A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, no mundo inteiro, cerca de 300 milhões de pessoas sofram de depressão.
Classificada como uma "crise negligenciada de saúde global", a doença tem números relevantes no Brasil: segundo dados da pesquisa Vigitel 2021 (realizada pelo Ministério da Saúde), 11,3% dos entrevistados disseram ter recebido diagnóstico médico para depressão. Entre os homens, o percentual foi de 7,3%; nas mulheres, foi o dobro (14,7%).
Apesar de relativamente comum, a depressão ainda é estigmatizada, segundo especialistas ouvidos pelo g1: tratada como "frescura" ou "fraqueza". Embora os últimos anos tenham sido de mudança no cenário, falar sobre o tratamento (especialmente com remédios) desse ou de outros transtornos mentais ainda enfrenta obstáculos.
Mas, então, o que é depressão, quais são os seus sintomas e como é o tratamento? O que leva alguém a ter depressão? É sobre esses pontos que você vai ler abaixo nesta reportagem.
- O que é depressão?
- Quais são os sintomas?
- Onde buscar ajuda?
- Como é o diagnóstico?
- Como é o tratamento?
- O que causa a depressão?
- Quais são os fatores de risco?
- Depressão tem tratamento?
1) O que é depressão?
A depressão é um transtorno de humor.
"O nosso organismo tem várias funções – tem a função digestiva, a visual, a auditiva, e tem uma função chamada humor, que dá o tom, o colorido das coisas, o colorido afetivo: se é positivo, se é negativo, se é bom, se é mau", explica o psiquiatra Daniel Barros, do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).
"Essa função pode adoecer – e uma das maneiras de ela adoecer é a depressão – é um transtorno do humor nesse sentido", esclarece.
2) Quais são os sintomas?
Os critérios centrais para diagnosticar a depressão em alguém são o humor triste e a anedonia – a diminuição ou a ausência de interesse ou prazer em coisas que, antes, davam prazer à pessoa, explica Christian Kieling, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
"Esses são os dois critérios necessários – pelo menos um deles tem que estar presente para a gente fazer o diagnóstico de depressão. Mas isso é só um critério diagnóstico – não quer dizer que a gente vai dizer que a depressão é igual a isso", ressalva.
Existem outros:
- alterações do sono (a pessoa passa a dormir pouco ou demais);
- alterações do apetite (a pessoa passa a comer pouco ou demais) ou de peso;
- redução da atenção, da concentração e da memória;
- cansaço ou baixo nível de energia;
- pensamentos de culpa, baixa autoestima, desesperança em relação ao futuro, morte ou suicídio;
- irritabilidade, impaciência, pessimismo, negatividade
Daniel Barros, da USP, lembra que a tristeza não necessariamente precisa aparecer.
"Geralmente, tem essa tristeza ou desânimo, mas tem quadros de depressão que são atípicos, e isso não é raro. A pessoa fica mais irritada, mais impaciente, mais negativa, mais pessimista... sem sentir tristeza, sem choro. E, aí, ela fica esperando: 'ah, não, isso aqui não é depressão porque eu não estou chorando', e é", esclarece.
Em um episódio depressivo, a pessoa pode ter dificuldades significativas no funcionamento pessoal, familiar, social, educacional, ocupacional ou em outras áreas, alerta a OMS.
Mas, então, como diferenciar um sintoma de depressão de uma tristeza "normal", que acontece com todo mundo ao longo da vida?
"Quem tem que diferenciar é o profissional de saúde – seja um médico, seja um psicólogo, seja o clínico geral. A pessoa não tem obrigação de saber se uma pinta é câncer ou é só uma pinta", compara Daniel Barros.
O médico explica que, se a pessoa tem uma reação da qual ela suspeita – 'será que isso aqui é normal? Isso aqui está durando muito – então é bom ela procurar um profissional.
"Na dúvida, é melhor procurar, mesmo que não seja nada, e ter essa avaliação, do que o contrário – do que ser alguma coisa e a pessoa ficar esperando para ter certeza", alerta o psiquiatra.
3) Onde buscar ajuda?
