Dizem que nunca é tarde demais para recomeçar, e Flor Fontenele, de 56 anos, sabe bem disso. De etnia cigana, a mestranda na área de humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) concluiu a graduação em maio deste ano e já emendou a pós-graduação – sonhos que, há um tempo, pareciam distantes.
"Minha mãe morreu muito cedo, com câncer, aos 39 anos de idade. Eu queria ter uma vida diferente. Existia uma lógica de vida familiar que eu ia na contramão", relembra a mulher.
É da mãe, inclusive, que Flor carrega a descendência cigana. A descoberta também veio depois dos 50 anos e virou tema de defesa do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e, agora, no mestrado.
"Eu estudo identidade, cultura e movimento social na área da antropologia. Estou pesquisando representações sociais do movimento social cigano no Ceará dentro do Facebook", explicou ao g1.
Até chegar aqui, Flor viveu uma adolescência e início da vida adulta conturbadas. Precisou lidar com violência sexual, passou um tempo em situação de rua e perdeu um dos namorados.
Foi na música que encontrou um pouco de consolo e chegou a integrar a banda Resistência Desarmada, grupo punk de Fortaleza composto somente por mulheres.
Depois disso, trilhou caminho no Terceiro Setor, foi educadora social e colaborou com diversos movimentos de infância e juventude de Fortaleza.
"Fui ascendendo dentro desse espaço, mas sem nenhuma formação básica, só pelo desempenho na atuação mesmo", disse.
Rede de apoio
A virada de chave chegou com apoio das filhas. A primogênita entrou na universidade e passou a incentivar a mãe a terminar o ensino médio, já que Flor tinha estudado até o ensino fundamental 2. Em 2015, ela fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para obter um diploma de nível médio (na época, o exame era utilizado como recurso para obtenção do certificado).
Ao longo dos anos, após tentativas de ingressar em universidades públicas e privadas, ela passou na Unilab em 2018 para o bacharel em Humanidades. A mudança para Redenção (cidade onde a universidade está localizada, a cerca de 60 quilômetros de Fortaleza) exigiu coragem, já que ela estava desempregada e buscando um novo rumo para a vida.
"Aos 56 anos, também me envolvo na luta pela universidade pública. Aqui, eu represento os povos ciganos em um comitê, luto por cotas, por acesso e permanência".
Sem auxílio ou bolsa, o foco de Flor, agora, é conseguir lidar com as demandas acadêmicas e financeiras que surgem. O relato da estudante prova que é essencial repensar a permanência acadêmica de minorias sociais.
Para ela, é necessário reconhecer a importância de uma pessoa na sua faixa de idade estar nesses espaços, contribuindo e tecendo novos sonhos, mas – sem romantização – como Flor mesmo coloca, já que tudo só foi possível porque ela teve oportunidades:
“Essa sociedade não dá o apoio necessário. Todos nós temos capacidade, mas é preciso compreender que existe um sistema patriarcal que não oferece as condições necessárias para que qualquer mulher consiga fazer isso. Tive filhas que me ajudaram, foi muito foco, tive que abrir mão de muita coisa (...) Não estudei porque não quis. Eu não estudei porque eu tive uma vida que não me deixou fazer isso".
Flor quer, ainda, chegar ao doutorado fora do país "para estudar meu povo lá nas origens".
Comunidades ciganas presentes em 60 municípios cearenses
O Instituto Cigano do Brasil, organização voltada para manutenção da história e luta por direitos dessa população, contabiliza que há comunidades ciganas em pelo menos 60 municípios cearenses.
De acordo com Marcelo Cavalcante, presidente do ICB, o maior número está em Sobral, município localizado a 200 quilômetros de Fortaleza.
"São ciganos da etnia Calon. Eles mantiveram algumas tradições, como a leitura de mãos (pelas mulheres) e o escambo (pelos homens). Por conta das cheias do Rio Acaraú, em 1974, se mudaram para o Sumaré, onde se reorganizaram", disse ao g1.
Ainda conforme dados do instituto, os povos são divididos em três grandes etnias:
- Calon, oriundos da península ibérica;
- Rom, do Leste europeu;
- Sinti, da Alemanha e da França.
"Cada uma tem línguas, culturas e costumes próprios", acrescentou Marcelo.
"Os povos ciganos acompanham o tempo em que estão vivendo"
Flor Fontenele consegue lembrar dos momentos, quando criança, em que via a mãe praticando alguns hábitos da tradição cigana, como a leitura de cartas.
Segundo Marcelo Cavalcante, as tradições são patrimônios imateriais e estão atreladas à memória.
"Os povos ciganos, assim como qualquer outro povo, vão se adequando ao local e o tempo em que se encontram".
Conforme o estudioso, os casamentos, por exemplo, ainda são bastante importantes, mas menos rígidos.
"A religiosidade é livre, cada cigano define sua crença. O que não mudou são os valores: respeito às crianças e idosos, o papel da mulher na família, a língua", elencou.
Para ele, o mais importante é apontar que as tradições mudam de acordo com cada etnia, e principalmente, se são ciganos em situação de nomadismo ou de comunidades fixadas.
Direitos prioritários
Assim como Flor luta pelos seus direitos dentro da universidade, os povos ciganos e seus descendentes, em geral, reivindicam o Estatuto dos Povos Ciganos. O projeto está tramitando.
"Hoje, os povos acessam as políticas públicas como qualquer outro cidadão brasileiro, não sendo garantidas suas especificidades nas questões de moradia, saúde, educação, assistência social, acesso à justiça", pontuou Marcelo Cavalcante.