Por Aline Midlej

Aline Midlej é apresentadora do Jornal das Dez, na GloboNews

Nós conseguimos


A volta das férias foi como todas são. Uma reimersão ansiosa nas realidades, minhas, do país. Tive sorte. Gilberto Gil, primeiro membro da Academia Brasileira de Letras, oriundo da MPB, e Ketanji Jackson, primeira mulher negra a integrar a Suprema Corte americana em 232 anos, não deixaram frestas para minhas dúvidas. Cada um, em seus emocionantes discursos de posse, me lembraram que resistir vale a pena. Se for com poesia e bem acompanhada, melhor ainda.

"Tive grandes êxitos e alegrias nesta vida, mas também muitas tristezas... Mas não desanimo e é preciso resistir sempre. Apesar dos tempos politicamente sombrios que vivemos aposto na esperança contra a treva física e moral. Que haja ao menos a chama de uma vela até chegarmos a toda a luz do luar", disse Gil já vestido com seu fardão de imortal.

"Nós conseguimos – todos nós, todos nós. Nossas crianças estão me dizendo que veem agora, mais do que nunca, que aqui na América tudo é possível", foi a vez de Ketanji Jackson nos confortar. A magistrada enfrentou uma odisseia de provações até ter seu nome aprovado pelo Senado americano. É sempre mais difícil. Pra gente. Mas o sabor da recompensa é igualmente superior. Ketanji Jackson, assim como a vice-presidente Kamala Harris, na cerimônia que confirmou a aprovação da juíza, citaram as novas gerações, lembrando as portas que são ampliadas para elas com essas conquistas históricas (até que não sejam mais conquistas históricas).

Enquanto leio, escuto e reflito, chega no celular uma nova mensagem da Herica, a mãe do João Victor. A família já foi tema neste blog, há quase um ano, com o texto "O orgulho que cresce nos crespos". Naquela ocasião, divulguei um trabalho da escola do João Vitor, em que ele discorria sobre preconceito, a partir de um desenho multicolorido e um texto. Tinha 14 anos. Hoje, perto de completar 15, optou por uma poesia, depois de presenciar uma discussão em família no quintal de casa. Perguntei o que o havia inspirado: "é mais uma reflexão sobre a história da minha família, depois da briga, que pude entender melhor a trajetória dos meus avós. Só que eu acho que de certo modo o que eu coloquei reflete na história de muitas outras famílias pretas ou mestiças como a minha, por conta de todas as condições sociais e políticas que marcaram a história para essas populações, a feitoria se resume à essa perspectiva somada as situações da minha família", me contou.

A sofisticação da narrativa sobre o racismo do jovem João Vítor é outro conforto inesperado e fortalecedor neste retorno, e que não posso guardar só para mim. Deixo vocês com essa poesia, parafraseando Ketanji Jackson: nós conseguimos. Estou de volta. Vamos juntos, com resistência, poesia e bem acompanhados.

É a vida do Cafuzo,
É a união estável, que Deus não vê,
É a vida sozinha,
Ferida,
É a mulatinha excluída,
Que é mordida por milhões de formigas,
Formigas albinas,
É o chão de barro,
Da Preta velha gordinha,
Viúva de expedicionário,
Que mora num casebre desfavorável,
É a translúcida família,
Que tem um Cafuzo traído,
Amordaçado,
Melancólico e amaldiçoado,
Que quebra as garrafas,
Que estoura os tambores da Curimba,
Na rua dos presidentes,
É a mulata depressiva,
Sofrida,
Presa, Largada,
Calada,
Rude de desgosto,
Carente de amor,
E cheia da graça de Xangô,
É a neta com os traumas da mãe,
Que sente o vento bater em noites de frio,
Na sua pele nua e cruel,
O tempo passa,
A dor nunca sai,
Em cem anos, o urro não sai,
A marca da maldita chibata,
Continua, continua marcada na alma,
Mesmo de uma criança mais clara,
Não existe essa cor sem melancolia,
Não existe essa pele que não é sofrida,
Não existe essa pele sem amor,
O verdadeiro amor,
Que arde, e se sente arder muito,
Ao ponto de urrar por até o infinito,
Pois só assim,
Pode ser sentido.

Poema de João Vitor — Foto: Arquivo pessoal