Pazuello despreza recomendação do Ministério da Saúde para não comprar mais cloroquina
O comitê técnico do Ministério da Saúde fez dois alertas importantes nas últimas semanas: um sobre a compra de cloroquina, outro sobre a falta de remédios nas UTIs. E o ministro interino Eduardo Pazuello ignorou os dois.
A TV Globo teve acesso às atas de reuniões do Comitê de Operações de Emergência do Ministério da Saúde realizadas entre abril e junho. No dia 25 de maio, o comitê discutiu longamente a compra de cloroquina.
Com apenas dez dias no cargo de ministro - e em caráter interino -, Eduardo Pazuello já havia mudado o protocolo do Ministério para permitir a prescrição de cloroquina até para pacientes com sintomas leves da Covid-19, como queria o presidente Jair Bolsonaro.
A ata da reunião revela que o governo decidiu trazer 3 toneladas de insumo farmacêutico ativo para o Brasil. Mas logo abaixo, no mesmo documento, os técnicos alertaram: "Devido à atual situação, não é aconselhável trazer uma quantidade muito grande, pois, caso o protocolo venha a mudar, podemos ficar com um número em estoque parado para prestar contas". Mesmo assim, o governo manteve os planos.
De acordo com a ata de outra reunião, em 3 de julho, pouco mais de um mês depois, o Ministério da Saúde já tinha mais de 4 milhões de comprimidos de cloroquina em estoque. O documento seguiu afirmando, que "alguns estados não quiseram receber a cloroquina, com isso ficou em estoque para devolução mais de 1,4 milhão comprimidos".
A essa altura, a OMS já havia anunciado que a cloroquina não tinha eficácia comprovada e podia provocar efeitos colaterais. Cientistas de várias organizações de renome também já haviam chegado à mesma conclusão. E países como França, Bélgica, Itália, Portugal e Reino Unido suspenderam, proibiram ou deixaram de recomendar o remédio.
Questionado nesta sexta (24) sobre o que vai fazer com os altos estoques de cloroquina, o ministério disse que esses medicamentos poderão ser usados também para o tratamento de doenças crônicas e malária. E que o estoque hoje é menor do que no começo do mês.
"O estoque desse medicamento no almoxarifado do Ministério da Saúde, hoje, é de 472 mil comprimidos reservados ao tratamento da malária e outras condições", afirmou Hélio Angotti, secretário de Ciência e Tecnologia de Insumos Estratégicos.
Enquanto sobravam comprimidos de cloroquina no país, faltavam remédios realmente essenciais para o tratamento de pacientes com Covid. Na reunião do dia 29 de maio, os técnicos do Comitê de Operações de Emergência estavam muito preocupados com os baixos estoques de medicamentos como os usados para entubar pacientes em UTI - analgésicos e sedativos. Os técnico alertaram o governo.
Mas uma observação no documento foi classificada como importante: "não fazer divulgação dos dados." O documento registrava que: "267 insumos estavam com risco de desabastecimentos".
Uma semana antes, o Jornal Nacional já tinha mostrado que a situação era grave neste hospital de campanha no Rio de Janeiro. Profissionais de saúde denunciaram que a falta de remédios levou à morte de pacientes.
"À medida que a médica ia pedindo os medicamentos para fazer a sedação e a curarização, não tinha. Vai ter que misturar com outros medicamentos, porque não tem. Ele simplesmente parou, na minha cara. Uma pessoa que estava conversando comigo há uns 40 minutos atrás, morreu. E isso é muito duro", relatou profissional que não quis se identificar.
Um mês depois, o Jornal Nacional mostrou que a situação continuava a mesma: "Em plena pandemia, hospitais pelo Brasil registram falta de insumos básicos - alguns fundamentais, como os anestésicos para pacientes que estão nas UTIs."
"Está em falta o insumo, a medicação de sedação, que é usado nos hospitais para intubação. Então, daqui a pouco, nós vamos ter, nos hospitais particulares e nos públicos, uma falta do produto", alertou Luís Fábio Marchioro, secretário de Saúde de Sorriso (MT).
Cinco dias depois, dia 25 de junho, o JN voltou a mostrar que 22 medicamentos usados em UTI - como sedativos e anestésicos - estavam em falta em 21 estados e no Distrito Federal. Um neurologista de Cuiabá fazia um alerta: "Na verdade está morrendo muito mais gente de Covid, por falta de medicamentos, do que propriamente pela doença.
Até hoje, essas cenas se repetem por todo o país. O último levantamento divulgado pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde revela que os 21 medicamentos mais usados no chamado "kit intubação", como sedativos e analgésicos, estavam com os estoques críticos na maioria dos estados.
No Paraná, os remédios podem terminar a qualquer momento, segundo o secretário de Saúde. "É muito grave a situação. Eu sou obrigado a dizer isso. Essa situação está passando de uma situação de falta para uma situação de calamidade", alertou Beto Preto.
Em junho, governadores de 23 estados e do DF chegaram a assinar uma carta conjunta pedindo que o Ministério fizesse "uma compra centralizada no mercado nacional ou aquisição, por intermédio da Opas, no mercado internacional".
Nesta sexta (24), em entrevista coletiva, o Ministério falou que a compra de medicamentos e equipamentos é responsabilidade de estados e municípios.
"O ministério, em momento algum, se furtou a ajudar, por meio de seu poder de compra, por meio da sua estrutura, estados e municípios. Mas também deixar bem claro que, pela gestão tripartite, preconizada pela lei 8080, é sim responsabilidade de estados e municípios adquirirem os seus insumos, pagarem os seus recursos humanos, fazerem a manutenção de suas estruturas hospitalares, adquirir seus medicamentos, seus equipamentos. Mas o ministério, em reforço à ação dos municípios, em tempos de Covid, mesmo tendo descentralizado recursos específicos para o enfrentamento da Covid para estados e municípios, ele realizou essas aquisições e está reforçando a ação dos municípios como nesse caso dos medicamentos para intubação oratraqueal", declarou Élcio Franco, secretário-executivo do ministério.
O coordenador do comitê científico que assessora os governadores do Nordeste, Miguel Nicolelis, diz que o governo precisa fazer uma compra emergencial o mais rápido possível.
"Essa é indubitavelmente a maior tragédia humana da história do Brasil e ela não acabou. Pelo contrário, ela pode ainda ficar muito pior. Quando estamos sabendo que existem pacientes internados na UTI que podem não ter acesso a medicamentos básicos, nós podemos aumentar dramaticamente a mortalidade desses pacientes e isso contribuir para o aumento sem proporções de vítimas brasileiras, vítimas que não precisariam ter morrido. Esse é o que todo dia passa pela minha mente, o número de pessoas que não precisaria ter morrido se o manejo dessa pandemia tivesse sido minimamente adequado no Brasil, pelo governo federal", lamentou Miguel Nicolelis.