Quase 50 prefeitos, 10 deputados estaduais e 4 federais. Este é o número, até agora, de lideranças políticas cearenses que o senador Cid Ferreira Gomes deve levar consigo ao deixar o PDT do seu irmão, o ex-ministro Ciro Ferreira Gomes, desmantelando o que é hoje um dos últimos redutos pedetistas do Brasil.
A debandada do partido é mais um capítulo da briga entre o Ciro e Cid, que se tornou pública em 2022 após o fim da aliança de 16 anos entre PT e PDT no Ceará. Aliança esta costurada justamente pelos dois, em um período em que Ciro era considerado o “mentor intelectual” do projeto e Cid o executor.
Se as eleições de 2022 foram consideradas por muitos uma das mais – se não a mais – divisivas da democracia brasileira, o Ceará e a família Ferreira Gomes não passaram incólumes pela disputa. Conforme o próprio senador Cid Gomes, ele e Ciro não se falam desde agosto do ano passado.
LEIA TAMBÉM:
A divergência entre os irmãos começou na escolha do candidato ao qual iriam apoiar para o governo do Ceará em 2022 e teve relação direta com a disputa presidencial, em especial com a posição de Ciro em relação a Lula.
Hoje, o PDT de Ciro Gomes vive uma intensa disputa judicial com Cid. O senador e seus aliados já buscam um novo partido para acomodá-los, enquanto o ex-governador e atual ministro da Educação, Camilo Santana (PT), desponta como principal força política no Ceará.
O g1 preparou um resumo para entender as origens da briga entre os irmãos, a disputa no PDT, como isso impacta nas eleições de 2024 e o futuro político da família e seu grupo no Ceará. Confira:
O início do grupo Ferreira Gomes
Ciro Gomes já era deputado estadual quando foi eleito prefeito de Fortaleza nas eleições de 1988. Ele tomou posse como prefeito em 1989 e, em 1990, concorreu ao governo do Ceará e foi eleito governador, cargo que assumiu de 1991 e deixou em 1994, quando foi indicado ministro da Fazenda do governo Itamar Franco.
Estes cargos foram os primeiros de projeção estadual e nacional de um membro da família Ferreira Gomes, que já era tradicional na política de Sobral, uma das maiores e mais importantes cidades do Ceará, localizada na região norte do estado. O pai de Ciro e Cid, por exemplo, foi prefeito da cidade.
À época de sua eleição ao governo, Ciro era do grupo político do ex-senador Tasso Jereissati (PSDB), que governou o Ceará por três mandatos e, no intervalo entre eles, fez sucessores. Em 2006, porém, a família Ferreira Gomes rompeu com o grupo de Tasso e lançou um nome próprio ao governo do estado: Cid Gomes.
Cid foi eleito deputado estadual em 1991. Em 1996, foi eleito prefeito de Sobral e se reelegeu em 2000. Quando seu nome foi lançado ao governo cearense em 2006, ele enfrentou o então governador, Lúcio Alcântara (PSDB), aliado de Tasso, e o derrotou com 62% dos votos.
A partir deste mandato inicial de Cid, o grupo da família Ferreira Gomes se consolidou como a principal força política do estado.
“O grupo político do Ferreira Gomes foi durante praticamente 16 anos o grupo político mais forte do Nordeste. Mais forte em que sentido? Mais forte em capilaridade, presente em todo o Ceará, em número de figuras de liderança, tinha mais de 300 lideranças políticas, do vereador ao governador; e também pela unidade, pela coesão. Onde é que está a força de um grupo político? Na unidade”, pondera o cientista político Clayton Monte, que estuda os Ferreira Gomes há 10 anos.
“Cid sempre foi a figura de lidar com os prefeitos e Ciro sempre foi a liderança de pensar o grupo em termos de projeto. Ele sempre esteve ligado muito mais à dinâmica nacional que estadual. Como deputados chamavam, ele sempre foi o líder intelectual do grupo”, descreve Clayton.
Nos anos seguintes, o governo Cid Gomes garantiu maioria na Assembleia Legislativa e formou uma base aliada com vários partidos, incluindo o PT, e angariou o apoio de dezenas de prefeitos no interior do estado.
Os irmãos de Ciro e Cid também trilharam caminho na política. Ivo Gomes, que já era deputado estadual desde 2002, depois foi chefe de gabinete de Cid e, em 2016, foi eleito prefeito de Sobral, assim como Cid e como o pai dos dois. Lia Gomes foi secretária e, desde 2022, é deputada estadual.
