Na semana em que vários países do mundo celebram o Dia Internacional da Mulher, data histórica de luta pela igualdade, os dados publicados pelo Monitor da Violência, parceria entre o G1, o NEV-USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelam que a violência permanece como um dos principais obstáculos ao empoderamento feminino e a efetiva igualdade entre homens e mulheres.
Em 2019, os homicídios femininos apresentaram redução de 14%, algo previsível diante da queda de 19% nos assassinatos no ano passado. Foram 614 vidas poupadas, sendo que 56% de toda a redução ocorreu em apenas duas unidades da federação: Ceará e Pará. Apesar dos números positivos, uma análise mais contextual sobre os indicadores de violência baseada em gênero indica que a violência doméstica pode estar em crescimento.
Isto porque, se considerarmos os dados divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicação do FBSP que compila diferentes indicadores de criminalidade, em 2018 o Brasil atingiu o recorde de registros de lesões corporais dolosas em decorrência de violência doméstica, com 263 mil casos. Isso significa que, a cada 2 minutos, uma mulher se deslocou até uma delegacia de polícia para denunciar que tinha sido agredida pelo companheiro.
Também em 2018, o país registrou seu recorde de registros de estupros, com 66 mil vítimas no ano. A maioria das vítimas era do sexo feminino (81,8%), tinha no máximo 13 anos (53,8%) e foi estuprada por um conhecido (75,9%). O aumento nesses números observado em 2018 parece se confirmar em 2019: dados já disponíveis dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro indicam que registros de violência doméstica e sexual apresentaram crescimento.
Se os números não fossem suficientemente graves, está bem documentado na literatura a subnotificação que ronda os casos relativos à violência de gênero, o que indica que os dados devem ser bem maiores do que o registrado. Via de regra, as vítimas não denunciam a agressão sofrida porque conhecem o autor da violência e tem medo de retaliação porque se sentem envergonhadas, achando que são culpadas pela violência sofrida, e até mesmo para proteger o agressor, que é alguém do seu convívio.
Pesquisas produzidas nos EUA, por exemplo, indicam que entre 16% e 32% das vítimas tendem a notificar a polícia após sofrerem violência sexual. Estudo recente do Departamento de Justiça Americano mostra que apenas 24,9% das vítimas de estupro reportam o crime à polícia. O mesmo estudo indica que 47% das vítimas de violência doméstica denunciaram o crime às autoridades em 2018.
Diante de tamanha subnotificação, o único mecanismo para estimar o tamanho real do problema é através de pesquisas de vitimização, capazes de fornecer um retrato mais fiel de episódios de violência vivenciados pela sociedade. Infelizmente, a última pesquisa nacional de vitimização produzida pelo Ministério da Justiça data de 2012, já considerada velha para estimativas mais fiéis.
A pesquisa mais recente sobre o tema foi produzida pelo FBSP no ano passado e indica que 9% das mulheres de 16 anos ou mais sofreram violência física no último ano. Traduzindo em miúdos, ao menos 4,7 milhões de mulheres sofreram com tapas, chutes, batidas e socos, algo como 536 a cada hora. Destas, 76,4% foram agredidas por conhecidos, e 42% sofreram a agressão dentro de sua própria residência. Estes números representam um aumento de 1,1% no número de vítimas em relação a 2017, com o incremento de 25% entre autores conhecidos, evidência de que a violência está cada vez mais perto das mulheres.
O que dizem os números recentes
Os dados divulgados pelo Monitor da Violência apontam para a redução de 14% nos homicídios de mulheres e incremento de 7% nos registros de feminicídio. O argumento mais utilizado nas análises tem sido o de que estamos diante de uma melhoria dos registros deste crime, dado que a legislação que o tipifica é de 2015 e, portanto, muito recente. De fato, esse argumento é válido, mas é necessário também pontuar a diferença entre o homicídio comum e o feminicídio para melhor compreensão do fenômeno.
Uma mulher, assim como qualquer outro cidadão, pode ser assassinada em decorrência de um roubo, pelo envolvimento em alguma atividade ilícita ou qualquer outro evento que resulte em violência. Estes casos não são classificados como feminicídios, dado que a legislação prevê esta tipificação apenas nos casos em que seja provado que: 1) a mulher morreu em razão da condição de sexo feminino; e 2) em decorrência de violência doméstica ou familiar.
No Brasil, a maioria dos casos classificados como feminicídios pelas autoridades públicas decorrem de violência doméstica, sendo o autor o companheiro ou ex-companheiro da vítima. Mas também é possível que muitos outros casos de feminicídios ocorram sem que as polícias tenham identificado os elementos de violência de gênero e/ou autoria no momento do registro do boletim de ocorrência, seja por não estarem capacitadas para uma investigação com olhar para a violência baseada em gênero, ou porque os elementos que confirmam o feminicídio aparecem no decorrer da investigação e o registro inicial não é retificado.
Essa hipótese ganha força quando verificamos que, nos estados que mais investiram na formação de agentes nas diretrizes promulgadas pela ONU Mulheres para investigação de feminicídios, o percentual deste crime tem sido bastante superior à média nacional. No ano passado, cerca de 35% dos assassinatos femininos foram tipificados como feminicídios no Brasil, ao passo que, no Piauí, pioneiro na implementação das diretrizes, 62,2% de todos os homicídios de mulheres foram classificados como feminicídios. Outros exemplos são Distrito Federal, Maranhão e Paraíba, que tipificaram respectivamente 55%, 54,3% e 51% de todos os assassinatos de mulheres como feminicídios.
No outro extremo, temos estados como Amazonas, Ceará e Rio Grande do Norte, que consideram apenas uma pequena parcela dos assassinatos de mulheres, entre 15% e 20%, como feminicídios. Análises de tendências criminais mostram que estas proporções não tendem a variar significativamente de um local para outro, indicando que é muito provável que ainda haja subnotificação expressiva dos feminicídios em várias UFs e que o número deve ser ainda maior que o estimado.
Este quadro, somado ao fato de que as agressões e violência sexual seguem em ritmo de crescimento, sugere que podemos até estar diante de uma redução dos homicídios femininos quando falamos de dinâmicas relativas a criminalidade urbana, mas aponta para um incremento no que diz respeito à violência baseada em gênero, do qual o feminicídio é o desfecho em sua face mais cruel.
A queda no número de homicídios femininos não significa, necessariamente, a diminuição da violência doméstica e intrafamiliar. Meninas e mulheres são diariamente vítimas de violência baseada em gênero, dentro de casa, por pessoas conhecidas e em circunstâncias ainda muito toleradas socialmente na cultura brasileira. A naturalização de comportamentos violentos e a precariedade dos dados disponíveis contribuem ainda mais para a invisibilização das vítimas que sofrem em silêncio.
Samira Bueno é diretora-executiva e Juliana Martins é coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública