— Foto: Betta Jaworski/G1
Até o dia 13 de fevereiro de 2020, o último dado disponibilizado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública sobre a realidade do sistema prisional brasileiro estava defasado em mais de dois anos e referia-se a dezembro de 2017. Na mesma semana em que lançamos os dados mais atualizados do Monitor da Violência, é notícia também o lançamento de dados produzidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), agora referentes ao primeiro semestre de 2019 e, portanto, com um ano de atraso.
Segundo o órgão nacional, existiam em junho de 2019 731 mil pessoas presas em unidades prisionais em todo o Brasil. Quando consideradas também as pessoas que se encontravam em regime aberto (27 mil) e em carceragens de delegacias (14 mil), esse número chegava a 773 mil pessoas.
O Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, compila no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias os dados obtidos junto às secretarias estaduais de Administração Prisional (para as informações sobre perfil da população presa) e junto às secretariais estaduais de Segurança Pública (para as informações sobre pessoas custodiadas em carceragens de delegacias).
Desde 2005, o Depen coleta dados sobre os estabelecimentos prisionais e sobre a população prisional no Brasil, mas só em 2014 o órgão passa a publicar as bases de dados completas dos levantamentos em formato aberto. Nesse mesmo ano, o sistema de coleta nacional foi completamente reformulado, com o auxílio de pesquisadores engajados na formulação de novas bases metodológicas, que qualificaram a capacidade analítica do órgão nacional responsável pela política prisional brasileira.
O Monitor da Violência, iniciativa de jornalismo de dados construída em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP, buscou, por meio de pedidos fundamentados na Lei de Acesso à Informação e submetidos às secretarias estaduais de Administração Penitenciária e Segurança Pública, preencher a lacuna temporal nos dados sobre o sistema prisional brasileiro. Os dados compilados por este Monitor, os mais atualizados em âmbito nacional, dão conta de que 710 mil pessoas se encontram em unidades prisionais em fevereiro de 2020 no Brasil. Quando somadas as pessoas em regime aberto (36 mil) e em carceragens de delegacias (9 mil), esse número chega a 756 mil pessoas.
Para que tenhamos a dimensão do sistema retratado pelos dados do Monitor da Violência: apenas 8% dos municípios brasileiros têm população total maior que o contingente que se encontra atrás das grades no Brasil.
Temos ainda, sobre a mesma realidade, os dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP), mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reporta a existência de 862.292 pessoas presas no Brasil em fevereiro de 2020. Alimentado por juízes e servidores do Poder Judiciário em todo o país, o BNMP é uma ferramenta integrada ao trabalho cotidiano dos tribunais, que possibilita a geração de mandados de prisão, guias de recolhimento e alvarás de soltura e, posteriormente, compila os dados sobre os documentos gerados, de acordo com informações básicas relativas à execução penal e à qualificação da pessoa presa.
A dissonância entre os dados compilados por três diferentes fontes nacionais nos aponta para uma conclusão preocupante: o número de pessoas presas no Brasil não é, hoje, um dado confiável e atualizado.
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Fontes convergentes e dados divergentes
Os levantamentos do Depen e do Monitor da Violência valem-se das mesmas fontes de dados. No caso do órgão federal, criou-se um sistema de coleta de dados que acessa informações diretamente das secretarias de Administração Prisional. Em paralelo, solicitam-se informações complementares sobre as pessoas custodiadas em carceragens de delegacias através da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), órgão submetido ao mesmo ministério. No caso do Monitor da Violência, são realizados pedidos via LAI para os mesmos órgãos acessados pelo Depen.