Em 2012, o grupo lançou o então deputado estadual Roberto Claudio (à época PSB, hoje PDT) candidato à Prefeitura de Fortaleza, até então ocupada pela petista Luizianne Lins. Roberto enfrentou o deputado estadual Elmano de Freitas (PT), que hoje é governador do Ceará, e na época foi escolhido por Luizianne para sucedê-la.
O candidato de Cid venceu Elmano, e desde então o grupo político dos Ferreira Gomes vive uma situação de conflito com o diretório do PT de Fortaleza, embora mantivesse a aliança com o PT estadual.
Foi, inclusive, dos quadros do PT que Cid Gomes escolheu seu sucessor: Camilo Santana. Camilo emergiu na política estadual após ser indicado por Cid como secretário do seu governo, ainda no primeiro mandato.
Em 2010, na reeleição de Cid, Camilo deixou o secretariado para concorrer a deputado estadual e foi o mais votado daquele ano. Em 2014, com Cid de saída, os Ferreira Gomes costuraram o apoio para Camilo concorrer ao governo cearense, e ele ganhou com 53% dos votos.
“[Esse grupo dos Ferreira Gomes] foi ampliando poder numa aliança com a esfera nacional, com o lulismo, e foram garantindo investimentos, recursos, e garantiram também a governabilidade a partir de uma aliança com PT e com os partidos que de certa forma faziam aliança com o governo Lula e depois com governo Dilma. Esse grupo conseguiu permanecer com a eleição e reeleição do Camilo Santana, e ele entrou numa crise grave a partir de 2022”, detalha Clayton Monte.
O rompimento de 2022
Em 2022, a coesão do grupo Ferreira Gomes ruiu durante o processo de escolha do sucessor de Camilo. Bem-avaliado, Camilo deixou o cargo de governador em abril para poder concorrer ao Senado. Com a saída de Camilo, sua vice, Izolda Cela (até então PDT, hoje sem partido), assumiu o governo cearense.
Com trajetória no PT, ao qual foi filiada até 2013, Izolda era conhecida de longa data da família Ferreira Gomes. Sobral é considerada uma cidade símbolo pela revolução que operou na educação pública, isto é, no ensino infantil e no ensino fundamental. Izolda é considerada uma peça-chave nesse processo.
Quando foi eleito governador em 2006, Cid levou Izolda para a Secretaria Estadual de Educação, onde permaneceu até 2014, quando deixou o cargo para concorrer como vice de Camilo. Em 2022, Izolda estava filiada ao PDT. Até então, era consenso que, repetindo o sucesso das últimas eleições, PT e PDT manteriam a aliança.
A bola da vez estava com o PDT, que iria indicar o candidato. Desde que encerrou os dois mandatos à frente da Prefeitura de Fortaleza com boa avaliação, Roberto Claudio apareceu como um dos nomes mais fortes dentro do PDT para concorrer ao governo do Ceará. Com a saída de Camilo do cargo e ascensão de Izolda como a primeira mulher governadora do estado, o cenário mudou.
Parte da aliança defendia que Roberto Claudio era o melhor nome para disputar o governo do estado contra o bolsonarista Capitão Wagner (União), que aparecia à frente nas pesquisas. Ciro e Lia Gomes integravam este grupo.
Outra parte da aliança defendia que Izolda, no cargo, teria o direito natural de concorrer à eleição. Camilo Santana, Cid e Ivo Gomes integravam este grupo.
Em 2022, com a disputa aberta pela Presidência da República, a escolha do nome que iria concorrer ao governo do Ceará pela aliança estadual forjada pelos Ferreira Gomes também foi influenciada pela corrida presidencial, na qual Ciro Gomes era um dos concorrentes.
“O Ciro, em todas as disputas dele presidenciais, por mais que ele perdesse a disputa, ele sempre tinha uma votação muito expressiva no Ceará, foi assim até 2018. E aí, o grupo liderado pelo Camilo Santana buscava construir a candidatura à reeleição da então governadora Izolda Cela. Só que a governadora Izolda Cela, mesmo que tendo ligação com Ciro e com Cid, ela sempre teve vínculos com PT”, afirma Clayton Monte.
“O Ciro acreditava que, ela [Izolda] sendo a candidata, não iria entrar, não ia mergulhar com força na sua candidatura presidencial, que precisava de um nome mais identificado com ele. Daí o nome do Roberto Cláudio. Ele insistiu nessa candidatura, se tentou até o último momento uma forma de conciliação, mas ele insistiu na candidatura do Roberto Cláudio como representação da disputa, e essa candidatura do Roberto Cláudio acabou dividindo a base aliada”, explica o cientista político.
No dia 18 julho de 2022, o diretório estadual do PDT, reunido em Fortaleza, votou entre o ex-prefeito Roberto Cláudio e a então governadora Izolda Cela. Roberto recebeu 54 votos contra 29 de Izolda, e foi escolhido candidato ao governo do Ceará.
Cid apoiava Izolda, mas não se envolveu na disputa para não se opor publicamente a Ciro, que estava articulando sua candidatura presidencial a nível nacional. A partir da decisão do PDT, bancada por Ciro, o grupo rompeu. Cid e Ciro também.
A situação repercutiu nacionalmente. No dia 27 de julho, na convenção em que formalizou a chapa Lula-Geraldo Alckmin, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, criticou a decisão do PDT de não escolher Izolda.
"Não entendo por que a Izolda não podia ser candidata à reeleição, estando no cargo e bem-posicionada nas pesquisas. Nós tínhamos o compromisso de apoiar", disse Gleisi.
No dia 24 de julho, a candidatura de Roberto Cláudio foi lançada oficialmente em um evento em Fortaleza. Ciro estava no palanque e discursou. Cid e seu irmão Ivo Gomes, prefeito de Sobral, não estavam presentes.
No mesmo dia, Camilo Santana publicou nas redes sociais uma foto com Cid Gomes e Izolda Cela. “Amigos que a vida me deu e que ninguém separa. Respeito, carinho e união sempre”, escreveu.
Ainda no mesmo dia 24, de noite, Camilo anunciou Elmano de Freitas como candidato do PT ao governo do Ceará, confirmando oficialmente que o PT não iria apoiar a escolha do PDT e fazendo com que o grupo, pela primeira vez em mais de uma década, se dividisse em duas candidaturas distintas.
Cid e Ivo não participaram da campanha de Roberto Cláudio, a despeito do ex-prefeito usar a imagem de Cid em suas imagens de campanha. Em agosto, Ivo inclusive afirmou publicamente nas redes sociais que Cid não apoiava Roberto.
Com o rompimento com os irmãos e seu ex-aliado Camilo Santana, o presidenciável Ciro Gomes decidiu não fazer campanha no Ceará. "Recebi uma facada poderosa nas costas. A traição é a cara do momento no Ceará. Resolvi não ir ao meu Estado pela primeira vez. Que o cearense diga lá o que quer fazer de mim”, disse ao podcast Claudio Talks.
Em 2018, Ciro foi o candidato à Presidência da República mais votado do Ceará no primeiro turno. O estado foi o único em que Fernando Haddad ou Jair Bolsonaro não venceram no primeiro turno. Em 2022, Ciro acabou em terceiro lugar no Ceará. Roberto Cláudio, o candidato de Ciro ao governo cearense, também ficou em terceiro lugar na disputa.
Disputa judicial e familiar
Desde o rompimento de Cid e Ciro em 2022, o PDT no Ceará vivia uma situação de racha interno, com duas alas, uma liderada por Cid Gomes e outra por André Figueiredo, aliado de Ciro. André acumula as funções de presidente nacional e estadual do partido, mas os aliados de Cid são maioria no diretório do partido.
Cid defende que o PDT Ceará retome a aliança com o PT e apoie o governador petista Elmano de Freitas, assim como já ocorre na esfera federal: Carlos Lupi, presidente licenciado do PDT nacional, é ministro de Lula. André Figueiredo, alinhado a Ciro, defende que o PDT Ceará seja independente de Elmano.
O partido entrou em um verdadeiro cabo de guerra entre Cid e Figueiredo. Em junho de 2023, durante um evento regional do PDT em Fortaleza com presença de Ciro, o racha ficou claro: nem Cid nem seus prefeitos, deputados federais e estaduais aliados compareceram.
Desde julho, aliados de Cid tentam encerrar o mandato de Figueiredo à frente do PDT Ceará, fazendo com que o senador, que é vice-presidente do PDT no estado, assuma a sigla.
