Mortes por policiais no Brasil sobem 4% no 1º semestre; RJ e PA têm alta, mas 15 estados registram queda

País teve 2.886 mortes cometidas por policiais na ativa nos primeiros seis meses deste ano, contra 2.766 em 2018. Dado é puxado por estados como Rio de Janeiro e Pará. Crescimento vai na contramão da queda de mortes violentas no mesmo período no Brasil (22%). Goiás é o único estado que se recusa a passar os dados.

Por Clara Velasco, Felipe Grandin e Thiago Reis, G1


Maioria dos estados registra queda no nº de mortes por policiais no 1º semestre

O Brasil teve no 1º semestre deste ano 2.886 pessoas mortas por policiais – 120 a mais que no mesmo período de 2018. A alta no dado, no entanto, não é uma tendência nacional: a maioria dos estados teve queda nos registros nos primeiros seis meses de 2019. É o que mostra um levantamento exclusivo feito pelo G1 com base nos dados oficiais de 25 estados e do Distrito Federal.

Das 27 unidades da federação, 15 tiveram uma queda nas mortes cometidas pela polícia, 10 registraram uma alta e um se manteve no mesmo patamar. Goiás foi o único estado do Brasil que se recusou a passar os dados.

O número de vítimas em confronto com a polícia cresceu 4,3% nos seis primeiros meses do ano. A alta vai na contramão da queda de mortes violentas no país, de 22% no 1º semestre.

Já o número de policiais mortos caiu 55% – foram 85 oficiais assassinados de janeiro a junho de 2019 (contra 187 no mesmo período do ano passado).

Os dados, inéditos, compreendem todos os casos de “confrontos com civis ou lesões não naturais com intencionalidade” envolvendo policiais na ativa (em serviço e fora de serviço).

O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

METODOLOGIA: Monitor da Violência

O levantamento revela que:

  • 2.886 pessoas foram mortas por policiais no 1º semestre no Brasil – um aumento de 4,3% em relação ao mesmo período de 2018
  • a maioria dos estados (15), porém, teve uma queda nos registros
  • o Amapá é hoje o estado com a maior taxa de mortes por policiais
  • o país teve 85 policiais assassinados nos primeiros seis meses deste ano (menos que em 2018, quando 187 oficiais foram mortos no mesmo período)
  • o Pará tem, em 2019, a maior taxa de policiais mortos do país

Número de pessoas mortas pela polícia em 2019 no Brasil é maior — Foto: Wagner Magalhães/G1

Os 15 estados com queda são: Acre, Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins.

A maioria das mortes em decorrência de intervenção policial (mais de 90%) aconteceu com oficiais em serviço.

O pacote anticrime apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, propõe mudanças no trecho do Código Penal que trata do excludente de ilicitude.

Hoje, o Código Penal elimina a punição em mortes cometidas por agentes de segurança (ou qualquer outro cidadão) em casos de estrito cumprimento do dever legal, legítima defesa ou estado de necessidade.

Na proposta do ministro, agentes de segurança que cometam excesso por “medo, surpresa ou violenta emoção” poderão ser isentados de punição, por exemplo, quando matarem alguém em serviço.

No final de setembro, porém, o grupo de trabalho da Câmara que analisa o pacote anticrime rejeitou a mudança no excludente de ilicitude. O trecho ainda pode ser reincluído na análise em plenário.

No início deste mês, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que é um “absurdo” a condenação de policiais por “excesso”. Segundo ele, autos de resistência são um "sinal" de que o policial trabalha e "faz sua parte".

Número de policiais mortos tem caído ano a ano — Foto: Wagner Magalhães/G1

Pará: letalidade e vitimização policial em alta

O Pará está no topo dos dois rankings (de letalidade e de vitimização policial): é o 3º estado com a maior taxa de pessoas mortas pela polícia e o 1º em policiais assassinados.

Cristiano Prado é uma das 322 vítimas de mortes cometidas por policiais no 1º semestre deste ano no estado – que teve um aumento de 56% em relação ao mesmo período de 2018, quando foram registrados 206 casos.

Cristiano foi preso junto com Lucas Souza em uma ação da Rondas Táticas Ostensivas Metropolitanas (Rotam) em abril. Segundo testemunhas, os dois, já algemados, foram executados pelos policiais no bairro da Pedreira, em Belém. Moradores fizeram um protesto após a morte dos jovens por considerar a operação truculenta. A polícia, por sua vez, diz que ambos foram mortos numa troca de tiros. A Corregedoria da PM investiga o caso.

Testemunhas dizem que policiais executaram jovens algemados em Belém

O secretário da Segurança do Pará, Ualame Machado, diz que o estado tem trabalhado para reduzir a letalidade policial. “Em razão do choque operacional no início da gestão, tivemos um pequeno aumento em relação ao ano anterior. Mas os policiais entenderam a nossa forma de trabalhar, de atuar, que é com policiamento ostensivo, protegendo a sociedade e de outro lado também investigando quem quer que seja para que seja responsabilizado qualquer um que pratique ato em desacordo com a lei”, diz.

Mas os policiais que matam também morrem. Houve 12 policiais mortos no estado do Norte do país de janeiro a junho, quase todos fora de serviço. É a maior taxa do país se for considerado o efetivo no estado, de 19 mil policiais.

Machado afirma que houve uma queda em relação ao ano passado e reforça que o estado tem trabalhado para reduzir ainda mais esses indicadores. “Várias medidas estão sendo tomadas pelo governo. Cito a jornada extraordinária, aquela em que você compra parte da folga do policial para que ele possa trabalhar em prol da sociedade, evitando que faça atividade paralela e corra riscos. Também foram implementados programa habitacionais, para que os policiais saiam de algumas áreas de risco e possam levar sua família e morar perto de outros colegas. Foi autorizada ainda a utilização de coletes até mesmo na folga para que eles fiquem mais protegidos, além de outras medidas, como capacitações e treinamentos.”

Variação do número de pessoas mortas por policiais, por estado — Foto: Guilherme Pinheiro/G1

Rio de Janeiro: recorde de mortes em confronto

O Rio de Janeiro é outro estado que figura nas primeiras posições dos rankings: tem a 2ª maior taxa de pessoas mortas pela polícia e aparece no 5º lugar entre os estados com mais policiais mortos considerando o efetivo das corporações.

O estado teve, no 1º semestre, 885 vítimas de confrontos com a polícia. É o maior número desde o início da série histórica do ISP (Instituto de Segurança Pública), em 1998.

Para Andréa Amin, coordenadora do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública do Ministério Público do Rio de Janeiro, a política de enfrentamento é decorrente de uma cultura da polícia do Rio. “Ela tem protocolos, mas esses protocolos em uma parte da cidade são seguidos e, em outras, não são seguidos.”

"Reduzir a letalidade policial é também reduzir a vitimização porque, se eu reduzir o número de operações, eu reduzo o risco que cerca o policial nessas operações. Então uma coisa está diretamente atrelada a outra”, afirma.

Policial militar Miqueias Ribeiro foi morto ao chegar em casa em Japeri (RJ) — Foto: Reprodução/Redes sociais

A família do policial militar Miqueias Ribeiro ainda vive o luto da morte do jovem, assassinado a tiros quando chegava em casa em janeiro deste ano em Japeri (RJ). “A gente nunca acha que vai acontecer com a gente. Mas acontece. E a gente sente a dor da perda das outras famílias”, afirma o tio, Israel Ribeiro da Silva.

"Existe uma forma diferente de trabalhar segurança pública que não seja através de políticas de enfrentamento, não seja através de estatísticas numéricas de cadáveres que vão se acumulando", diz a promotora Andréa Amin. "Será que não é hora de parar e mudar a forma de trabalhar para ver se o resultado também se altera?"

Mauro Fliess, porta-voz da PM do Rio de Janeiro, afirma que o número elevado da letalidade "representa uma média de 5 marginais mortos em confronto por dia". "Eu coloco também que, no Rio de Janeiro, prendemos cinco pessoas por hora. (...) E qual a diferença entre o preso e o marginal neutralizado, o marginal que vem a óbito? A diferença é uma escolha individual desse marginal. Ele pode simplesmente abaixar suas armas e se render e ser preso. Ou ele pode fazer uma opção insana que é arriscar a própria vida, arriscar a vida de pessoas inocentes e buscar o confronto", afirma. "Então temos um estado freando essa guerra insana de marginais em comunidades que estão inseridas no nosso meio social."

"No caso aqui os marginais utilizam fuzil. É uma arma de emprego coletivo, porque ela visa defender ou proteger a integridade de quem usa e a de um grupo que está no seu entorno. A arma de emprego individual, uma pistola, um revólver, ela em tese é para defender apenas aquela pessoa. Os marginais aqui no Rio eles utilizam largamente fuzis. Tanto é que até hoje, só Polícia Militar retirou da mão de marginais 413 fuzis.", afirma Fliess.  

