Entenda como funciona a licença menstrual no Brasil
Os sintomas de complicações durante a menstruação são muito conhecidos. E, por mais que os efeitos sejam sacrificantes, como fortes cólicas, dores de cabeça intensas e no corpo, a lei brasileira não prevê um abono ou licença médica para o dia de trabalho nessas condições.
Mas algumas empresas saíram na frente da legislação e estão oferecendo, por conta própria, a licença menstrual como benefício às funcionárias.
“Eu já usei a licença, por exemplo, para metade do período. Só trabalhei de manhã, não trabalhei à tarde e consegui repousar sem me preocupar em ir atrás de um atestado médico”, conta Bianca Andrade, analista de implantação da Digix.
A empresa desenvolvedora de soluções em software do Mato Grosso do Sul foi a primeira empresa a adotar a licença menstrual no país, em março do ano passado. A Digix conta com 811 colaboradores e, desse total, 530 são mulheres — o que representa 65% do quadro de trabalhadores.
As funcionárias que precisem usar o benefício só devem avisar seu gestor direto e podem se afastar do trabalho sem a necessidade de apresentar um atestado médico. O auxílio é lançado na folha de ponto para justificar a falta.
“Implementamos a licença menstrual para transformar a relação entre saúde e trabalho, reconhecendo os impactos dos sintomas menstruais na produtividade e bem-estar. Esse acolhimento tem sido muito bem recebido e esperamos inspirar outras empresas", afirma Suely Almoas, presidente da Digix.
Desde 2023 foram concedidas mais de 1,3 mil licenças, sendo 580 em 2023 e 750 até setembro de 2024. O tempo médio é de um dia de ausência. Para suprir a falta de uma funcionária, as demandas do trabalho são divididas entre o restante da equipe.
O mesmo acontece no Grupo MOL, empresa de produtos e serviços de impacto social. Lá, 83% da equipe é formada por mulheres, que têm direito à licença menstrual desde março de 2023. A empresa conta com o total de 53 funcionários, sendo 44 mulheres.
As regras são semelhantes às da Digix. A ideia partiu de Roberta Faria, cofundadora e presidente da MOL, que se inspirou na licença menstrual que foi aprovada como lei na Espanha.
Roberta diz que o benefício pouco afetou a produtividade. “Até setembro deste ano, foram tiradas 52 licenças, sendo que mais de 73% das utilizações são de meio período e apenas em um turno: manhã ou tarde”, descreve.
“Eu precisei uma vez desde que começou o benefício. Avisei minha superior e descansei o resto do dia”, afirma Carol Muccida, que é gerente de novos negócios e foi uma das primeiras funcionárias a utilizar a licença.
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Regras para empresas
Como a licença menstrual é uma regra interna das empresas que a adotam, é o próprio empregador que define todas as diretrizes de funcionamento. Mas a licença também pode ser implementada por meio de convenção sindical ou negociações coletivas.
O que não pode haver em hipótese alguma é desconto no salário, alerta Marina Camargo Aranha, advogada trabalhista do escritório Lobo de Rizzo. E, depois que a licença menstrual for implementada pela empresa, ela não pode ser retirada.
Isso porque, o artigo 468 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece que as alterações nos contratos de trabalho só podem ser feitas com o consentimento mútuo entre empregador e empregado.
"Nos casos em que houver convenção coletiva de trabalho ou acordo negociado com o sindicato, vigência é de até dois anos. Após o prazo, a licença precisa ser revista”, completa a especialista.
Licença menstrual pode virar lei?
A CLT não tem prevê nenhuma licença específica para quem sofre com complicações durante o ciclo menstrual. Qualquer pessoa que precisar se ausentar do trabalho por esse motivo se enquadra na licença médica comum.
Ou seja, é necessário que a incapacitação do trabalhador seja justificada por um médico especializado por meio de um atestado. Nesse caso, a licença também é remunerada e não pode gerar descontos no salário, afirma a advogada especialista em diversidade e inclusão Mariana Covre.