De lá para cá, houve inúmeras revoltas: o grupo chegou a uma definição e rompeu o acordo; Cid conseguiu maioria para destituir Figueiredo, mas a direção nacional destituiu Cid; um já conseguiu na Justiça a anulação das ações do outro, e vice-versa em um vaivém que segue até agora.
Em outubro, durante reunião do PDT nacional no Rio de Janeiro, Cid e Ciro sequer se cumprimentaram. Segundo informações do jornal O Globo, os dois discutiram publicamente aos gritos, com direito a dedo na cara. Na saída da reunião, Ciro afirmou ao jornal: “A reunião foi muito ruim, e o clima com meu irmão é o pior possível.”
Após a reunião, ficou selado que não haveria possibilidade das duas alas do PDT Ceará se entenderem. Cid, então, tem articulado a saída do partido junto a seus aliados, em mais uma demonstração de força política.
Em 2013, Cid decidiu se filiar ao recém-criado PROS após romper com o PSB. Ele levou consigo centenas de aliados, entre eles, quase 40 prefeitos, mais de 280 vereadores, deputados federais e estaduais e o prefeito recém-eleito de Fortaleza, Roberto Cláudio.
Em 2015, quando foi para o PDT, levou consigo mais de 60 prefeitos e dezenas de vereadores e deputados federais e estaduais. Nas eleições municipais de 2020, o PDT obteve o maior número de prefeitos eleitos no Ceará: foram 66 de 184 municípios.
Agora, com a briga entre Ciro e Cid, o senador voltou a demonstrar força. Há estimativas de que mais de 50 prefeitos, cerca 10 deputados estaduais e suplentes, e 4 deputados federais devam acompanhar o senador na saída do PDT.
Entre os que acompanham Cid, inclusive, estão seus irmãos, o prefeito de Sobral Ivo Gomes, e a deputada estadual Lia Gomes, que em 2022 tinha ficado do lado de Ciro.
“A maioria dos deputados do PDT apoia o governo Elmano na Assembleia [Legislativa do Ceará], a maioria dos prefeitos do PDT apoia o governo Elmano, então não há dúvida de que a maior parte dos filiados do partido seguem o Cid e estão ligados e querem uma relação com o governo. Entre os dois [Ciro e Cid], não há qualquer dúvida que o grupo do Cid é maior”, avalia Clayton Monte.
As eleições de 2024 e o novo grupo político
Em 2024, milhões de brasileiros voltam às urnas para escolher os prefeitos e vereadores de seus municípios. As eleições municipais também são vistas como um termômetro da força política de governadores, deputados e até do presidente da República.
Com a briga entre os Ferreira Gomes em 2022, o racha do PDT em 2023 e a vitória do candidato a governador indicado por Camilo Santana, especialistas apontam que Camilo desponta como a principal força política do Ceará.
Parte dessa força política será testada nas eleições municipais de 2024. Um dos principais focos de disputa é a Prefeitura de Fortaleza. O atual prefeito, José Sarto (PDT), conta com o apoio de Ciro. O PT de Camilo Santana, e em especial o diretório de Fortaleza, com o qual Cid é brigado há anos, defende lançar um candidato próprio na disputa pela capital cearense.
Envolvido na briga com o PDT, Cid ainda não fez muitas manifestações a respeito da disputa por Fortaleza. Mas em entrevista ao Diário do Nordeste em outubro deste ano, afirmou que não acha “razoável” que o PT conquiste a prefeitura de Fortaleza.
“PT tem a presidência da República, tem o Governo do Estado, eu não acho razoável que eles tenham também a Prefeitura de Fortaleza — ou ganhem, porque eles não têm a Prefeitura de Fortaleza — e fique com todos os três poderes. Não é bom para a democracia", disse o senador.
“As eleições municipais vão dar o tamanho da força de cada um. Por exemplo, o Sarto é o candidato apoiado pelo Ciro. Praticamente, a grande força política no Ceará hoje apoiada pelo Ciro é o Sarto. Se o Sarto perde a reeleição, o Ciro fica praticamente sem base política no Ceará. O Cid, o Camilo e o Elmano têm várias candidaturas que estão disputando no interior, em municípios importantes”, aponta Clayton Monte. “O mapa político que sai da eleição de 2024 é o tamanho de cada um”, resume.
Assista aos vídeos mais vistos do Ceará: