‘Brasil em Constituição’: bases do federalismo estão garantidas na Carta de 88

A Constituição não só reafirmou como tornou ainda mais forte a divisão de responsabilidades e competências entre prefeitos, governadores e presidente.


‘Brasil em Constituição’: bases do federalismo estão garantidas na Carta de 88

A cooperação entre estados, municípios e o governo federal é uma das bases do federalismo. Esse é o tema desta sexta-feira (23) da série "Brasil em Constituição".

“As necessidades básicas do homem estão nos estados e nos municípios. Neles deve estar o dinheiro para atendê-las. A federação é a governabilidade. A governabilidade da nação passa pela governabilidade dos estados e dos municípios”, disse o deputado Ulysses Guimarães.

Desenhado pela geografia e pela história, o Brasil se tornou um gigante de 8,5 milhões quilômetros quadrados, o quinto maior país do mundo em extensão territorial.

E o primeiro artigo da Constituição já diz: "A República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos estados, municípios e do Distrito Federal."

Mas ser uma federação é mais do que repartir o território, é também dividir o poder. Está no artigo 23: "É competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas."

Nem sempre foi assim. Governos autoritários como o de Getúlio Vargas usaram mãos de ferro para, com a centralização, mandarem sozinhos.

"Abolimos as bandeiras e escudos estaduais e municipais, os hinos regionais e os partidos políticos", decretou Getúlio Vargas.

A Constituição de 88 não só reafirmou, como tornou ainda mais forte a divisão de responsabilidades e competências entre prefeitos, governadores e presidente. Todos têm que cuidar da nossa terra, da nossa gente e, mais do que isso, todos têm o dever de cooperar.

“É a irmandade entre as regiões. Para que não se rompa o elo, as mais prósperas devem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, não haverá na União estado forte, pois fraco é o Brasil”, afirmou Ulysses Guimarães durante a promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.

As largas avenidas de Palmas são símbolo da última grande cidade planejada do país, criada para ser a capital do mais jovem estado brasileiro.

“Nasci no dia 5 de outubro de 1988, junto com a Constituição de 88 e juntamente com ela a criação do estado do Tocantins”, conta o bancário Portinari Rodrigues.

Portinari é pai de um pequeno tocantinense e filho de Dona Neusir, que nasceu no antigo norte goiano. Ela conhece bem as delícias e dificuldades de alimentar a terra e a vida que começa.

“Quando nasce um filho, um filho precisa muito de amor. Tem que cuidar bem. Filho dá preocupação, dá despesa, dá isso tudo. Um estado quando nasce também dá esse mesmo problema”, afirma a dona de casa Neusir Rodrigues.

Cada cidadã e cidadão tem o direito de ver o chão onde pisa, a terra que cultiva e preserva, o lugar onde vive na imensidão desse Brasil representados na política, na administração pública, no mapa do país. Esse foi o desejo do povo do Tocantins, estado que nasceu com a Constituição de 1988.

Mas essa divisão é muito mais do que um desenho no mapa ou uma peça que compõe a união. Criar um novo estado ou município é uma possibilidade prevista na Constituição, mas com custos e responsabilidades. Cada unidade da federação tem na lei maior autonomia para fazer muita coisa, mas também obrigações a cumprir.

“Existia uma diferença nítida culturalmente, econômica e social entre o norte e o sul. Era uma região isolada, abandonada, que era chamado pelo Goiás de 'corredor da miséria'. As pessoas não tinham acesso aos programas sociais, à saúde, à educação”, explica o professor e historiador Júnior Batista.

“O estado federal é um instrumento não apenas para facilitar administração de países ou estados que apresentem estas condições peculiares, grandes dimensões geográficas ou demográficas, ou uma heterogeneidade cultural, mas também, com o passar do tempo, se percebeu que o federalismo é um instrumento para valorizar a própria democracia. Por quê? Primeiro, impede a concentração do poder político em torno do governo central. Em segundo lugar, aproxima mais o povo de seus governantes”, explica o ministro do STF Ricardo Lewandowski.

“A partir do momento que se transformou no estado do Tocantins, a gente percebeu essa evolução. Eu vi a minha rua ser asfaltada, eu vi a água chegar, encanamento, saneamento. Ainda tem muita coisa para ser feita. A questão de escola a gente ainda vê algumas situações que que você enxerga a falta de creche, falta de vagas. Então, assim, existe muita coisa a ser melhorada na questão da segurança pública e principalmente as políticas sociais”, conta Portinari.

Cada uma dessas reivindicações e necessidades pode ter atribuição principal do município, do estado ou do governo federal, mas muitas delas precisam ser compartilhadas. A Constituição determina que tem que haver cooperação.

“Nós dizemos que o federalismo no Brasil é cooperativo. União, estados, Distrito Federal e municípios têm que cooperar para que o cidadão tenha aquilo que é seu direito”, aponta a ministra do STF Cármen Lúcia.

“Por volta das nove horas da noite de ontem começou a chover forte em Petrópolis. Houve vários desabamentos e queda de barreiras", diz trecho de reportagem de 1981.

"Operários e trabalhadores trabalharam em mutirão”, mostra outra reportagem, em 1988.

O direito aos bens conquistados, serviços públicos, segurança, o direito à vida. Os moradores de Petrópolis, na Região Serrana do Rio, já perderam tudo em tragédias que se repetem.

“Aqui, onde agora só tem terra e escombros, estavam 10 casas”, matéria de 1988.

“Que os esforços da prefeitura, os esforços dos estados se somem também os esforços do governo federal”, disse Ulysses Guimarães, durante uma visita em Petrópolis em 1988.

A maior de todas foi em fevereiro de 2022. Causou destruição e deixou 238 mortos.

"O caso das enchentes de Petrópolis é realmente um caso muito emblemático, porque aí exige-se, sem dúvida nenhuma, cooperação das três esferas político-administrativas da federação. A União tem responsabilidade, o estado tem responsabilidade e o município também tem a sua responsabilidade, cada qual em seu nível”, afirma Lewandowski.

Responsabilidades que podem e devem ser cobradas pelo cidadão.

“Cooperação que significa dizer às vezes os três níveis atuando na mesma direção, mas também impedindo o jogo de empurra. 'Não é comigo, é com a União'. E a União dizer 'é com os municípios e com os estados'", aponta o ministro do STJ Herman Benjamin.

Dar e compartilhar o peixe enquanto se ensina a pescar. Um dos mais jovens municípios brasileiros, Pescaria Brava, em Santa Catarina, nasceu do desejo de melhorar e caminhar com as próprias pernas.

“A maioria dos moradores decidiu pela mudança de distrito para município. Edvaldo, que mora há 32 anos na localidade, está ansioso com a efetivação da nova cidade”, diz reportagem de 2012.

“A gente espera que melhore as estradas, saúde. A gente espera que melhore mais para nós”, disse o pescador Edvaldo Fernandes.

“Naquela entrevista lá atrás eu disse que podia melhorar saúde, as estradas. Hoje nós temos médicos, já temos asfalto, saneamento básico hoje não está 100%. Eu acho que tem que melhorar mais ainda. Passa ônibus uma vez por dia. Isso aí tem que melhorar no nosso município”, conta Edvaldo.

A melhoria de serviços públicos chega mais devagar do que os cidadãos esperam, já que a maioria dos municípios brasileiros não se sustenta sozinho. Depende de repasses dos governos estaduais e federal.

Pescaria Brava não arrecada nem 10% do que gasta. O município de 10 mil habitantes pegou a última onda da criação de novas cidades, um número que dobrou depois da nova Constituição.

“Quando a Constituição de 1988 passou da União para os estados a atribuição de criar municípios, todo pequeno quis se emancipar. As novas prefeituras tiveram direito ao seu quinhão no fundo de participação dos municípios, o dinheiro que é repassado pela União”, diz reportagem do Jornal Nacional de 2004.

Esse sistema, previsto na Constituição, permite repartir e levar os recursos para onde precisa, mas o federalismo brasileiro também amadureceu ao sentir o cobertor curto de recursos. Por isso, duas emendas constitucionais, em 98 e 2006, puseram freio nas emancipações.

“Essas mudanças passam a depender de um estudo de viabilidade que aponte se o novo município terá arrecadação suficiente para investir em infraestrutura urbana e para pagar os funcionários públicos”, diz trecho do Jornal Hoje de 2013.

“Não basta mais a consulta feita ao município que será emancipado, mas também aquele que restará desse processo. Todos são ouvidos, o que legitima a decisão também dentro da concepção democrática, de ouvir todos”, explica o promotor de Justiça Guilherme Peña de Moraes.

Não é um quebra-cabeças fácil de montar.

“Federalismo é algo muito complexo e definir o que cada um deve fazer e como ser ao mesmo tempo geral e não ignorar as peculiares locais, esse é um desafio muito grande. E aqui também o Supremo Tribunal Federal tem uma tarefa de árbitro”, explica o professor de Direito da USP Virgílio Afonso da Silva.

“O Supremo Tribunal Federal decidiu que estados e municípios têm o poder de estabelecer políticas de saúde, inclusive questões de quarentena e a classificação dos serviços essenciais. O Supremo julgou o questionamento da Medida Provisória que concentrava no governo federal decisões sobre o combate à pandemia”, diz reportagem do Jornal Nacional de 2020.

“Não existe hierarquia entre leis federais, estaduais e municipais. Elas se relacionam com base nessa noção de repartição de competências, de divisão de trabalho. Isso é que caracteriza uma federação”, aponta o professor de Direito da Unirio José Carlos Vasconcellos.

“Nós somos muitos Brasis dentro de um. O que a Constituição, portanto, estabelece para a federação é para que cada um possa viver de acordo com as suas condições. Com as suas condições boas, de dignidade, de serviços, de qualidade de vida e de tudo mais”, afirma Cármen Lúcia.

A cooperação prevista na Constituição mostra que, não importa onde estejam os brasileiros, todos devem ter o direito de se orgulhar de ser parte do mesmo mapa, do mesmo país.