‘Novos doleiros’ usam criptomoedas para lavar dinheiro do crime organizado e tentar despistar investigadores

Operações com ativos digitais escondem pagamentos do tráfico de drogas e armas, e terrorismo. Segundo estudo internacional, criptomoedas foram usadas para lavar R$ 140 bi no mundo em 2023.

Por Isabela Leite, GloboNews e g1 SP — São Paulo


‘Novos doleiros’ usam criptomoedas para lavar dinheiro do crime organizado e tentar despistar investigadores

Em uma nova frente para ocultar movimentações com o tráfico de drogas e armas, terrorismo e outras atividades ilegais, o crime organizado tem contratado o serviço de operadores conhecidos como “novos doleiros” para lavar dinheiro e fazer pagamentos difíceis de serem rastreados.

As criptomoedas – ou criptoativos - são bens virtuais, protegidos por criptografia, com registros exclusivamente digitais — ou seja, não são ativos físicos. As operações podem ser feitas entre pessoas físicas ou empresas, sem a necessidade de passar por uma instituição financeira.

Essas operações são permitidas no Brasil. De janeiro a setembro deste ano, pessoas físicas e jurídicas declararam movimentação de R$ 363,3 bilhões em criptomoedas no Brasil. Um mercado que quadriplicou em pouco tempo. Em 2020, no ano todo, foram R$ 94,9 bilhões declarados. Mas a facilidade digital e a pouca regulamentação no Brasil despertaram o interesse dos criminosos.

A operação com criptomoedas pelo crime organizado, por exemplo, está no centro da investigação da morte de Antônio Vinicius Gritzbach, delator do Primeiro Comando da Capital (PCC) (leia mais abaixo).

Segundo o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, “assim como os criptoativos vêm crescendo na economia, eles vêm também sendo cada vez mais utilizados para a prática de ilícitos, sobretudo pela lavagem de dinheiro".

E emenda: "Esses valores estão sendo destinados para o pagamento de traficantes de droga no exterior, de tráfico de armas. Inclusive, se constatou em algumas das últimas operações da Polícia Federal a transferência de valores para o terrorismo”.

Um estudo internacional mapeou que menos de 1% das operações com ativos digitais no mundo escondeu movimentações ilegais no ano passado. Mesmo assim, segundo a publicação The Chainalysis Crypto Crime Report, US$ 24,2 bilhões em criptomoedas foram usados na lavagem de dinheiro, ou R$ 140 bilhões, em 2024.

No Brasil não há uma estatística sobre isso, mas os prejuízos já começaram a vir a público. Uma das maiores investigações envolvendo operações ilegais com criptomoedas - a Operação Colossus - revelou um esquema bilionário de evasão de divisas e lavagem de dinheiro.

Os criminosos controlavam várias carteiras administradas em nome de empresas de fachada e ofereciam os ativos digitais para esconder o pagamento de vários crimes. Em menos de dois anos, parte do grupo movimentou R$ 7 bilhões.

"Até uns anos atrás, a Receita Federal tem combatido a lavagem dinheiro de uma maneira mais tranquila, porque era muito comum identificar as pessoas que colocavam o seu patrimônio em nome de laranjas, em nome de pessoas de outras pessoas físicas, nome de parentes. Mas com o avanço da tecnologia e das técnicas de investigação, esse tipo de lavagem de dinheiro saiu de moda porque é muito tranquilo para a gente identificar que o carro que a pessoa está dirigindo está no nome de um laranja. Atualmente, com o advento do criptoativo, por conta da dificuldade da rastreabilidade, a gente tem identificado cada vez mais [a lavagem de dinheiro]", afirmou o auditor-fiscal Fernando Poli.

"O caso da Colossus foi bem emblemático porque a gente percebeu que houve uma grande migração dos doleiros tradicionais, da forma tradicional de lavar dinheiro, para o criptoativo", completou.

Quem são os 'novos doleiros'

Os doleiros são operadores do mercado clandestino de câmbio e que usam um sistema bancário ilegal para lavar dinheiro do crime organizado. Até pouco tempo atrás, eles recebiam dinheiro vivo e convertiam esses valores em dólar em contas que ja tinham no exterior, em uma operação conhecida como "dólar-cabo". Já nos outros países, o dinheiro era repassado para criminosos, que faziam saques ou transferências para paraísos fiscais, sem que os valores fossem declarados.

O que os investigadores confirmam é que, recentemente, esse negócio mudou. A criptomoeda começou a ser usada tanto para esconder dinheiro ilegal quanto para movimentá-lo pelo mundo, em transações difíceis de serem rastreadas.

No Brasil, o doleiro oferece sua carteira de criptomoedas aos criminosos. Assim, quem precisa receber do crime organizado recebe o pagamento em moedas digitais em contas fora do país e depois saca os valores por meio de outras corretoras, no exterior, sem intermediários ou controle no sistema bancário formal, muito diferente do que acontece com qualquer outra transação internacional.

Segundo o procurador Andrey Mendonça, os doleiros se aperfeiçoaram para operar moedas digitais do crime organizado.

