Em todos os fevereiros, carnaval é época da festa do Rei Momo no Brasil. Mas em Aiuruoca, uma pequena cidade de pouco mais de seis mil habitantes no Sul de Minas, o festejo acontece um pouco mais cedo. Há quase 80 anos, o carnaval da cidade é realizado uma semana antes da data oficial. Tudo começou com a proibição de um monsenhor da cidade que queria silêncio durante um retiro espiritual que acontecia no período. Sem carnaval, os foliões fizeram seu baile tradicional antecipado. A festa chegou a tantas que por ali já passou de Rainha da Portela a Nelson Gonçalves, grande cantor e compositor brasileiro.
Nagel (Foto: Samantha Silva/G1)
É quarta-feira (15) e a Praça Matriz de Aiuruoca se enche de peças metálicas e tendas brancas. O palco já está sendo montado para fazer o abre-alas na cidade. A propaganda se repete pelos anos: “o primeiro carnaval antecipado do Brasil”. Na boca do povo, as datas se misturam quanto à origem exata da primeira festa antecipada em Aiuruoca, mas há pelo menos mais de 70 anos, o Rei Momo passa por aquele canto do Sul de Minas antes de embarcar para outros lados.
A história que se conta em Aiuruoca é que, lá no início do século passado, o pároco da cidade, monsenhor Antônio Fortunato Nagel, proibiu a festança carnavalesca para realizar um retiro espiritual. "O monsenhor mandava na cidade”, conta o advogado Felipe Bardoglio Senador, de 80 anos, citando a memória do pai dele sobre a origem da festa.
“Tinha um professor da faculdade de direito, que era aqui de Aiuruoca, que dizia que ele era monsenhor 'Nazil'. Teve o nazismo na Alemanha, o fascismo na Itália e o 'Nagismo' aqui na Aiuruoca (risos). Porque era uma ditadura, nem rádio não podia ouvir em casa nos dias de carnaval."
Que a religião foi a “mão dura” que proibiu a festa na cidade, não há dúvidas, mas recentemente, o historiador aiuruocano Gilberto Furriel reconstruiu essa história e redime (em parte) o monsenhor de seu peso. “De fato, é impossível desvencilhar a origem do carnaval antecipado de Aiuruoca das ações sociomorais da Igreja Católica. Neste campo, duas de suas tradicionais agremiações foram fundamentais para a extinção do carnaval oficial de Aiuruoca”, esclarece.
Essa história é contada no Livro do Tombo da Paróquia de Aiuruoca, que o historiador da cidade só teve acesso este ano. No final da década de 30, a pequena cidade tradicional já com mais de 230 anos de história era um importante centro religioso para as vilas da região. Em 1937, havia sido fundada na cidade a Congregação Mariana – levada pela Pia União das Filhas de Maria que já estava em Aiuruoca.
Em 1938, as duas congregações se uniram para instalar um retiro espiritual na cidade nos dias do carnaval. A decisão foi acatada pelo monsenhor Nagel, mas como poderia a festa fazer barulho em um momento de espiritualidade? E foi assim que um abaixo-assinado feito pelas congregações percorreu a cidade pedindo que o carnaval fosse suspenso. Parte da população disse sim e, naquele ano, não houve folia em Aiuruoca.
para driblar retiro (Foto: Revista O Cruzeiro/Arquivo
Câmara Municipal de Aiuruoca)
O silêncio poderia ter permanecido, mas, assim como ainda cita no Livro do Tombo, nem todos aderiram ao retiro, que “aborreceu deveras certos indivíduos desejosos de ver o triunfo do Momo”. Uma agremiação da cidade, a “Jaz Band”, então solicitou ao monsenhor que o carnaval voltasse à cidade. Como não era mais possível acabar com o retiro espiritual, veio a ideia de realizar a festa uma semana antes da data oficial, um baile carnavalesco de um único dia – o domingo. E assim, em 1939, a festa teve a sua nova data.
O carnaval foi se repetindo ano a ano no clube social da cidade, enquanto outros moradores simplesmente circulavam pelas ruas fantasiados. Foi assim até que, em meados da década de 40, um grupo de moradores resolveu colocar um pouco mais de glamour na festa e oficializar o carnaval antecipado da cidade. Com eles, estava um casal que levaria o samba carioca para a pequena cidade sul-mineira. “Foram eles que trouxeram o carnaval do Rio, mas foi ela que foi nossa anfitriã”, introduz Senador.
Eterna rainha
Dona Clarice Albanez pode ser percebida de longe andando pelas ruas de Aiuruoca. As madeixas pintadas de vermelho disfarçam os 86 anos de vida e a maquiagem destacada revela a personalidade vaidosa. “Nós que fundamos esse carnaval aqui. Meu tio Lalau e meu tio Lolo disseram: ‘pois então nós vamos fazer uma semana antes’. Aí reuniram uns casais, nós fizemos fantasias e fizemos o carnaval antes”, conta.
Clarice nasceu em Aiuruoca e, ao se casar pela segunda vez, mudou-se com o marido para o Rio de Janeiro (RJ). Morou 50 anos na capital carioca, e em todos eles, voltava uma semana antes para fazer o carnaval na cidade natal. Organizava ao lado do primo Welington Dalia Nable e do amigo Rui Barbosa Gomes Ribeiro.
