Há 25 anos, em 28 de agosto de 1996, o Brasil perdia Dulcina de Moraes. Atriz, diretora, produtora, professora e fundadora da Fundação Brasileira de Teatro (FBT), ela faleceu, aos 89 anos, vítima de diverticulite – inflamação no divertículo, bolsa formada na cavidade do intestino grosso.
Mesmo após a partida, Dulcina segue como referência no teatro e na luta pelos direitos dos atores. Quem teve contato com a artista afirma que ela era uma "mulher fantástica e iluminada".
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Como herança, deixou a Faculdade de Artes e o Teatro Dulcina de Moraes – localizados no Conic, prédio tombado como patrimônio cultural no centro do Brasília. Atualmente, no entanto, o espaço tem problemas estruturais e um dívida de R$ 20 milhões (veja mais abaixo).
VÍDEO: conheça a história de Dulcina de Moraes, a grande dama do teatro brasileiro
Nascida no teatro
Filha e neta de atores, Dulcina nasceu em 1908, em uma casa que foi emprestada aos pais dela, quando a mãe da atriz estava prestes a dar à luz. A cidade de Valença, no estado do Rio de Janeiro, ficou registrada como local de nascença, mas era nos palcos que a fluminense encontrava a sua casa.
A estreia como atriz foi aos três meses de idade. Na época, ela fez parte de uma apresentação dos pais. Ao 17 anos, ingressou na companhia de teatro de Leopoldo Fróes e foi considerada uma "grande promessa".
Em 1934, Dulcina alcançou reconhecimento com a peça "Amor", de Oduvaldo Viana. No ano seguinte, criou sua própria companhia ao lado do marido, o também ator e empresário Odilon Azevedo. Em 1945, chegou ao auge do sucesso, com o espetáculo "Chuva".
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Os esforços da atriz foram grandes responsáveis pela formalização da profissão de artista junto ao Ministério do Trabalho. Também graças a ela, atores ganharam direito a uma folga semanal, às segundas-feiras.
Fundação e dívida milionária
Convencida da necessidade de investir na profissão no Brasil, Dulcina criou, junto com Odilon Azevedo, a Fundação Brasileira de Teatro (FBT), em 1955, na cidade do Rio de Janeiro. Cerca de 20 anos depois, a instituição foi transferida para Brasília, com sede que teve esboço arquitetônico de Oscar Niemeyer.
A Fundação fica no Conic, ao lado da Rodoviária do Plano Piloto. Lá também funciona o Teatro Dulcina, inaugurado em 1980, e a Faculdade de Artes, que começou a operar em 1982, considerada uma das primeiras instituições de ensino no país dedicada às artes.
Enquanto estava viva, Dulcina ajudava a administrar e era professora do espaço. No entanto, com a morte dela, a instituição passou a enfrentar dificuldades. Em agosto de 2021, a FBT acumulava um débito de R$ 20 milhões, com dívidas trabalhistas e outras contas, como luz e água.
Segundo o atual presidente da fundação, Gilberto Rios, o rombo nos cofres se deve à falta de preparo das gestões anteriores. No cargo há 26 dias, o administrador – que tem 12 anos de experiência na gestão da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC) – promete usar o patrimônio de Dulcina para pagar as dívidas.
“Não é vender o acervo, que contém roupas, anotações e peças de teatro da Dulcina. Mas, sim, fazer uma exposição, de forma que as pessoas, na visitação, paguem um ingresso para entrar”, conta.
Plano de recuperação
Gilberto Rios, de 63 anos, trabalhou como secretário pessoal de Dulcina por três anos, na década de 1980. Ele conta que, recentemente, participou de uma reunião do conselho da fundação e pôde entender como estava a situação.
"A sensação que eu tive, naquele momento, foi que a Dulcina me pediu socorro", diz.
O administrador está aposentado e diz que fará a gestão como um trabalho voluntário. Gilberto contou ao G1 que vai entregar à Justiça um projeto de recuperação ao longo de 10 anos, cujo maior objetivo é pagar as dívidas.
Faculdade Dulcina de Moraes pede socorro
Dulcina como professora
Além da habilidade nos palcos, Dulcina tinha um olhar para novos talentos e conseguia convencer qualquer um a se aventurar no teatro. Foi assim com o diretor Fernando Guimarães, que conheceu a atriz quando tinha 20 anos de idade.
Na época, ele buscava uma amiga em uma escola de dança que ficava no mesmo prédio do Teatro Dulcina. Por acaso, Fernando esbarrou com a atriz.
"Eu peguei o elevador, que foi para o subsolo, e Dulcina entrou. Ela virou para mim e falou: ‘Se prepara, que os ensaios começam daqui a 15 dias'. Aí eu falei que não estudava na faculdade. Ela levou um susto, como se eu tivesse dito que era um urubu verde. Para ela, não existia outra coisa que não fosse fazer teatro. Me falou: 'Vem fazer o vestibular’'", conta.
O conselho foi seguido à risca. Fernando fez o teste, com a própria Dulcina como avaliadora, e passou. Ele lembra que a justificativa para a aprovação, segundo a atriz, foi porque ele tinha "cara de espanhol". A partir daquele momento, em 1983, passou a conciliar os estudos de teatro com o curso de relações internacionais, na Universidade de Brasília (UnB).
"Foi uma experiência que mudou minha vida, porque a partir daquele momento, eu ficava muito nos bastidores e a via em cena", conta.
Fernando concluiu os dois cursos. Mas a carreira nas relações internacionais não teve chance.
As artes cênicas ganharam protagonismo e ele seguiu como diretor de teatro. Para Fernando, Dulcina era como uma mestra que o ensinou o ofício de dar vida a uma peça.
Após a morte da atriz, o brasiliense assumiu o cargo de professor da mesma disciplina que Dulcina lecionava: direção de atores. Desde então, se passaram 25 anos como educador. "Acho que hoje eu ainda transmito para os meus alunos a mesma disciplina e respeito a profissão que a Dulcina trouxe para a gente."
"Ela me ensinou que o ato de estar no palco não é uma brincadeira. A atuação é uma brincadeira no sentido de você se divertir atuando, mas não é uma coisa que se pode fazer de qualquer jeito. Exige comprometimento."
Memória afetiva
Apesar das lições como professora, a memória mais marcante que Fernando tem da atriz é nos palcos. Segundo ele, Dulcina era um "furacão em cena". O diretor lembra que a última peça que assistiu com ela no elenco foi "O Melhor dos Pecados", escrito por Sérgio Viotti e com direção de Bibi Ferreira.
"Nunca esqueci, fico até arrepiado de falar. A peça começa no escuro total. Você só escutava uma risada da Dulcina no escuro. Ela tinha uma risada muito característica. Depois de um minuto, as luzes, devagarzinho, iam acendendo, e ela aparecia sentada falando no telefone. Quando ela ficou totalmente visível, a plateia inteira levantou e aplaudiu. Foi um aplauso longuíssimo, sabe?", relembra emocionado.
*Sob supervisão de Maria Helena Martinho.
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