"É uma profissionalização. O traficante não vai mais fazer a lavagem do dinheiro. Ele contrata uma pessoa que tem conhecimentos específicos para fazer essa atividade porque ele vai fazer de maneira muito mais profissional, com muito mais conhecimento. O que se percebeu é que as organizações criminosas têm terceirizado para pessoas desse meio dos criptoativos", disse.

Alexandre Senra, procurador da República e coordenador do Grupo de Apoio Criptoativos do Ministério Público Federal (MPF), pondera que a operação é complexa, mas não impossível de ser rastreada.

"As pessoas acham realmente que movimentações feitas no bitcoin ou em outros blockchain são anônimas, são globais e que não podem ser rastreadas. O que é um completo equívoco, porque movimentações feitas tanto envolvendo bitcoin quanto envolvendo outro criptoativo são lançamentos feitos em um registro distribuído. Ele é público, qualquer pessoa pode consultar", explica.

"A gente não precisa requisitar nenhuma informação confidencial para abrir no explorador de blocos e ver o que está acontecendo. E, além disso, esse livro é imutável. Eu não consigo pensar num ambiente pior para você deixar rastros de qualquer atividade criminosa do que um livro onde você não pode apagar as coisas", detalhou Senra.

O desafio, segundo as autoridades, é fiscalizar e obrigar que haja uma maior transparência das plataformas que operam tanto dinheiro.

"É claro que a gente não pode ser maniqueísta e achar que toda atividade de criptoativos é ilícita. Ao contrário, a grande maioria das atividades de criptoativos são atividades plenamente lícitas, que buscam objetivos lícitos. Mas considerando as características próprias dessas criptomoedas, elas se tornam um potencial instrumento para praticas ilícitas", aponta o procurador Andrey Mendonça.

De acordo com ele, as características são a falta de uma autoridade central que possa regular essa atividade, além de serem atividades globais, que não estão limitadas a um único país.

Para o auditor fiscal Fernando Poli, o grande desafio é que "as instituições bancárias e quem está envolvido no mercado criptoativo tem que conhecer o cliente e tem que comunicar as autoridades sempre que se depararem com uma atividade relacionada à lavagem de dinheiro que ele levante movimentação ou uma atividade atípica".

E completa: "Se torna necessária uma regulamentação maior das corretoras (...) A gente consegue fazer uma investigação efetiva, mas uma investigação muito mais trabalhosa, mais demorada, por conta da dificuldade do ambiente de negócios".

Já Senra acredita que as operações com criptomoedas e, consequentemente, a lavagem de dinheiro, vão aumentar mesmo com uma regulamentação específica. "O ambiente do criptoativos tem um aspecto que de fato é muito favorável. A movimentação de recursos globalmente, que é o fato de ser em transações não intermediadas, de modo que eu envio uma fração de bitcoin para alguém no Brasil ou alguém que está na China, essa transação vai levar o mesmo tempo para acontecer se ela for feita através do blockchain e ela não vai depender de nenhum intermediário. Quer dizer, essa é uma limitação que o sistema financeiro tradicional tem e que o ambiente de criptoativos de fato não tem e nunca vai ter", detalha o procurador Alexandre Senra.

O Marco Legal dos Criptoativos foi sancionado em dezembro de 2022 pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. O texto inclui no Código Penal a punição contra fraudes e define regras para as exchanges (casas de negociação de criptomoedas). Até então, as regras não eram adaptadas para as operações que envolvem serviços de ativos virtuais.

No entanto, ainda não há regulamentação clara e abrangente sobre o mercado de criptomoedas no Brasil. O Banco Central é responsável por definir essas regras e punições, e atualmente está em fase de consultas públicas para receber contribuições. A promessa é que as propostas normativas sejam finalizadas até o fim deste ano.

O Congresso Nacional também discute um projeto de lei que obriga as corretoras de criptomoedas apresentarem mais detalhamento dos investimentos feitos por empresas e também pessoas físicas para combater a lavagem de dinheiro com os ativos digitais. A proposta foi aprovada pela Câmara dos Deputados no começo do mês e agora será analisada pelo Senado Federal.

Operação com criptomoeda envolve delator do PCC morto

A operação com criptomoedas pelo crime organizado está no centro da investigação da morte de um delator do PCC. Em delação premiada, Antônio Vinicius Gritzbach admitiu que lavava dinheiro do tráfico com a compra de imóveis de luxo na Zona Leste de São Paulo há quase uma década, e que, há alguns anos, ofereceu um investimento muito mais rentável: a compra de criptomoedas.

Um dos narcotraficantes mais influentes do PCC na capital repassou pelo menos R$ 200 milhões para Gritzbach, que também trabalhava como doleiro para o crime organizado. A proposta era dividir os lucros. Segundo o Ministério Público, quando o narcotraficante cobrou o retorno das aplicações, houve uma discussão entre os dois. E, dias depois, em dezembro de 2021, o narcotraficante e seu motorista foram mortos a tiros. Gritzbach era réu pelo duplo homicídio e sempre negou ser mandante do crime.

No começo de novembro, o delator foi executado a tiros no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, após revelar detalhes do esquema de ocultação de patrimônio da facção. A polícia apura se as operações com criptomoedas têm relação com o assassinato.