Neto atende desejo da avó falecida e consegue na Justiça doar corpo para estudos em universidade do RS

No Brasil, há 36 programas de doação em cursos de medicina. Tendência no mundo inteiro, uso de cadáveres proporciona aos alunos uma experiência mais próxima da real para treinar procedimentos cirúrgicos e outras pesquisas. Saiba como funciona o processo.

Por João Pedro Lamas, g1 RS


Leandro Severino e sua avó, Delma Ribeiro — Foto: Carlos Macedo/Agência RBS

Leandro Severino, de 42 anos, conseguiu atender ao desejo de sua avó, Delma Ribeiro, falecida aos 75 anos em Porto Alegre: que seu corpo fosse doado a uma universidade para ser usado em pesquisas e na formação de futuros médicos.

Em 2015, um entrave burocrático impediu que fosse feita a doação para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), razão pela qual ele precisou apelar para a Justiça. A decisão favorável veio em segunda instância, após intervenção da Defensoria Pública do estado.

Uma lei federal de 2002 regulamenta a possibilidade de a pessoa doadora manifestar o desejo em vida, por meio de um termo de doação – qualquer pessoa maior de idade pode fazê-lo. Mas Severino só tinha uma cópia da manifestação da avó, que havia sido feita em 1992.

Com isso, um cartório se negou a emitir a certidão de óbito. Sem o documento, a UFRGS não pôde aceitar a doação.

"O sistema registral não aceita nem cópias autenticadas. Precisa ser a manifestação original. Leandro procurou, mas não achou. A decisão de primeiro grau foi formalista, então, houve a necessidade de recorrer a uma instância superior. Pessoas próximas testemunharam em favor do Leandro e o desembargador foi mais flexível", conta o defensor público Jonas Scain Farenzena.

De acordo com a professora do Programa de Doação de Corpos da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Andrea Oxley, é possível que a recusa inicial tenha ocorrido porque Leandro não era o responsável direto pela avó.

"A lei não tem detalhes que descrevam ela melhor, que caracterizem ela melhor. Aqui, um parecer da procuradoria jurídica faz recomendações que tem a lei de doações de órgãos como referência. A ideia é facilitar o processo", diz Andrea.

Severino perdeu o pai quando ainda era criança. Morou com os avós maternos até os 13 anos, quando passou a viver com Delma, sua avó paterna.

Foram 22 anos de convivência, nos quais Severino disse ter aprendido com uma mulher que sempre demonstrou alegria e disposição de ajudar os outros. Por isso, o neto lutou até o fim para garantir a doação do corpo.

"O que me motivou foi a força que ela sempre me deu, para não desistir de nada. Se ela, apesar de ser cadeirante, nunca desistiu, por que eu, com pernas e braços, iria?", questiona.

A doação de corpos no Brasil

Esqueletos expostos em museu da UFCSPA — Foto: UFCSPA/Divulgação

De acordo com a Sociedade Brasileira de Anatomia, as universidades brasileiras contam com 353 cursos de Medicina. Em 2022, há 36 programas de doação. Em 2008, havia só dois. Um deles era o da UFCSPA, que foi criado nesse mesmo ano.

Inicialmente, a maioria dos cadáveres usados no ensino, na pesquisa e na extensão eram "corpos não reclamados", ou seja, de pessoas que não tinham parentes identificados que eram encaminhados principalmente pelo Instituto Médico Legal (IML) .

Atualmente, o cenário mudou. Ao contrário do que se supõe, quase não são usados esse tipo de corpos.

Os dados a respeito do assunto no Brasil não são centralizados, razão pela qual é difícil apontar números absolutos de doação no país. No entanto, utilizando a UFSCPA como exemplo, é possível ter ideia da evolução da doação em território brasileiro.

Os dados mais recentes, de 2008 até 2019, indicam que o número de pessoas que manifestaram interesse em doar aumentou 12 vezes. Nesse mesmo período, a universidade recebeu 112 doações.

Número de cadastrados como doadores de corpos na UFCSPA

2008 12
2009 51
2018 155
2019 148

*O recebimento de doações foi suspenso devido à pandemia de Covid-19 no final de 2019. Por isso, não há dados de 2020 e 2021. Com a melhora do cenário pandêmico no Brasil, elas puderam ser retomadas.

O Rio Grande do Sul é um dos estados que mais conta com universidades que têm programas de doação. Há instituições de ensino em diferentes regiões, como a UFRGS (Porto Alegre), a Pontifícia Universidade Católica (Porto Alegre), a Feevale (Novo Hamburgo), a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo), a Universidade de Santa Cruz do Sul (Santa Cruz), a Universidade Federal de Pelotas (Pelotas) e a Universidade Federal de Santa Maria (Santa Maria). No entanto, essa não é a realidade brasileira.

"Tocantins, por exemplo, tem um programa. Minas Gerais tem três. Universidades podem enfrentar problemas e ter uma carência enorme. Há casos daquelas que ainda dependem de corpos não reclamados, o que cria um desafio para a demanda", conta Andrea.

A destinação de corpos desse tipo para as universidades ocorre por meio de três centrais. Elas recebem os corpos e encaminham para as universidades.

"Não funciona [esse sistema]. Não é o melhor mecanismo. Porque nós somos os fiéis depositários. A família quer saber para onde vai o corpo", afirma Andrea.

Como doar: qual é o melhor mecanismo?

Museu da UFCSPA reúne material usado em pesquisas — Foto: UFCSPA/Divulgação

Uma lei federal de 2002 regulamenta esse tipo de doação para atividades de ensino, pesquisa e extensão. No entanto, ela não detalha processos, razão pela qual pareceres de procuradorias jurídicas tentam orientar as universidades e a população da melhor forma.

Em geral, no Brasil, basta que a pessoa interessada na doação manifeste em vida o interesse em fazer isso, o que pode ser feito para a família ou para a própria universidade.

É importante que o assunto seja discutido com a família – no caso de divergência entre familiares quanto à doação, a universidade opta por não receber o corpo.

Como a lei não traz mais detalhes, as universidades geralmente pedem que a pessoa responsável pelo falecido vá até um cartório quando houver a morte e, no atestado de óbito, coloque o nome da universidade para qual o corpo pode ser destinado. Uma via do documento deve ficar com a própria pessoa e a outra fica com a instituição de ensino.

A importância dos corpos para a ciência

Material é usado para atividades de ensino, pesquisa e extensão — Foto: UFCSPA/Divulgação

A Sociedade Brasileira de Anatomia é categórica: os benefícios são exponenciais. Um corpo que seja usado para o ensino de 50 alunos pode beneficiar 500 pessoas. Como um corpo pode ser utilizado por anos, o número de alunos treinados e, consequentemente, de pessoas beneficiadas é maior.

O entendimento da categoria médica é que o uso de corpos é o que proporciona a experiência mais próxima da real, sendo uma tendência no mundo inteiro. Assim, os alunos podem treinar procedimentos cirúrgicos, por exemplo, e conduzir pesquisas.

"Além da questão técnica, tem um segundo aspecto que hoje a gente dá muito valor: é a questão humanística. Porque é o primeiro contato que o aluno vai ter, quando ele entra no curso, não só da medicina, mas de todos da área da saúde, com o corpo, muitas vezes com a morte. Isso serve para várias coisas para compreensão da finitude da vida, da vulnerabilidade, de entender que aquela pessoa, aquele corpo que tá ali, ele não pode se defender, então ele é tão vulnerável quanto uma pessoa em coma na UTI", diz Andrea.

Usar corpos é melhor do que usar bonecos ou simuladores justamente por colocar o aluno em uma situação próxima da real. O estudante será levado a ter um cuidado maior, por exemplo, afinal, é uma pessoa de fato que está sobre a maca.

Estudos na área apontam, inclusive, que a falta de treinamento com corpos de verdade traz prejuízos para a formação médica e está associada a menor aprendizado. Erros também já foram relacionados a isso.

Respeito com os corpos

Material exposto em museu da UFCSPA — Foto: UFCSPA/Divulgação

A UFCSPA faz, ao final de todos os anos, uma cerimônia em homenagem aos doadores. Os familiares são convidados e os alunos ficam responsáveis por explicar a importância da doação que foi feita e que uso o corpo está tendo.

"A pessoa escolheu estar ali deitada, dar aquele corpo para que ele fosse utilizado, acreditando que aquilo ia melhorar a formação profissional. Como é que tu não estás comprometido com isso? Quanto respeito tu tens que ter para utilizar esse corpo. Isso é uma coisa fantástica, porque a gente consegue trabalhar essa reflexão e essa empatia para se colocar no lugar da pessoa, que o médico e todos os que trabalham na área da saúde tem que ter", assevera Andrea.

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