Um projeto de lei federal, que está em andamento na Câmara dos Deputados, propõe licença remunerada de até três dias consecutivos, todos os meses, às mulheres que comprovarem sintomas graves associados ao fluxo menstrual. A ideia é que isso seja incluído na CLT.
Alguns estados também têm tentado aprovar a licença menstrual para servidores públicos. No Distrito Federal, uma lei aprovada em fevereiro deste ano concede três dias de afastamento por mês para servidoras distritais que comprovarem sintomas graves associados à menstruação.
O projeto chegou a ser vetado pelo governador Ibaneis Rocha (MDB), mas a decisão foi derrubada pelos deputados distritais. Em março deste ano a lei foi promulgada, mas o Governo do Distrito Federal informou que iria entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade.
Na época, o governo disse que "a Câmara Legislativa não tem competência para legislar sobre regulamentação da administração". A regulamentação não chegou a ser publicada no Diário Oficial, mas, segundo especialistas, isso não impede que as servidoras peçam a licença. (entenda mais)
No Pará, um projeto de licença menstrual foi proposto, mas vetado pelo governador Helder Barbalho (MDB). Já no Tocantins, outro projeto de lei para servidores do estado foi apresentado na Assembleia Legislativa, mas ainda será votado pelas comissões e plenário.
Fora do Brasil, alguns países já garantem legalmente a licença menstrual. Em 2023, a Espanha se tornou o primeiro país ocidental a oferecer o benefício. Ela também já existe no Japão, em Taiwan, na Indonésia, na Coreia do Sul e na Zâmbia.
Como funciona atualmente no Brasil?
Quando um trabalhador precisa ficar até 15 dias afastado das funções por conta de saúde, quem cobre essa licença remunerada é o empregador. Já quando o funcionário entrega atestados seguidos, a responsabilidade dos pagamentos passa a ser do INSS.
Segundo a advogada Mariana Covre, o projeto de lei federal que está em andamento na Câmara dos Deputados tem como objetivo garantir o afastamento especializado relacionado ao ciclo menstrual sem complicações. Ou seja, quem sofre com dores não vai precisar ir mensalmente ao médico.
“Não vai precisar se enquadrar naquele afastamento geral, que exige uma série de coisas. A mulher sempre fica insegura e na dúvida se o médico do trabalho, por exemplo, vai aceitar um atestado dela por se tratar de um afastamento menstrual, tem todo um preconceito”, completa a advogada.
Segunda a médica Lia Cruz Damásio, diretora de Defesa e Valorização da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), existe uma pequena parcela de mulheres que sofre com fortes dores durante o ciclo menstrual, que são chamadas de incapacitantes.
Como o nome já diz, são dores que afetam o dia a dia a ponto de prejudicar o estudo ou trabalho. Há também casos de fraqueza, vômitos, suores, tontura e até desmaios.
Muitas vezes esses sintomas podem estar ligados a problemas de saúde, como endometriose, adenomiose, mioma, infecção sexualmente transmissível, entre outros. Nesses casos, é necessária uma investigação para ter o diagnóstico e tratamento adequado.
“Alguns mecanismos podem levar a mulher sentir dores durante a menstruação. Mas nem sempre tem uma doença associada. A maioria dos casos se resolve com o uso de anti-inflamatório, ou medicamentos que vão diminuir o sangramento”, explica a ginecologista e obstetra.
Ainda de acordo com a diretora da Febrasgo, geralmente, os sintomas são bem controlados com medicamentos e não existe a necessidade de afastamento. Mas isso só acontece com diagnóstico e tratamento adequado.
A médica ainda afirma que a licença se faz necessária para acolhimento adequado dessas mulheres. Homens trans, intersexuais, queer ou não binários que menstruam também podem sofrer as consequências de sintomas graves associados ao ciclo.
“Essa é uma discussão bastante válida, no sentindo de não negligenciar essas mulheres em sofrimento. Mas precisamos de uma regulamentação realmente adequada, para que o uso dessa licença menstrual não seja banalizado, por isso a importância do diagnóstico”, completa.
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