Por Aline Midlej

Aline Midlej é apresentadora do Jornal das Dez, na GloboNews

Semana, vai-te!


Esse vírus já arrancou mais de 420 mil futuros e todo o controle que achávamos ter sobre a vida e as escolhas. O imprevisível virou rotina, a dor, cotidiano, o medo, uma companheira desonesta. Todos os dias têm sido duros, mas essa foi a semana mais improvável para a autora dessa coluna e também responsável por 4 horas de notícias exibidas na GloboNews diariamente. A incompreensão se instalou e a resiliência quase cedeu à anestesia involuntária.

Para prestar homenagens, família visita frente de creche em Saudades onde houve ataque — Foto: Sirli Freitas/Divulgação

A sala da CPI da Covid, onde começaram os depoimentos na última terça, tinha os ingressos mais disputados para as primeiras cenas. Mas antes mesmo do ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta entrar no Senado Federal, crianças e educadoras eram atacadas a golpes de faca numa creche de Santa Catarina. Saudades. O sentimento que mais nos define neste momento também dá nome à cidade que foi palco do espetáculo de horror que ninguém imaginaria ver. Não, agora.

“Ele entrou na creche com um facão. Ele machucou as 'profes'. As crianças estão todas feridas", disse a professora ao telefone, a primeira a conseguir pedir socorro enquanto um jovem de 18 anos desferia golpes em quem encontrava nas salas.

No outro lado da linha, o bombeiro Lázaro Muller, de 60 anos. "A gente como pai sente. Depois que vê o ocorrido, a gente fica mal. Mexeu com todos nós", disse ao G1. Sentimos todos, mas a tragédia acabou tendo sua dimensão ofuscada por outra, que tenta ser compreendida por alguns senadores e parte da sociedade, cansada e com medo de morrer.

Qual o impacto do bom exemplo de lideranças, de uma coordenação transparente e do comprometimento com o outro, na preservação de vidas, diante de uma doença que se vale da falta do que deveria ser básico?

Neste caso, o respeito à ciência? São algumas das perguntas que essa Comissão Parlamentar de Inquérito precisa responder. E logo. Já perdemos muitos. Todos igualmente preciosos. Mas, quando tudo isso passar, já não teremos a chance de sorrir com ele, o dono da atual coroa no reino do humor.

Paulo Gustavo e a mãe, Déa Lúcia. — Foto: Reprodução/Instagram

Paulo Gustavo poderia estar aqui, se houvesse mais planejamento, união, vacina? Talvez. Nunca saberemos.

Mas não restam dúvidas de que o negacionismo mata. A perda do ator, resistência em forma de alegria, foi a segunda surpresa nefasta do dia.

No mesmo 4 de maio, um ano antes, em 2020, perdíamos um dos primeiros artistas brasileiros pra Covid, o grande Aldir Blanc. Faltaram espaço e coração nas manchetes para honrar sua memória. Ouvir “O bêbado e a equilibrista” à noite foi meu trunfo contra a insônia rondando meu choro assustado. Só essa canção já teria valido sua existência - mas foram mais de 600 composições.

Na quarta-feira o corpo despertou antes da mente, que insistia em não acreditar. As homenagens ao humorista, que encheram as primeiras horas, criaram uma comoção nacional inédita no país desde o início dessa crise sanitária. Foi tão bonito e insólito. Até o presidente fez post.

A morte precoce de um talento excepcional, no auge, cheio de planos e vontade de criar uma família recém-formada, fez a gente refletir mais fundo sobre essa brevidade chamada vida. No avançar da manhã, os parlamentares da CPI da Covid fizeram um minuto de silêncio em homenagem ao Paulo Gustavo e a todas as outras vítimas antes de começar a ouvir o convocado daquele segunda dia de depoimentos.

A calmaria foi atropelada por gritos que surgiram na mesma sala, onde senadoras da bancada feminina – nenhuma é integrante da comissão, mas todas podem participar e fazer perguntas aos convidados - aumentavam a voz para se fazerem ouvir junto aos colegas homens.

Machismo, deselegância e total inabilidade para o debate causaram espanto geral. Mais perplexos do que nós – acompanhando tudo pela TV – talvez só o depoente naquela sessão, o ex-ministro Nelson Teich.

Até a sinistra manhã de quinta-feira chegar, um estudo sobre subnotificação da Universidade de Washington projetou em 600 mil os mortos pela Covid no país.

E ainda veio uma sensação de que nada mais, tão ruim, poderia acontecer até o fim de semana dar as caras. Enquanto essas linhas eram escritas, a polícia do Rio de Janeiro atualizava em 27 o número de pessoas assassinadas numa chacina. A brutalidade sucedeu uma ação policial na comunidade do Jacarezinho, na Zona Norte da cidade.

No lugar da música de Aldir Blanc em parceira com João Bosco, adormeci ao som dos tiros reproduzidos nas imagens inundadas de sangue que se espalharam pelos celulares, em redes sociais. Além dos mortos – um policial e 26 suspeitos, de acordo com os investigadores –, cidadãos foram atingidos por tiros quando estavam dentro do vagão do metrô.

Apenas três dos 21 mandados de prisão foram cumpridos. E o governador exaltou o resultado, oriundo de um trabalho longo de inteligência. Se for esse o trabalho de inteligência, desejo a burrice.

Ainda é sábado, mas devemos encerrar a semana com nossa barbárie diária travestida pela operação policial mais letal da história do RJ. Não cabe mais nada nesta semana.

Denúncias de invasão de casas e execuções estão sendo investigadas pelo Ministério Público do Estado do Rio neste episódio do Jacarezinho. O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, a ONU, a Anistia Internacional e outras organizações vieram a público para exigir uma investigação independente. Moradores da comunidade e familiares dos mortos (ainda não identificados) – os primeiros que devem ser ouvidos nesta apuração – gritam por justiça.

Eu engrosso o coro, enquanto me lembro da Dona Vera, de 64 anos. Vacinada contra a Covid em São Paulo, teve a alegria registrada por uma das equipes da TV que cobriam a imunização num posto drive-thru da capital paulista na sexta-feira. Fico com aquele sorriso, do tipo mais bonito nesta Pandemia: atravessa a máscara e chega pelo olhar de quem recebe uma dose de esperança e renascimento. A possibilidade de voltar a viver um pouco, apesar do horror que nos ronda e atravessa.