros.

“No sistema de saúde, a pandemia afeta tanto a emergência quanto o longo prazo”, diz Lotufo. “Não é um outro problema que ela provoca. Este é o problema. Por isso costumamos dizer, em tom de brincadeira, que o grande epidemiologista acaba sendo o coveiro. É ele quem conhece a realidade toda.”

Em São Paulo, nenhum lugar está tão próximo dessa realidade quanto o PRO-AIM, que recebe todos os atestados de óbitos na cidade das funerárias, hospitais, casas de repouso ou cartórios. Em março, somando as 6.668 mortes por causas naturais às demais, a cidade registrou ao todo 7.007, ou 9% acima da média dos cinco anos anteriores (4.355 mortes registradas no sistema e 2.652 ainda não processadas). É um número chocante se lembrarmos que a primeira morte oficial por Covid-19 ocorreu apenas no dia 17 e que a quarentena reduziu a circulação na cidade, provocando uma queda de 58% nas mortes por acidentes e outras causas externas.

Até domingo passado, o abril paulistano já somava 5.612 mortes, 867 oficialmente atribuídas ao coronavírus e outras 1.277 a síndromes respiratórias. Só o número confirmado já faz da Covid-19, de longe, a principal causa de mortalidade na cidade, respondendo por 39% das declarações de óbito registradas ou 15% do total. As mortes estão pouco acima da média dos últimos cinco anos (5.575). Trata-se, contudo, de um número ainda provisório, ainda bem abaixo do que deverá ser o valor oficial. O procedimento meticuloso e detalhista do PRO-AIM envolve o processamento manual de todas as certidões de óbito. Só no início do mês seguinte o total passa a refletir a realidade. “As declarações de abril vêm impreterivelmente até 10 de maio”, afirma Cássia Malteze, gerente do PRO-AIM. “Até lá, o número fica bem abaixo do real.”

Será preciso também fazer ainda o ajuste relativo aos residentes de outras cidades que morrem em São Paulo – e vice-versa. Várias causas, como mortalidades infantil e materna, homicídios, suicídios ou acidentes, exigem investigação minuciosa. “Os dados entram no sistema com classificação genérica, depois são atualizados”, diz Roberto Tolosa Jr., chefe da Coordenação de Epidemiologia e Informação (Ceinfo), a que o PRO-AIM está subordinado. Certos casos podem se estender por meses. Só agora o PRO-AIM está prestes a concluir a classificação final das mortes por causas externas ocorridas em 2018.

Para a Covid-19, foi montado um esquema de emergência, em que hospitais e outras fontes enviam as informações digitalmente por e-mail. “Por determinação do Ministério da Saúde, esse dado precisa estar disponível em 24 horas, no máximo 48 horas”, afirma Cássia. Tolosa defende a adoção de um sistema digital mais sofisticado, para que haja agilidade nas estatísticas. Noutras cidades brasileiras, contudo, os sistemas são ainda mais deficientes. Daí a dificuldade de medir com rapidez a mortalidade por todas as causas, para poder entender melhor – e combater com eficácia – a pandemia.

Colaborou neste post Felipe Grandin, da Editoria de Dados do G1

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