Monica Valencia, boliviana, tinha 15 anos quando ouviu o canto da sereia. Colaram cartazes, perto de onde ela morava, oferecendo emprego, bom salário, boas acomodações e direitos garantidos em São Paulo. A passagem (só de ida) para o Brasil, estava incluída no pacote da esperança. Monica não pensou duas vezes. Largou seu país, seus familiares, e lançou-se num mundo desconhecido. Não desconfiou, nem mesmo quando os contratantes decidiram que iriam fraudar os documentos para aumentar sua idade. E assim começou sua caminhada para os piores momentos de sua vida.
Tempos depois, Monica foi resgatada pela Polícia Federal de São Paulo vivendo, junto a vários compatriotas, em condições sub-humanas, num prédio qualquer do Centro da cidade mais populosa do país, sede de 63% das multinacionais estabelecidas aqui. Monica fez parte de uma triste estatística, hoje está salva. No Brasil existem ainda 370 mil pessoas trabalhando em situação análoga à escravidão. É a denúncia do documentário “Vidas Descartáveis”, uma produção da MPC Filmes.
Com depoimentos emocionantes e dados de pesquisa, o filme resgata histórias de pessoas que viveram a experiência de seguirem um sonho e despertarem, tempos depois, num enorme pesadelo. A ideia original é de Daniel de Souza (filho do Betinho e atual diretor da Ação da Cidadania), foi dirigido por Alexandre Valenti e Alberto Graça, e já recebeu o Prêmio Especial do Júri no 23º Cine PE – Festival do Audiovisual, em 2019. Vai entrar em circuito nacional no segundo semestre do ano que vem. Assisti no sábado (23), quando foi apresentado previamente para uma plateia formada, sobretudo, por pessoas dos comitês que angariam e distribuem alimentos para necessitados, base da ONG Ação e Cidadania, criada por Betinho em 1997.
O filme foca, sobretudo, no caso da Fazenda Brasil Verde, no Pará, que desde 1997 é alvo de denúncias de trabalho análogo à escravidão. Para lá foram atraídos outros tantos brasileiros que estão em busca de um sonho, o de ganharem um salário digno que possa ajudá-los a terem uma vida sem privações. Marcos Lima, um dos resgatados da fazenda durante operação do Ministério do Trabalho e Emprego - que reúne representantes de vários órgãos governamentais - fala para as câmeras como chegou à situação em que estava quando trabalhou na Fazenda:
“O aliciador fica uns trinta dias na cidade da gente e convida para o trabalho. Quem está necessitado, aceita”, disse ele.
Durante o tempo que passa na cidade, a pessoa contratada pelos fazendeiros para arregimentar os trabalhadores convive com eles no bar da esquina, no jogo de futebol, torna-se quase amigo. Identifica os mais vulneráveis, aqueles que estão completamente sem trabalho, e vai montando um castelo de cartas, alimentando seus sonhos de ganhar dinheiro num trabalho “seguro e rentável”. O caminhão que os leva à fazenda – chamado de Pau de Arara - é o primeiro contato com uma realidade que não correspondia ao sonho. Assim mesmo vão, pois lhes faltam outras opções. Na fazenda Brasil Verde, caíram no inferno de vida que levariam ainda alguns meses antes de serem resgatados.
As cenas mostradas no documentário não são novidade. Várias reportagens vêm sendo feitas sobre o assunto, sobretudo quando chega à esfera da Justiça, o que aconteceu tanto no caso da Zara, empresa que contratou Monica (através de uma terceirizada), quanto no caso da Fazenda Brasil Verde e Fazenda Santa Laura de Vicuña. As três foram condenadas a pagar multas. Recorreram. E seguem os processos.
No caso específico da Zara, lembro-me bem que eu editava o caderno “Razão Social” à época, em 2011, e que fizemos reportagem ouvindo a empresa. Promessas foram feitas, responsabilidades foram repassadas para outros, até um telefone foi criado para ouvir denúncias já que a empresa se sentia incapaz de auditar seus fornecedores terceirizados. Seis anos depois, no entanto, por determinação da 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo, a Zara foi condenada como responsável pela situação. Afirmou que ia recorrer.
Na época em que a Zara foi condenada, a lista suja do trabalho escravo era liberada para que todos a pudessem acessar. Tratava-se de uma ferramenta, criada em 2003, para uso de investidores e consumidores. As empresas que tivessem seus nomes expostos ali tinham que buscar soluções para o problema. Em outubro de 2017, no entanto, uma portaria assinada pelo então presidente Michel Temer mudou isto, e relativizou o conceito de trabalho escravo contemporâneo. Muito criticado, Temer voltou atrás e endureceu um pouco mais o texto.
“Vidas descartáveis” é uma crônica de uma luta por dignidade humana. E, como se vê, está longe de ter um final feliz. Haverá, entre as próprias vítimas de feitores que as tratem de maneira indigna, pessoas que vão se molestar contra tantas críticas que tiram delas o ganha-pão. Mesmo que seja um pão duro, sem recheio, duro de engolir. Por isso trago neste texto uma reflexão sobre falsas promessas de um sistema que só entende como incluídos aqueles que estão no - hoje cada vez mais disputado - mercado de trabalho.
Estamos no século XXI e há ainda quem trabalhe sem direito de dizer não, sem folga, sem uma remuneração justa. Estamos no século XXI e há ainda quem, como a jovem Mônica Valencia e tantos outros entrevistados para dar vida ao documentário, acreditam em pessoas que prometem.
“Só tínhamos direito de respirar”, disse um dos personagens do “Vidas descartáveis”.
Neste ponto das minhas reflexões busco a ajuda do filósofo francês Gilles Deleuze, que provoca as pessoas a pensarem sobre a diferença entre poder e potência.
“Estamos tão impotentes que achamos que não há nada fora das relações de poder”, dizia Deleuze. O poder quer dominar, quer se perpetuar, quer se apropriar da potência do outro que, por sua vez, acaba se conformando com sua impotência e se conforta com o poder do outro, acredita o filósofo.
Na dura realidade em que transitam pessoas como Mônica, Francisco Valer, Marcos Lima, José Francisco, Terezino Cortes, personagens do “Vidas descartáveis”, há que se considerar tal conforto, mais parecido com uma prostração, uma letargia. Aos donos do poder, tal situação remete ao que eles chamam de “cultura”, o que causa indignação à procuradora do trabalho Catarina Von Zuben, titular da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), também entrevistada no documentário.
Zuben denuncia o que ela chama de “quase uma letargia”, que diagnostica nas frases que sempre ouve e terminam com a expressão: “Mas sempre foi assim! O que este caso tem de diferente?”
As denúncias feitas pelo documentário são um convite à reflexão. É preciso, sim, é urgente, começar a fazer diferente a cada vez.