Apesar da convergência de fontes, em 2019, o Monitor da Violência registrava 9.720 pessoas privadas de liberdade no Amazonas, enquanto os dados do Depen para o mesmo ano apontam 11.936. O mesmo acontece no Ceará (33 mil pessoas privadas de liberdade, segundo o Depen, contra 29 mil, segundo o Monitor). Se compararmos os dados de 2019, compilados pelo Depen, com os novos dados do Monitor da Violência, é possível ainda observar evoluções que chamam atenção: o estado do Rio de Janeiro, por exemplo, informou ao Ministério da Justiça 60.170 pessoas privadas de liberdade em 2019, sendo que 204 dessas pessoas estavam custodiadas em carceragens de delegacias. Menos de um ano depois, o mesmo estado informou ao Monitor da Violência número 14% menor: 51.493 pessoas privadas de liberdade. Trata-se de uma redução significativa, que contradiz a tendência que vinha sendo observada na série histórica anterior do estado e, assim, chama atenção para a possível inconsistência do dado. A secretaria informou ao G1 que "foi detectado um equívoco no momento da migração dos dados ao Depen" e que ia comunicar ao órgão "os números corretos, solicitando a retificação".
As informações sobre pessoas em monitoração eletrônica apontam para mais uma dissonância. Os levantamentos do CNJ e do Depen não deveriam contemplar as pessoas que cumprem pena com o uso de aparelho de monitoração eletrônica, uma vez que os levantamentos se dedicam a compreender, entre outras, as dinâmicas de alocação de pessoas em estabelecimentos penais. Na base de dados relativa a 2019 , publicada pelo Depen, no entanto, é possível identificar a existência de núcleos e centrais de monitoração eletrônica cadastradas como unidades prisionais e, portanto, consideradas no cálculo geral do levantamento.
Um sistema desconhecido e pouco articulado
As consequências produzidas pela baixa qualidade dos dados relativos ao sistema prisional e pelas dificuldades de consolidação de bases nacionais confiáveis e verificáveis se estendem desde o nível macro de formulação das políticas públicas até impactos em nível micro, que atingem diretamente as vidas (e possibilidades de vida) de diversas pessoas.
Sem dados confiáveis, não é possível que sejam formuladas políticas públicas baseadas em evidências. Não é possível planejar políticas de acesso à educação, trabalho ou mesmo saúde dentro do sistema prisional sem que se conheça o perfil das pessoas custodiadas e a realidade dos estabelecimentos penais.
A falta de dados consistentes e individualizados sobre as pessoas privadas de liberdade no Brasil se constitui, ainda, como fonte de violação de direitos. Se não conseguimos dizer com certa dose de segurança e confiabilidade o número total de pessoas presas no país, certamente não teremos capacidade de identificar as especificidades da execução penal de cada caso. Para que possamos identificar, por exemplo, quem são todas as mulheres gestantes hoje encarceradas no Brasil que tiveram prisão preventiva decretada e que poderiam ter essa prisão convertida em prisão domiciliar, como prevê a decisão proferida no HC 143.641, é preciso que existam dados, a nível nacional, organizados e públicos, sobre os processos de execução penal dessas mulheres. Tais dados devem ser associados a informações completas e confiáveis sobre seus perfis demográficos. O mesmo se aplica aos decretos de indulto, à recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão em segunda instância, entre outras decisões que impactam diretamente a população prisional.
A obtenção e a qualificação dos dados com este alcance dependem da articulação entre uma ampla rede de atores mobilizada pelos sistemas de segurança pública e de justiça criminal.
De um lado, cabe aos órgãos públicos competentes assumirem um compromisso com as evidências como ferramentas-chave na formulação de políticas públicas e, assim, investirem recursos e capital político na formulação e implementação de sistemas de informação confiáveis e transparentes a nível nacional e subnacional. É preciso apostar no compartilhamento amplo das definições metodológicas adotadas pelos levantamentos nacionais, de forma a promover o controle social constante sobre dados tão sensíveis quanto aqueles que dizem sobre as vidas de milhares de pessoas custodiadas pelo Estado.
De outro lado, cabe à sociedade civil organizada, aos pesquisadores, representantes da academia e da mídia assumirem o compromisso de cobrar a transparência dos dados públicos, exercer ativamente o controle social sobre os sistemas de informação nacionais e subnacionais, dar publicidade às informações quando os sistemas públicos forem obscuros, apontar as dissonâncias, mas, mais importante, apontar os caminhos.
Thandara Santos é integrante do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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