— Foto: Wagner Magalhães/G1
A pandemia causada pela Covid-19 e a adoção de medidas de distanciamento social adotadas no Brasil trouxeram à tona diversos aspectos relacionados às desigualdades que perpassam nossas vidas. Sabemos que a possibilidade de manter o distanciamento social, por meio do trabalho remoto e sem grandes alterações na renda familiar, foi concedida a poucos, deixando em evidência a forma desigual com que a pandemia atinge a população, para além da questão ligada diretamente à doença.
As mulheres, especialmente as mais pobres, chefes de família e com filhos, foram afetadas de diversas maneiras: perda da renda, falta de creches e escolas, impossibilidade de adotar medidas de distanciamento social e o aumento da violência doméstica são alguns dos fatores que mais tiveram impacto sobre a vida das mulheres, literalmente.
A gravidade desses "efeitos colaterais" da pandemia sobre as mulheres se torna evidente diante dos dados trazidos pelo Monitor da Violência. Os números mostram um aumento nos homicídios de mulheres e feminicídios em 14 e 11 UFs, respectivamente, no primeiro semestre de 2020, quando comparado com o mesmo período de 2019. Em relação aos homicídios de mulheres se destacam as regiões Norte e Nordeste, onde três estados apresentaram crescimento acima de 80%: Rondônia (255%), Tocantins (143%) e Ceará (89%). Em relação ao feminicídio, Acre e Pará se destacaram com um aumento de 167% e 112%, respectivamente.
Também chama a atenção, em contrapartida, a redução dos estupros consumados em 24 das 27 unidades da federação no primeiro semestre de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019. No estado da Paraíba, essa redução foi de 60%. No caso de estupro de vulneráveis, a queda se deu em 20 UFs, com destaque para Sergipe, que registrou uma diminuição de 46%.
Tal queda generalizada, que à primeira vista poderia ser considerada como uma boa notícia, pode, no entanto, estar relacionada muito mais com a subnotificação dos casos do que com a real redução do crime. Isso porque sabemos que uma parte significativa dos estupros ocorre no ambiente doméstico e diante da suspensão de diversas atividades, como as escolares, por exemplo, o período de convivência entre autores e vítimas aumentou. Além disso, a presença constante dos autores pode constranger a comunicação do crime às autoridades.
Da mesma forma, o aumento dos homicídios de mulheres e feminicídios pode estar relacionado, além do aumento do tempo de convivência entre as vítimas e autores, ao agravamento de episódios de violência pré-existentes, bem como à suspensão de serviços prestados por instituições de acolhimento a vítimas de violência doméstica, ou até mesmo ao distanciamento das redes de apoio de familiares e amigos.
Ao analisarmos o perfil das vítimas, é possível notar que essas formas de violência não atingem todas as mulheres da mesma maneira. A desigualdade racial se faz presente também nestes casos. Considerando os estados onde foi possível obter a informação sobre a cor/raça das vítimas, o Monitor da Violência apontou que no caso dos homicídios, 73% das mulheres mortas eram negras, enquanto que mulheres brancas eram 26% das vítimas.
Ao analisar somente os feminicídios, essa desigualdade diminuiu, apesar de ainda se manter elevada: 59% das vítimas eram negras enquanto que 40% eram brancas. É importante ressaltar que a desigualdade racial entre as mulheres vítimas é uma tendência observada ao longo dos anos, o que acende um alerta para as políticas de prevenção da violência de gênero, que precisam considerar a interação entre as diversas formas de opressão às quais as mulheres estão submetidas.
A relação entre violência e raça se altera quando olhamos para o número de vítimas de estupro e estupro de vulnerável, onde há um relativo equilíbrio: as brancas representam 47% e 50%, respectivamente. Mais uma vez é importante lembrar que, no casos dos estupros, os dados se referem às notificações feitas nas delegacias, e não à ocorrência real do fato.
A subnotificação é constante nesses casos, já que depende da ação da vítima em procurar uma delegacia para a realização do registro após o trauma sofrido, além de um respaldo da própria instituição em acolher a denúncia sem desqualificar a vítima. Neste sentido, a desigualdade entre negras e brancas no acesso à informação sobre a violência doméstica, sobre os canais de denúncia, bem como sobre o acesso às redes de acolhimento existentes, pode explicar o número maior de casos registrados por vítimas brancas em relação às negras. O que não significa que as mulheres negras sejam menos vítimas de estupro.
Vale salientar ainda que diversas UFs não disponibilizaram ao Monitor da Violência a informação relacionada à raça/cor das vítimas. Em relação aos homicídios contra mulher, dentre as 27 UFs, 8 delas (Acre, Amazonas, Maranhão, Pará, Paraíba, Rio de Janeiro, Rondônia e São Paulo) não forneceram esse dado. Já em relação ao feminicídio 9 UFs (Acre, Amazonas, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Rio de Janeiro, Rondônia e São Paulo) não informaram o perfil racial das vítimas. Do total das mulheres vítimas de homicídio no primeiro semestre de 2020, a informação sobre cor/raça não foi disponibilizada em 54% dos casos. Em relação ao estupro, esse percentual sobe para 63%.
Isso demonstra, dentre outros fatores, a invisibilidade dada à categoria raça por boa parte dos gestores públicos no país. Importante destacar que a categoria é um indicador imprescindível para elaboração de políticas públicas e programas voltados à prevenção da violência, assim como para conscientização da desigualdade racial fortemente presente no Brasil. Uma política pública preocupada com o enfrentamento da violência de gênero, em suas múltiplas formas, precisa considerar todas as diferentes experiências e limitações que as mulheres podem ter a depender da sua inserção social, raça e escolaridade.
Os efeitos da pandemia na vida das mulheres, portanto, extrapolam a dimensão da doença em si, e intensificam desigualdades pré-existentes. A necessidade do isolamento social para conter a disseminação do vírus contribuiu para o distanciamento das mulheres de suas redes de apoio, em especial das mulheres pobres, negras, em situação de violência de gênero. Situações que normalmente já são ocultadas e dissimuladas, como as agressões físicas e psicológicas no ambiente doméstico, e os estupros e assédios de toda ordem acabaram ficando ainda mais invisibilizadas.
Em meio à pandemia, muitas mulheres acabaram se vendo confinadas com seus agressores ou perderam o contato com sua rede de apoio, que, muitas vezes, auxilia na denúncia da violência sofrida ou no próprio acolhimento das vítimas. Desde a maior vulnerabilidade no mercado de trabalho até as situações de violência doméstica e feminicídio, a pandemia escancarou a necessidade da elaboração de políticas de segurança para as mulheres considerando os mais diferentes tipos de opressão e desigualdade às quais estão sujeitas.
Giane Silvestre, Sofia de Carvalho e Debora Piccirillo são pesquisadoras do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo