A janta era servida, mesmo na cidade, pouco depois das seis. E, lá pela meia-noite, quando chegávamos das andanças por ruas desertas e conversas intermináveis a lustrar com nossos jeans surrados os bancos dos jardins da igreja – aos cochichos para não acordar gente implicante –, encontrávamos a mesa posta. Quitutes que iam de mingau de fubá e arroz-doce a biscoitos de muitos tipos. Os mais velhos haviam se servido lá pelas nove e meia, já de pijamas e camisolas, prontos para a escovação dos dentes e o caminho da cama.
Pé ante pé, beliscávamos alguma coisa para continuar, no quarto, a converseira que ia e vinha do nada. Travesseiro espremido na cara abafa nosso riso. Stella diz que a mãe acha os filhos baixinhos.
– Mas a tua mãe e teu pai são baixinhos – retruca Mariza.
Choramos de rir. Será que os pais de Stella esperavam que os patinhos saídos de seus ovos ganhassem, a partir da adolescência, pernas de garça e pescoço de cisne?
Das três, duas (eu e Stella) sem futuro à vista. Sem muita esperança e confiança na sorte de uma vida melhor para pais e irmãos que não dependesse de algum sacrifício pessoal imediato. Dramáticas, a gente se via subindo as escadarias de templos antigos perdidos nas selvas ou desertos, resignadas aos sacrifícios que garantiriam a sobrevivência dos nossos familiares.
Mariza sequer pensava em decifrar tais exageros. Depois de um namoro desfeito em lágrimas e promessas de que nunca, nunca mais amaria alguém, já engatara em outro bem depressa. Rapaz de boa família de uma cidade ali pertinho. Irmão do amigo de São Gotardo que conhecera na Universidade de Brasília. Em alguns anos, certamente estaria cheia de filhos. Seríamos, então, apenas as amigas que, coitadas, sonharam demais um dia.
Stella falava de ser atriz, cantora, compositora… de ser escritora. Ainda menina, já escrevia histórias compridas em cadernos escolares. A mãe achava tanta escrevinhação desperdício de tempo. Poderia estar bordando, cozinhando ou costurando que daria mais certo. E, quando já garota, que poderia estar de olhos compridos nos rapazinhos ali da rua mesmo. Como alguém de endereço em Taguatinga, coberta de pó na seca e de lama nas chuvas, no final dos anos 1960, poderia acalentar sonhos tão amalucados?
Stella – uma dos sete filhos de Mário, motorista, e Célia, dona de casa fazedora de quitutes – alimentava seus sonhos com delícias mineiras.
Todo dia era dia de pão e biscoitos de queijo naquele barraco de madeira e chão de cimento espelhado de tanta cera, vermelhão em pó e querosene. O brilho vinha depois de muito trabalho de braço, manejando-se, sempre na mesma direção (horizontal ou vertical, nunca em zigue-zague), o cabo de um escovão incrustado em uma base de ferro para dar peso suficiente à retirada do opaco que resultava da aplicação daquela mistura incendiária.
Aberto o brilho pela escovação pesada, vinha o polimento. Qualquer pano velho e macio faz o escovão deslizar que é uma beleza! Às vezes um dos irmãos, os ainda bebezões, faziam o escovão de cavalinho, entre gargalhadas e gritinhos, que só aumentavam ainda mais o nervosismo da mãe, sempre à flor da pele. E, logo, vinha lá da cozinha aquele grito esganiçado de “pare com essa algazarra toda!”:
– Olha que a minha chinela vai cantar direitinho!
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* Clara Favilla é jornalista e escreve uma vez por semana sobre viagens