O baile seguia o padrão dos antigos da sociedade, fechado para os convidados de Aiuruoca. A banda tocava as canções carnavalescas e no último dia, um concurso de fantasias dava prêmios em dinheiro às mais bonitas. Quando a coisa foi ficando tradicional demais e as pessoas começaram a desanimar da festa, dona Clarice resolveu “causar” em 1967.
(acima, à dir.) e Clarice ao lado de Efigênia, da
Portela (Foto: Clarice Albarez/Arquivo pessoal)
“Eu vim com uma fantasia de máscara negra. Com as pernas de fora, mas de meia rendada. Teve um concurso, eu tirei o primeiro lugar. Aí o advogado Dantas Motta [poeta aiuruocano] brincou no júri: ‘aqui está muito evoluído, já tem mulher de perna de fora (risos). Aí pegou”, lembra. Clarice foi rainha do baile por 33 vezes, e só deu uma pausa quando foi eleita presidente do clube por seis anos.
Na mesa da cozinha, ela espalha dezenas de fotos que desfilam inúmeros trajes de gala carnavalescos. Algumas fantasias ela chegou a encomendar para o estilista das rainhas de escolas de samba do Rio, Antonio Sperandini, e nos cálculos atualizados de Clarice, chegavam a custar R$ 10 mil. “Era coisa fina mesmo. Eu gastava um dinheirão”, conta. “Eram feitas de pedras semipreciosas, paetê não brilha não minha filha.”
A festa chegou a tamanha importância em Aiuruoca que, no primeiro dia de carnaval antecipado, dona Clarice recebia do prefeito a chave da cidade. Entre os convidados especiais que passaram pelo baile estão uma ala da escola de samba carioca Portela, com a rainha Efigênia, e o cantor Nelson Gonçalves, que foi a atração musical em uma das edições. Com a popularidade, a festa ilustrou as páginas da revista "O Cruzeiro" e do jornal "O Globo".
“Trouxe o que eu pude pra aqui, a Orquestra Casino de Sevilha, bailes tudo com conjunto de fora. Eu gostava disso”, completa Clarice. Quando ficou viúva, em 1998, o cansaço da festa começou a pesar. Clarice se despediu como rainha do carnaval em 2000. “Foi uma vida minha de trabalho e luta, em prol da cidade, pra preservar o carnaval. Valeu a pena.”
(Foto: Clarice Albarez/Arquivo pessoal)
O primeiro?
O especialista em carnaval Alberto Ikeda, etnomusicólogo e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), afirma que não tem conhecimento de uma festa semelhante no país – realizada somente uma semana antes do carnaval por proibição da festa original.
O que era comum, segundo ele, desde o século XIX, são as festas que acontecem antes, mas não excluem a realização do carnaval na data oficial. “Temos notícias de Ranchos Carnavalescos do Rio de Janeiro, que realizavam comumente preparação para os desfiles e festas carnavalescas, com bailes, apresentações teatrais e musicais, e até cortejos pelas ruas, em período anterior aos dias principais do carnaval”, explica.
A festa de hoje
A tradição de realizar o carnaval antecipado venceu o tempo e permanece ano a ano em Aiuruoca. Em 2009, a prefeitura municipal tombou o carnaval antecipado como patrimônio cultural imaterial do município. Mas desde o início dos anos 2000, a festa foi transferida para a rua e os bailes ficaram apenas na nostalgia da população. Atualmente, o antigo clube fica de portas fechadas enquanto a música é tocada no Centro da cidade – por ironia do destino, na Praça Monsenhor Nagel.
para o Carnaval(Foto: Samantha Silva/G1)
Além da mudança de sede, o formato acabou não levando nada da tradição aiurocana. Bandas são contratadas para tocar os sucessos do momento e não se usam mais fantasias tradicionais. A casa de dona Clarice fica bem ao lado da praça, mas hoje, ela prefere fechar as alas da festa. “Pra mocidade é bom, agora para o pessoal que já viu o carnaval fino, não dá ‘né’? Pra mim nem precisava existir mais carnaval. Tanto é que eu vou sair do meu quarto ali e vou pra aquele dali”, conta, apontando para o quarto dos fundos da casa, longe da janela que dá para a praça.
Os retiros religiosos também deixaram de acontecer na pequena cidade, mas as ruas tranquilas de Aiuruoca – cercadas pela paisagem natural da Serra do Papagaio – se enchem de turistas que querem fugir da folia no feriado. "O carnaval nosso da cidade aqui são essas pousadas na cidade. No carnaval oficial, enche tudo, vem muita gente pra cá”, comenta Senador. “Não tem nada, absolutamente nada [na cidade] no carnaval."
Apesar das mudanças do tempo, pode-se dizer que uma tradição tem morada permanente em Aiuruoca, como define Clarice, a eterna rainha do carnaval. “Os que não gostam de carnaval vem pra aqui, e os que gostam pulam os dois carnavais.”
Em 2017
Este ano, a Prefeitura de Aiuruoca espera receber cerca de 3 mil foliões no carnaval antecipado. A programação teve início nesta quinta-feira (15) com o desfile do Bloco das Piranhas e a banda Caroço de Banana. A festa segue até domingo (19) com apresentação de bandas todos os dias a partir das 20h, e matinê infantil no domingo. A programação da festa pode ser acessada no site da prefeitura.
Durante o carnaval, as ruas centrais da cidade ficam interditadas para circulação e estacionamento de veículos a partir das 18h, e domingo a partir das 10h. É proibido comércio ambulante e os foliões não podem levar spray de espuma ou serpentina metálica, buzinas e garrafas de vidro.