Entenda o que é o aborto legal e como ele é feito no Brasil

Procedimento é permitido por lei em casos de gravidez decorrente de estupro, risco à vida da gestante ou anencefalia do feto, e deve ser oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Veja quais são as regras no país.

Por Patrícia Figueiredo e Victor Farias, g1 — São Paulo


Hospital Pérola Byington é referência no atendimento a mulheres para fazer aborto nos três casos previstos em lei no Brasil — Foto: Bárbara Muniz Vieira/g1

O aborto legal é um procedimento de interrupção de gestação autorizado pela legislação brasileira e que deve ser oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). É permitido nos casos em que a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco à vida da gestante ou quando há um diagnóstico de anencefalia do feto.

Embora este direito seja previsto em lei há mais de 80 anos, mulheres enfrentam dificuldade para abortar em hospitais brasileiros e precisam, às vezes, viajar mais de 1.000 quilômetros para se submeter ao procedimento de forma legal.

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Médicos ouvidos pelo g1 afirmam que esse direito não tem sido garantido pelo estado brasileiro na prática. E ainda há muitas dúvidas, inclusive por parte de autoridades, a respeito do que pode ser feito e como deve conduzido o processo.

Veja a seguir as respostas às seguintes perguntas:

  1. O que é preciso para fazer o aborto legal?
  2. Tem tempo máximo para fazer aborto?
  3. O médico tem que contar à polícia que um aborto legal foi feito?
  4. Onde ele é feito?
  5. Como ele é feito?
  6. Para quem recorrer quando o direito é negado?
  7. O médico pode se negar a fazer o aborto legal?
  8. Quantos abortos são feitos no Brasil?

O que é aborto legal?

A legislação brasileira que trata do aborto foi criada há mais de 80 anos. O Código Penal Brasileiro, de 1940, tipifica o aborto como crime e prevê que mulheres e médicos sejam punidos penalmente se provocarem um aborto. Há, no entanto, algumas exceções na legislação: estes são os casos de aborto legal.

Em que situações é permitido no Brasil?

O aborto é permitido em três situações:

  1. anencefalia fetal, ou seja, má formação do cérebro do feto;
  2. gravidez que coloca em risco a vida da gestante;
  3. gravidez que resulta de estupro.

Vale lembrar que a gravidez decorrente de estupro engloba todos os casos de violência sexual, ou seja, qualquer situação em que um ato sexual não foi consentido, mesmo que não ocorra agressão. Isso inclui, por exemplo, relações sexuais nas quais o parceiro retira o preservativo sem a concordância da mulher.

O que é preciso para fazer o aborto legal?

Para os casos de gravidez decorrente de violência sexual, não é preciso apresentar Boletim de Ocorrência ou algum exame que ateste o crime, como um laudo do Instituto Médico Legal (IML). Para o atendimento, basta o relato da vítima à equipe médica.

Todos os documentos necessários são preenchidos no próprio hospital. Neles, a mulher opta oficialmente pelo aborto e se responsabiliza pelos fatos narrados à equipe médica.

A norma técnica do Ministério da Saúde que regulamenta a prática também recomenda que a mulher seja atendida por uma equipe multidisciplinar, com médico, assistente social e psicólogo, e que pelo menos três profissionais de saúde participem da reunião para definir se a mulher pode realizar o aborto ou não.

Já para os casos de gravidez de risco e anencefalia, é necessário laudo médico que comprove a situação. Além disso, um exame de ultrassonografia com diagnóstico da anencefalia também pode ser exigido para o abortamento causado por má formação do feto.

Aborto legal: 4 em cada 10 mulheres têm que viajar para fazer procedimento

Tem tempo máximo para fazer aborto?

A coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública Estadual do Rio de Janeiro, Flávia Nascimento, afirma que existe uma “dúvida geral” nos casos em que a gravidez decorrente de uma violência sexual ultrapassa o prazo de 21 semanas ou quando o feto tem um peso acima de 600 gramas. No entanto, a defensora explica que é possível interromper a gravidez de forma legal mesmo nesses casos, porque o Código Penal não determina um prazo máximo.