"Um fuzil custa cerca de R$ 50 mil. O marginal que recebe a responsabilidade de estar com aquele fuzil ele em hipótese alguma pode largar aquele fuzil e correr frente a chegada de uma tropa policial. Ou ele corre com aquele fuzil ou ele busca o enfrentamento."

Mais mortos pela polícia, menos violência?

O levantamento aponta que não há uma relação direta entre letalidade policial e diminuição da violência nos estados. Dados do Monitor da Violência mostram que todos os estados do país tiveram queda no número de mortes violentas no 1º semestre. E os que mais reduziram os assassinatos não necessariamente tiveram um aumento de mortes pela polícia.

Amazonas, por exemplo, teve o maior crescimento de mortes pela polícia entre 2018 e 2019: 325%. Ele não foi, porém, o estado que teve a maior redução no número de mortes violentas. Na verdade, foi o 18º, com queda de 16,3%.

Já Pernambuco teve a maior queda no número de pessoas mortas por policiais (44,8%) e sua redução nas mortes violentas foi até maior que a do Amazonas no período (23,1%).

A Secretaria da Segurança do Amazonas diz que "os óbitos por autos de resistência decorrem de situações em que a vida do policial é posta em risco durante o combate direto com suspeitos de crimes, em situações de flagrante do ato criminoso nas quais os infratores resistem à ordem de prisão e tentam ceifar a vida dos policiais". "É um ato de legítima defesa própria ou dos colegas de farda, previsto no Código Penal. Todo caso é apurado através de sindicância investigativa."

A jovem Thalia Oliveira tinha 18 anos quando foi atingida por um disparo de um policial militar durante uma blitz em Rio Preto da Eva (AM) — Foto: Arquivo pessoal

Os casos no estado continuam a ocorrer. Em agosto, Thalia Oliveira, uma universitária de 18 anos, morreu após ser baleada por um policial militar durante uma blitz em Rio Preto da Eva, a 83 km de Manaus. Segundo familiares, a jovem retornava para casa com um amigo em uma motocicleta quando foi abordada por dois policiais militares. O tiro foi disparado por um sargento.

"O PM diz que atirou para cima, para que o motociclista parasse, mas quem é que atira para cima e acerta na cabeça da pessoa? Isso para mim é considerado como execução. Não tem nada de erro”, conta Thalisson Gabriel, irmão da vítima.

Segundo a Polícia Militar, o sargento foi afastado das atividades para que a conduta seja investigada.

Outros dois estados também registraram uma alta no número de mortes pela polícia bastante expressiva. Amapá teve um aumento de 242% e Piauí, de 263%.

O secretário da Segurança do Amapá, o coronel José Carlos Correa de Souza, diz que a alta letalidade no estado se dá por conta do aumento dos confrontos das forças policiais com organizações criminosas, que migraram para estados do Norte e do Nordeste do país nos últimos anos em busca de novas rotas para o tráfico de armas e de drogas.

“Com uma série de operações policiais que começou a acontecer nas fronteiras do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, as organizações começaram a procurar rotas alternativas pro tráfico. Eles se instalaram em outros lugares e se fortaleceram, mas tem uma organização rival aqui no Amapá que compete com eles. No meio disso, infelizmente a polícia precisa garantir a segurança. Os trabalhos de inteligência hoje são muito focados em desarticulá-los, mas acabamos entrando em embate e a letalidade aumenta”, afirma o secretário.

Segundo o coronel, o estado está investindo principalmente em inteligência para diminuir os índices. “Nós temos uma coordenadoria integrada de inteligência onde todas as forças de segurança estaduais e federais estão. É essa a tentativa para a redução. Se eu não conseguir desarticulá-los, infelizmente esse embate vai continuar na rua.”

Já a Secretaria de Segurança do Piauí diz que não comenta sobre ações em uma amostra de dados específicos de um curto espaço de tempo. "Os dados precisam de tempo pra serem analisados dentro de uma linha histórica para construir um planejamento amplo", afirma.

Falta de padronização e transparência

O levantamento do G1 durou mais de um mês para ser realizado. Os dados foram solicitados via Lei de Acesso à Informação (sob a mesma metodologia utilizada nos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e também foram pedidos às assessorias de imprensa das secretarias da Segurança.

Houve demora na entrega dos dados na maioria das unidades da federação. Parte dos estados solicitou a prorrogação do período para resposta pela Lei de Acesso à Informação e, mesmo assim, não cumpriu o prazo estabelecido.

Em alguns casos, o mesmo pedido, feito da mesma forma, foi respondido, sem explicação, de forma diferente pela assessoria e pelo setor responsável pelo Serviço de Informações ao Cidadão. Para chegar aos dados finais, foi preciso recorrer e sanar as disparidades, dando uma confiabilidade maior à estatística.

Além disso, os pedidos não foram respondidos na íntegra. Rio de Janeiro e Sergipe, por exemplo, não possuem os dados de morte separados por policiais em serviço e fora de serviço. Já Pernambuco e Rio Grande do Norte dizem não ter o número de pessoas mortas por policiais em folga.

Apenas um estado não enviou nenhum dado: Goiás. A Secretaria de Segurança Pública diz que os dados são sigilosos, respaldados pela portaria nº 750/2016.

Veja os dados de pessoas mortas pela polícia por estado (a ordem está da maior taxa para a menor):

Pessoas mortas pela polícia no 1º semestre de 2019

estado nº de pessoas assassinadas taxa por 100 mil hab variação em relação a 2018 (em %)
Amapá 65 7.7 242,1
Rio de Janeiro 885 5.1 15,1
Pará 322 3.7 56,3
Sergipe 59 2.6 -1,7
Bahia 350 2.4 -15
Rio Grande do Norte 60 1.7 -17,8
Alagoas 51 1.5 -23,9
Acre 12 1.4 -33,3
Paraná 155 1.4 -10,4
Mato Grosso do Sul 32 1.2 0
Roraima 6 1.0 50
Ceará 84 0.9 -29,4
Piauí 29 0.9 262,5
São Paulo 426 0.9 2,7
Amazonas 34 0.8 325
Mato Grosso 25 0.7 -19,4
Rondônia 12 0.7 -7,7
Maranhão 44 0.6 33,3
Santa Catarina 43 0.6 -6,5
Espírito Santo 21 0.5 -30
Rio Grande do Sul 55 0.5 -22,5
Paraíba 17 0.4 54,5
Tocantins 7 0.4 -12,5
Minas Gerais 55 0.3 -29,5
Pernambuco 32 0.3 -44,8
Distrito Federal 5 0.2 25
BRASIL 2.886 1.4 4,3

A taxa semestral serve apenas como base de comparação entre os estados; o padrão internacional é utilizar a taxa a cada 100 mil habitantes para dados anuais.

Veja os dados de policiais mortos por estado (a ordem está da maior taxa para a menor):

Policiais mortos no 1º semestre de 2019

estado nº de policiais assassinados taxa por 1 mil policiais variação em relação a 2018 (em %)
Pará 12 0,6 -52
Amazonas 4 0.4 33,3
Rio de Janeiro 19 0.4 -68,3
Rondônia 3 0.4 50
Tocantins 2 0.4 -33,3
Mato Grosso do Sul 2 0.3 -33,3
Alagoas 2 0.2 100
Amapá 1 0.2 -50
Bahia 6 0.2 -40
Distrito Federal 3 0.2 50
Mato Grosso 2 0.2 100
Pernambuco 5 0.2 -37,5
Rio Grande do Norte 2 0.2 -83,3
Rio Grande do Sul 4 0.2 100
São Paulo 16 0.2 -42,9
Paraíba 1 0.1 -75
Piauí 1 0.1 -
Acre 0 0.0 -100
Ceará 0 0.0 -100
Espírito Santo 0 0.0 -100
Maranhão 0 0.0 -100
Minas Gerais 0 0.0 -
Paraná 0 0.0 -100
Roraima 0 0.0 -100
Santa Catarina 0 0.0 -
Sergipe 0 0.0 -100
BRASIL 85 0.2 -54,5

Participaram desta etapa do projeto:

Coordenação: Thiago Reis

Dados e edição: Clara Velasco, Felipe Grandin e Thiago Reis

Produção (vídeo): Felipe Grandin (G1 Rio) e Jorge Sauma (G1 PA)

Roteiro (vídeo): Thiago Reis

Edição (vídeo): Henrique Pinheiro

Edição (infografia): Rodrigo Cunha

Design: Amanda Georgia Paes e Wagner Magalhães