Daniel Barros defende que a pessoa busque ajuda onde conseguir – seja em uma consulta no posto de saúde, com o psicólogo ou médico do convênio ou de algum lugar que a pessoa frequente, como a igreja, por exemplo.
"Nessa hora, a pessoa tem que pedir ajuda onde ela conseguir. Pode ser num médico de família com o clínico geral, com o pediatra do filho dela, tem que falar com alguém. Na dúvida, fala com alguém", recomenda.
Humberto Corrêa, psiquiatra professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esclarece que os médicos nos postos de saúde estão aptos a prescrever antidepressivos – não há necessidade, a princípio, de recorrer a um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), no caso do sistema público, explica.
"Aquelas com risco iminente de suicídio, aquelas muito graves, com sintomas psicóticos, iriam pro Caps, que seria uma atenção secundária. Mas, em princípio, a maioria dos quadros depressivos seriam atendidos na atenção primária, no próprio território do paciente, pela equipe da atenção primária", esclarece.
4) Como é o diagnóstico?
Kieling explica que, na psiquiatria, os diagnósticos são um pouco mais complexos – porque não há, como em outras áreas, um teste objetivo para detectar uma doença, por exemplo.
"Eu preciso escutar o paciente, eventualmente até escutar familiares, conhecidos – às vezes mais de uma escuta – para poder ter ideia se a pessoa está mesmo com depressão ou não. E isso, evidentemente, torna as coisas mais confusas, ou menos claras, talvez, para quem está de fora, e, por isso, a gente vê, ainda, uma negligência muito grande", aponta.
5) Como é o tratamento?
A resposta é: depende. O tratamento da depressão vai depender da intensidade, da gravidade e da duração dos sintomas. Nem sempre, por exemplo, o antidepressivo será necessário, mas ele pode ser associado à psicoterapia para o tratamento da doença.
"Nós sabemos que a combinação do fármaco mais a psicoterapia é superior a cada um deles de forma isolada. Esse é um tratamento padrão", afirma Humberto Corrêa, da UFMG.
Mesmo que seja indicado, entretanto, o antidepressivo também não será, sozinho, a solução para a depressão.
"É importante a gente ter claro que o tratamento da depressão não é tomar o antidepressivo simplesmente – assim como o tratamento da diabetes não é só tomar o remédio antidiabético. O tratamento da pressão alta não é só tomar o anti-hipertensivo", compara Christian Kieling.
"Para depressão, também é isso: a gente também precisa pensar no dia a dia, em aspectos não farmacológicos, tanto através da psicoterapia quanto em questões do ambiente no qual a pessoa está inserida. Uma criança, um adolescente, por exemplo, que está sofrendo bullying na escola, não adianta eu dar um antidepressivo e o bullying estar associado à depressão desse adolescente. Não adianta, muitas vezes, nem eu botar ele em psicoterapia se eu não mexer no ambiente – então, [são necessárias] medidas mais estruturais, que possam trabalhar o ambiente no qual esse paciente, esse indivíduo está inserido", completa o psiquiatra.
Já no caso da psicoterapia, é importante buscar abordagens que sejam baseadas em evidências científicas – como a terapia cognitivo-comportamental (TCC) ou a terapia interpessoal (TIP), explica Corrêa.
Kieling concorda.
"É uma outra conclusão que a gente viu na nossa comissão: é fundamental o tratamento psicoterápico com psicoterapias que foram testadas em estudos. Tem muitas formas de psicoterapia – como é que eu sei se essa forma de psicoterapia é eficaz para o tratamento de depressão? Eu tenho que fazer um estudo bem conduzido, que a gente chama de ensaio clínico, em geral randomizado, sorteando quem vai receber que tipo de tratamento e comparar e ver a eficácia", explica.
E, nos casos em que o remédio é necessário, por quanto tempo ele deve ser mantido?
A resposta, de novo, é: depende. Não há um prazo fixo – remédios psiquiátricos não são, por exemplo, como antibióticos.
"Na depressão, a gente tem o que a gente chama de tratamento de manutenção, ou de continuação, para prevenir novos episódios", explica Christian Kieling.
Ele diz que é comum que, por exemplo, as pessoas comecem o tratamento – com terapia ou com remédio – , melhorem e, então, parem um dos dois ou ambos. Aí, voltam a piorar.
"É muito importante que as pessoas tomem essa decisão de parar o tratamento junto com o profissional de saúde que está acompanhando – seja psicólogo, psiquiatra – para ver se é o momento de parar. Porque, muitas vezes, pode ser muito cedo para parar, justamente porque a gente tem que proteger o indivíduo nessa janela logo depois da melhora", explica o médico.
"É uma janela de tempo que há um risco maior para ter um novo episódio, então a gente tem que proteger nesse momento. Isso tem que ser visto individualmente, em cada caso. Por exemplo: um paciente que já está no seu décimo episódio depressivo talvez seja um paciente para o qual a gente vai recomendar um tratamento continuado, que não vá parar depois de 6 meses ou um ano. A gente vai decidir isso junto com o paciente. Não é o médico sozinho que vai decidir essas coisas", esclarece Kieling.
6) O que causa a depressão?
A depressão é uma condição complexa que é produto da interação entre condições biológicas, genéticas e ambientais.
"Nós entendemos a depressão – como outras doenças mentais – como doenças complexas; são multifatoriais", afirma o psiquiatra Humberto Corrêa, da UFMG.
"Inegavelmente, existe um papel da biologia na gênese das doenças mentais e da própria depressão. Essa biologia se expressa de várias formas, inclusive do ponto de vista genético. Nós sabemos que a depressão, em parte, é geneticamente determinada – como também são outras doenças. Significa dizer que isso explica a depressão? Não", continua Corrêa.
"A depressão vai acontecer em interação com questões ambientais. Então, [as doenças mentais] são doenças complexas que têm, de um lado, uma vulnerabilidade biológica e, de outro lado, o ambiente em que nós vivemos", resume o pesquisador.
Daniel Barros frisa que, independentemente do motivo que leva alguém a ter depressão, a "culpa" nunca é de quem fica doente.
"Seja qual for a causa – neurotransmissor, vida, vivência, econômica, [a depressão] é sempre multicausal, mas nunca é culpa da pessoa. 80% das pessoas no Brasil não se tratam e o principal motivo não é falta de acesso ao tratamento, mas preconceito – justamente por achar que é fraqueza, ou que a pessoa tem que reagir. Ninguém acha que tem que reagir contra asma – mas acha que tem que reagir contra sintomas psiquiátricos, o que é um grande preconceito", pondera.
7) Quais são os fatores de risco para desenvolver depressão?
Vários fatores podem deixar alguém mais vulnerável a desenvolver depressão: questões econômicas – como a perda de um emprego –, histórico de abuso ou de violência, luto, eventos traumáticos, pertencer à população LGBT, ser mulher ou até exercer determinadas profissões – como a de médico.
As mulheres, por exemplo, têm uma prevalência duas vezes maior de depressão do que os homens, explica Christian Kieling. E a adolescência é a idade em que mais surgem casos novos.
"No sexo feminino, além de questões de desigualdade e discriminação – que também vale para a população LGBTQIA+ –, na nossa sociedade, as mulheres, as meninas já, recebem um tratamento que não é exatamente igual ao dos meninos. Isso também, felizmente, tem mudado nos últimos tempos, mas ainda não dá pra dizer que é totalmente igual. Inclusive em termos de vulnerabilidade a situações de abuso, de maus tratos, de abuso físico, abuso sexual – as meninas acabam ficando mais vulneráveis", pondera.
A psicóloga Priscila Sanches, que atende em Fortaleza e em consultas on-line e fala sobre psicologia e questões de gênero em um perfil no Instagram, levanta algumas hipóteses para que as mulheres sejam as mais afetadas pela depressão.
"Não é difícil entender o que faz com que a mulher desenvolva o dobro de risco de ter o transtorno depressivo maior. A mulher tem menos direitos que os homens. A sociedade é moldada por leis e quem faz as leis são os homens. Em várias sociedades, tanto os direitos quanto os status são diferentes; são oprimidas pelas leis, pelas instituições e pela sociedade em forma de julgamento", aponta.
