Governos avaliam se reconhecem ou não transição na Síria com participação de terroristas
Depois da queda do regime que dominou brutalmente a Síria por 50 anos, a comunidade internacional está diante de uma decisão difícil: reconhecer ou não um governo de transição integrado por grupos considerados terroristas.
A queda do regime de Bashar al-Assad causou correria em direção aos presídios onde ficavam os inimigos do ditador. Uma multidão chegou até Saydnaya, uma cadeia da capital, Damasco, conhecida como um complexo de tortura. Entre os milhares de prisioneiros libertados, havia mulheres e até crianças. Um dos homens que estavam abrindo as celas gritou:
"Não fiquem com medo, somos parte da revolução”.
A Defesa Civil da Síria quebrou paredes e perfurou celas para investigar se existiam ali cômodos secretos - o que, mais tarde, não foi confirmado.
"Muita gente estava presa há décadas, eram dadas como mortas", relata Haid Haid, pesquisador da Chatham House, em Londres.
"Hoje, nossa felicidade é indescritível, impagável", diz um homem.
Um pesquisador iraquiano avalia que o novo estágio político na Síria vai ter impacto sobre todo o Oriente Médio. Mas que ainda não dá para dizer o que vai aflorar desse novo sistema, já que a Síria está dominada por mais de 25 grupos armados.
Com a derrocada do regime de Assad, que fugiu para a Rússia no fim de semana, há uma divisão no controle do território sírio. O Hayat Tahrir al-Sham (HTS), considerado o principal grupo rebelde, é uma milícia islâmica e domina a área em verde, que engloba a capital, Damasco, além das cidades de Homs, Hama e Aleppo, que é a segunda mais populosa do país. O HTS é chefiado por Abu Mohammed al-Golani, que promete montar um governo de transição.
Analistas descrevem Al-Golani como um extremista que, até 2016, era vinculado à Al-Qaeda. Nascido em uma família rica de Damasco, foi atraído para o extremismo depois do 11 de setembro. Nos últimos anos, modulou a retórica e agora se apresenta como um pragmático.
Em amarelo, estão os rebeldes apoiados pela Turquia. Em roxo, as forças da minoria curda, um povo que ocupa áreas da Turquia, da Síria e do Iraque e luta por um país próprio. Nos últimos anos, se tornaram aliados dos Estados Unidos no combate ao Estado Islâmico na região.
Na área em laranja estão mais de 50 grupos que apoiavam Assad enquanto ele enfrentava os extremistas islâmicos. Agora, ajudaram a derrubá-lo. O semicírculo em azul está próximo de uma base aérea americana e não há conflito. Toda a área em cinza estava em mãos do governo sírio e pode se tornar alvo de disputa entre os vários grupos.
Mapa da Síria — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução
O professor Oliver Stuenkel, da FGV, diz que há risco de uma disputa de poder agora entre os grupos que derrubaram Bashar al-Assad.
"O fato é que hoje nenhum movimento controla todo o país e é muito pouco provável que surja um movimento que consiga projetar influência em toda a Síria. Não está claro de que forma os grupos que venceram Assad, que derrubaram o ditador, conseguem colaborar. Tivemos situações semelhantes no Egito em 2011, na Líbia. Em nenhum desses casos os países conseguiram se estabilizar. Então, existe um risco alto de haver logo desentendimento entre os grupos que disputam o poder. Também há muitas dúvidas sobre a suposta moderação do HTS”, afirma Oliver Stuenkel.
O grupo armado HTS já foi filiado, no passado, à Al-Qaeda de Osama Bin Laden. Por isso, é considerado uma organização terrorista por muitos países, como o Reino Unido, os Estados Unidos, a Turquia e a própria ONU. Esse mecanismo impede que o governo do Reino Unido converse formalmente com o grupo.
Nesta segunda-feira (9), um ministro do primeiro escalão britânico disse que essa classificação deve ser reavaliada. Já o primeiro-ministro Keir Starmer falou que ainda está cedo demais para tomar essa decisão.
"A gente viu na Tunísia, Líbia, Egito e também no Iraque que derrubar um ditador, um tirano, é um primeiro passo. Mas o grande desafio vem agora. Muitas oportunidades, mas também muitos desafios e, infelizmente, um alto risco de vermos uma continuação dos conflitos na Síria”, diz professor Oliver Stuenkel.
Repercussão
Uma nova era para a Síria, e uma nova geopolítica. Para a Rússia e o Irã, que apoiavam o ditador Bashar al-Assad, foi uma derrota de amargar. O ministro iraniano das Relações Exteriores pareceu surpreso que o Exército sírio não conseguisse conter o avanço rebelde e disse que seu governo não recebeu nenhum pedido de assistência. Mas Abbas Araghchi se disse mais preocupado com Israel, que está ocupando as Colinas de Golã.
O ministro de Relações Exteriores de Israel falou que a presença de soldados em território sírio será temporária, para garantir a segurança das comunidades israelenses em Golã. Gideon Saar também confirmou ataques aéreos contra estoques sírios de armas avançadas - como armas químicas e mísseis e foguetes de longo alcance - para que não caiam nas mãos de extremistas.
Em Moscou, a bandeira de três estrelas dos grupos rebeldes já foi instalada no prédio da embaixada síria. O Kremlin confirmou que Bashar al-Assad e a família receberam asilo em Moscou. Assad tem uma fortuna estimada em US$ 2 bilhões e com vários imóveis na Rússia comprados nos últimos anos. Segundo o porta-voz do Kremlin, a decisão do presidente Vladimir Putin foi por motivos humanitários.
Putin, agora, espera o momento oportuno para mandar um representante diplomático a Damasco e recuperar as suas duas bases militares estratégicas no solo sírio: uma base aérea na província de Latakia e uma base naval em Tartous, o único centro de manutenção e reabastecimento da Rússia no Mar Mediterrâneo.
A Turquia, que apoiava os rebeldes, provavelmente terá um papel de destaque na reorganização do Oriente Médio. O ministro das Relações Exteriores, Hakan Fidan, disse que trabalhará para garantir que a Síria não se torne um porto seguro para o terrorismo. A Turquia também espera reconstruir o país em ruínas. As ações das empresas de cimento do país subiram.
Em Genebra, o alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Volker Türk, pediu a preservação meticulosa das provas de violações de direitos humanos e a punição dos responsáveis.
Os Estados Unidos também anunciaram a intenção de trabalhar com partes interessadas na Síria. O secretário de Estado, Antony Blinken, elogiou a promessa dos rebeldes de formar um governo inclusivo. Ao mesmo tempo, disse que não permitirá que o Estado Islâmico aproveite a situação para se reforçar.
A maioria dos países europeus suspendeu nesta segunda-feira (9) o processamento de pedidos de asilo de refugiados sírios. Só a Alemanha recebeu em 2024 mais de 70 mil pedidos. O acolhimento aos que fugiram da guerra civil desde 2011 tem sido um grande motivo de sérias divisões políticas na Europa.
LEIA TAMBÉM