“Há uma dúvida se seria possível realizar os abortos nesses casos. A gente entende que a lei não impõe nenhuma limitação, não tem limitação temporal de tempo gestacional”, explica.

Apesar disso, não há consenso nacional sobre a realização de interrupções de gestação após as 22 semanas.

A Defensoria Pública Estadual de São Paulo, por exemplo, divulgou no passado uma cartilha afirmando que, nos casos de violência sexual, o aborto é permitido até a 20ª semana de gestação, ou até 22 semanas, desde que o feto tenha menos de 500 gramas. O documento, no entanto, foi retirado do ar. Em uma cartilha mais recente, a mesma defensoria lembra que "o Código Penal não fixa prazo", mas recomenda que a vítima "procure o hospital para a realização do procedimento o mais breve possível, preferencialmente, até 20ª ou 22ª semana de gravidez".

Essa orientação reflete uma nota técnica do Ministério da Saúde, que tem caráter de recomendação e que qualifica como abortamento "a interrupção da gravidez até a 20ª-22ª semana".

Para os abortos justificados por risco de vida à gestante e anencefalia, não há idade gestacional máxima para a realização do procedimento.

“Nos casos tanto de inviabilidade de vida extrauterina quanto de risco de vida [da mulher], não há tanto esse questionamento em relação ao tempo gestacional. Até porque os casos dessas síndromes que inviabilizam a vida extrauterina, via de regra, são descobertos já com um tempo gestacional maior”, afirma Nascimento, da Defensoria do Rio de Janeiro.

O médico tem que contar à polícia que um aborto legal foi feito?

Sim, caso seja uma gravidez decorrente de violência contra a mulher.

Desde 2020, uma lei obriga profissionais de saúde a registrar no prontuário médico da paciente e comunicar à polícia, em 24 horas, indícios de violência contra a mulher.

Na época da aprovação da portaria que, na prática, ampliou as exigências para médicos que atendem mulheres em busca de aborto por estupro, a necessidade de identificação da vítima sem seu consentimento foi criticada por defensores de direitos das mulheres.

O médico Jefferson Drezett, que coordenou o maior serviço de aborto legal do Brasil por mais de 20 anos, no Hospital Pérola Byington, defende que a comunicação à polícia só seja feita com autorização da paciente. Ele afirma que este é um padrão adotado atualmente por serviços de excelência.

“A nossa prática é a de que ela deve concordar, ou a comunicação pode ser feita sem a concordância dessa mulher, se eventualmente ela estiver sob o risco de morrer. Aí, sim, o serviço de saúde pode fazê-lo sem autorização”, diz.

Carro da Polícia Militar na Vila Aeroporto, em Campinas, no interior de São Paulo, em foto de 18 de janeiro de 2022 — Foto: LUCIANO CLAUDINO/CÓDIGO19/ESTADÃO CONTEÚDO

Onde ele é feito?

Isso varia, mas, em geral, hospitais públicos de grandes cidades oferecem o serviço. O problema é que nem todo estabelecimento que faz aborto legal no Brasil realiza o procedimento nas três situações previstas em lei. Segundo médicos e pesquisadores, é comum que casos de anencefalia encontrem menos resistência que os de violência sexual, por exemplo.

Levantamento do g1 encontrou 175 municípios com registro de aborto nos casos previstos em lei entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2022. O Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, do Ministério da Saúde, indica que outros 20 municípios têm estabelecimentos que fazem interrupção de aborto. (Veja a lista no fim do texto).

Na dúvida, uma opção é procurar ONGs que auxiliem mulheres a encontrar esses serviços ou a Defensoria Pública da União (DPU).

O Hospital Pérola Byington, localizado no bairro da Bela Vista, região central da capital, é referência no atendimento a mulheres vítimas de violência — Foto: Celso Tavares/G1

Como ele é feito?

Segundo a norma técnica do Ministério da Saúde, sempre que possível deve ser oferecida à mulher a opção de escolha da técnica a ser empregada para a interrupção da gestação:

  • abortamento farmacológico, ou seja, induzido por medicamentos;
  • procedimentos aspirativos, como a aspiração manual intrauterina (AMIU);
  • ou dilatação seguida de curetagem.

Para quem recorrer quando o direito é negado?

A defensora Flávia Nascimento, do Rio de Janeiro, orienta as mulheres que tiveram o direito negado a buscar a defensoria pública, seja ela estadual ou federal.

Segundo ela, em geral, não é necessário acionar a Justiça para garantir que a mulher vítima de estupro seja atendida para fazer o aborto legal. “Na maioria das vezes, a gente oficia a unidade de saúde, informando sobre o direito, que não há previsão na lei exigindo Boletim de Ocorrência”, comenta.

Nascimento afirma que é mais comum que a defensoria judicialize os casos de síndromes com o diagnóstico de inviabilidade de vida extrauterina, mas que não são anencefalia.

“Como não é o caso da anencefalia específico, da decisão do STF, a gente judicializa e faz essa analogia com a hipótese da anencefalia: diante da inviabilidade de vida extrauterina, estaria permitida a interrupção da gestação”, afirma.

Ao contrário do aborto previsto nos casos de violência sexual e gravidez de risco, que estão previstas na lei brasileira de 1940, a possibilidade de interrupção da gravidez de aborto anencefálico só foi legalizada em 2012, por conta de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que trouxe essa jurisprudência.

Plenário do Supremo durante julgamento de ação que pede liberação de aborto para anencéfalos — Foto: Carlos Humberto / SCO / STF

O médico pode se negar a fazer o aborto legal?

Em alguns casos, sim. Para isso, ele precisa alegar objeção de consciência, ou seja, declarar que a prática lhe causaria profundo sofrimento emocional.

Segundo o Código de Ética Médica, “o médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente”.

O código determina que a objeção médica tem limites. Não é possível se recusar a fazer o procedimento caso o abortamento seja por conta de risco de vida para a mulher. Em qualquer outra situação de abortamento juridicamente permitido, o médico também não pode alegar essa objeção se não houver outro médico que o faça, segundo o código de ética da profissão.

Quando a mulher puder sofrer danos ou agravos à saúde em razão da omissão, e no atendimento de complicações derivadas de abortamento inseguro, por se tratarem de casos de urgência, também é vetada a objeção do médico, de acordo com o código.

Médicos na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital de Campanha Ame Barradas, em Heliópolis, na zona sul de São Paulo, em foto de arquivo — Foto: Mister Shadow/ASI/Estadão Conteúdo

Quantos abortos são feitos no Brasil?

Dados coletados pelo g1 indicam que, de janeiro de 2021 a fevereiro de 2022, 1.823 abortos legais foram feitos no Brasil. O número é considerado pequeno por especialistas e médicos. A título de comparação, a médica Helena Paro cita o número de crianças que têm filhos no Brasil anualmente.

“Se a gente for pensar só nas meninas que engravidam antes dos 14 anos, que teriam direito ao aborto, porque são vítimas de estupro de vulnerável, a gente tem 20 mil partos [a média de meninas dessa idade que tiveram filho de 2016 a 2020 é de 20,8 mil] por ano. Elas não são obrigadas [a abortar], mas elas têm esse direito. Você acha que todas queriam manter a gravidez?", afirma.

Veja a nota do Ministério da Saúde sobre o tema:

"O Ministério da Saúde informa que, em 2020, foram realizados 2.071 procedimentos com excludente de ilicitude. Em 2021, foram registrados 1.997 procedimentos. Em 2022, até o mês de fevereiro, foram registrados 385 (dados preliminares, sujeitos à alteração). Atualmente, o Brasil conta com 111 estabelecimentos de saúde habilitados para realizar procedimento de interrupção da gestação nos casos excludentes de ilicitude. Considerando a complexidade e necessidade de cada caso, ou quando os serviços de saúde locais não dispõem de equipe qualificada para realização dos procedimentos, as mulheres são encaminhadas para outras unidades, com o objetivo de garantir o acesso, a integralidade e a segurança do cuidado previsto em lei."

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