Ela cita, como Kieling, o fato de as mulheres serem maioria entre quem sofre abusos, assédio ou estupro. Além disso, também há o acúmulo de responsabilidades da carreira, casamento, casa e filhos, que deixa as mulheres sobrecarregadas.
"Quando elas entram no mercado [de trabalho], não deixam de ser exigidas. Não foi retirada [uma] responsabilidade, foi acrescida. Ela continua precisando ser mãe, esposa, e ainda precisa estar no mercado de trabalho. E ainda tem o trabalho não remunerado que são as tarefas domésticas. São no mínimo quatro tarefas que são cobradas da mulher e não do homem", diz Sanches. "E elas realmente acreditam que precisam fazer tudo isso perfeitamente".
Um outro ponto é a questão da autoimagem, aponta a psicóloga. "Existe uma questão do corpo perfeito – a imagem que a mulher precisa corresponder a esse corpo padrão, essa beleza, que é uma qualidade que a mulher tem que ter: malhar, se preocupar com o corpo", relata.
Já a adolescência é um período em que muitas mudanças acontecem, assinala Kieling.
"A gente tem o cérebro do adolescente mudando muito – as estruturas cerebrais acabam sofrendo uma série de modificações nesse período – ao mesmo tempo em que há uma série de mudanças no ambiente onde o indivíduo está inserido: desde questões de relacionamentos à vida amorosa, sexual, o final da escola, entrada numa vida adulta mais independente. Isso faz com que não só a depressão, mas uma série de outros transtornos mentais costumem aparecer nessa faixa etária", completa.
Na experiência de Sanches, a pandemia foi um gatilho para desenvolvimento de transtornos de ansiedade nos adolescentes que atende, com alguns desenvolvendo dificuldade de socializar depois do isolamento. Alguns deles, por exemplo, estavam no terceiro ano do ensino médio – o "divisor de águas" para a vida adulta – quando a pandemia eclodiu.
"Estamos falando de adolescência. Esse período é um período em que o adolescente deseja se diferenciar do núcleo familiar. Ele quer se diferenciar, ele quer crescer. Na pandemia, ele não pôde socializar", lembra.
8) Depressão tem tratamento?
Embora não tenha cura, a depressão é uma doença tratável, explica Christian Kieling – como a hipertensão ou o diabetes.
"A cura seria aquela ideia de que eu fiz um tratamento, e, por causa daquele tratamento, a coisa desapareceu e nunca mais voltou. Isso a gente não tem em psiquiatria, para depressão, infelizmente", afirma.
Ele destaca que a depressão é uma doença episódica.
"Às vezes, a pessoa tem um episódio só e nunca mais vai ter outro. Às vezes, ela tem dois e nunca mais vai ter outro, às vezes ela tem cinco e nunca mais vai ter outro", diz o psiquiatra.
"Podem existir episódios muito longos, que duram anos? Pode. Mas o mais normal é a gente ter episódios que tenham início, meio e fim mais delimitados. A depressão é uma doença como asma – tem épocas que a pessoa está bem, tem épocas que a pessoa tem crise", explica.
"Tem gente que só tem asma na infância e depois nunca mais vai ter; tem gente que tem depressão uma vez só e depois nunca mais vai ter outra. Assim como, infelizmente, uma parcela – que é a minoria da população, mas existe essa minoria, e é uma minoria importante – tem depressão crônica, ou seja, depressão recorrente, que, todo ano, ou a cada dois anos, ou várias vezes no ano, ela tem novos episódios", completa Kieling.
"E essa é uma parcela que não é a maioria da população, não é a maioria dos casos de depressão, mas é uma minoria importante, até porque, via de regra, são os pacientes que mais precisam de ajuda, pacientes para os quais a gente vai, em geral, oferecer o tratamento combinado – de psicoterapia mais medicação", pontua.
Psiquiatra diferencia preguiça e depressão