Ufba arquiva processo de professora contra aluna trans que a acusou de transfobia

Docente denunciou estudante por assédio moral e calúnia após confusão durante aula na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, em setembro de 2023.

Por g1 BA


Faculdade de Comunicação da Ufba — Foto: Facom

A Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom-Ufba) arquivou o processo de assédio moral e calúnia contra a aluna trans Liz Reis. A estudante foi denunciada pela professora Jan Alyne após uma discussão em sala de aula, que terminou com Liz acusando a docente de transfobia e racismo.

O caso ocorreu em setembro de 2023 durante uma aula do curso de Produção Cultural na Facom.

À época, a estudante disse que a discussão começou quando a professora não concordou com as críticas dela sobre um texto abordado em sala. Em meio a isso, a professora usou pronomes masculinos para se referir a jovem.

Já a professora se retratou pelo erro no uso do pronome errado, e declarou que não conhecia a aluna que participava da turma pela primeira vez. A docente afirmou ter sido alvo de calúnia e difamação.

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Diante das acusações, a Ufba declarou, inicialmente, que Liz foi acolhida pela Pró-reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil e orientada quanto aos procedimentos necessários. De acordo com a instituição, a aluna prestou queixa na Ouvidoria.

Além disso, foram abertas sindicâncias para apurar as denúncias apresentadas por Liz e por Jan Alyne.

O trabalho da comissão interna para julgar o processo aberto pela professora teve início no dia 7 de fevereiro, considerando as oitivas já realizadas anteriormente e as provas colhidas na investigação preliminar.

A avaliação do grupo, concluída no dia 28 de fevereiro, foi de que a denúncia direcionada apenas a Liz não fez sentido.

"No item 1 da sua peça inicial, a denunciante expõe tão somente uma opinião pessoal sobre a existência de um suposto movimento identitário e repressor no âmbito discente da Ufba, todavia não faz objetivamente qualquer requerimento concreto correspondente, salvo um alerta à comunidade acadêmica sobre o suposto fato", indica um trecho do relatório.

Em outro trecho, a comissão diz que a professora solicitou apoio psicológico da Ufba e sugeriu que iria responsabilizar a instituição por eventual omissão, "requerendo ainda, no mesmo item, uma retratação 'de todo o corpo discente que participou dos lamentáveis episódios', todavia, sem identificar um indivíduo sequer para tanto".

De acordo com a comissão, os pleitos são "genéricos" e estão fora do escopo do grupo.

"Desta maneira, após perscrutar todas as provas já produzidas na supracitada IPS, a fim de averiguar a possível conduta irregular da aluna Luiza Liz dos Reis Pinheiro contra a servidora docente da Facom, Jan Alyne Barbosa Prado, em sala de aula, ponderamos que não há correspondência material entre os fatos descritos na denúncia e os respectivos requerimentos ali formulados", argumentou a comissão ao defender o arquivamento do processo.

A sugestão foi acatada pela faculdade, que encerrou o processo.

Procurada pelo g1, Jan Alyne conta que a Ufba também arquivou a denúncia de Liz contra ela por falta de provas.

No entanto, a professora critica a decisão da Faculdade de Comunicação quanto à queixa de calúnia contra a estudante. Ela afirma que não foi ouvida durante o processo, o que limitou suas possibilidades de defesa.

"Há muitas evidências de que a aluna cometeu crimes na esfera penal, cível e administrativa e a faculdade simplesmente decidiu arquivar a denúncia alegando falta de evidências materiais", disse ao g1.

Jan Alyne está de licença médica por 60 dias para cuidar da saúde — a docente aponta que o "episódio de violência institucional" provocou seu adoecimento.

"Meu afastamento tem relação apenas com a injustiça, o desamparo institucional e alta periculosidade no ambiente de trabalho", acrescenta.

O g1 também tenta contato com a estudante Liz Reis e com a Universidade Federal da Bahia, mas ainda não obteve retorno.

Áudio revelou discussão na aula

Um dia após a confusão entre professora e aluna, o g1 teve acesso, na íntegra, ao áudio completo da aula de uma hora e 10 minutos. (Ouça conteúdo abaixo)

Áudio mostra início de discussão entre professora e aluna na UFBA

Todo o caso ocorreu em 12 de setembro, quando a aluna Liz Reis – que é uma mulher trans – assistiu pela primeira vez a aula da disciplina de Produção e Circulação de Conteúdos e Mídias Digitais, ainda que o semestre tenha iniciado no dia 14 de agosto.

Na gravação a que o g1 teve acesso, a professora Jan Alyne Prado inicia um debate com base em um texto aplicado em uma aula anterior. Liz é uma das pessoas que debatem na aula. Em dado momento, a professora fica incomodada porque a conversa fugiu ao assunto do texto estudado.

No áudio, Jan Alyne pede para que a sala volte ao tema central do debate e diz que Liz não leu o texto, já que se tratava da primeira vez dela na sala de aula. Neste momento, a estudante se exalta e passa a ironizar, em tom de voz alto, as falas da professora.

"Eu li o texto, meu bem. Eu acho que diminuir o aluno [sic] por não concordar com o que ela quer seguir falando é difícil", disse Liz no meio da discussão. Aparentemente nervosa, a professora diz que Liz estaria "chateado". Neste momento, a aluna a corrige e diz que o certo seria "chateada".

"A sua curadoria está tão distinta que você não consegue nem me enxergar como uma mulher, mas desculpa se o meu discurso acadêmico não é compatível com o seu, mesmo estando no mesmo parâmetro", rebateu Liz.

Em conversa com o g1, Jan Alyne reconheceu que errou e disse que interpretou mal a identidade de gênero da estudante.

"Eu não a conhecia, nunca a tinha visto e não fiz a chamada no início da aula. Ela não foi identificada como mulher trans para mim. Eu confundi a minha interpretação, de fato. Eu poderia ter identificado ela tanto como um homem gay, tanto como uma mulher trans. Eu errei", assumiu.

"Quando ela começou a se sentir muito ofendida, porque a tratei primeiro no masculino, corrigi. Estava ficando nervosa e acho que falei outra vez, mas depois não voltei a falar. Ela começou a se exaltar muito, ficava falando coisas ali que não tinham conexão com a condução da aula, com o programa da disciplina".

Depois disso, Liz diz então que vai se abster do debate em sala de aula e a discussão sobre o texto segue. Cerca de 20 minutos depois, a aluna volta a entrar na conversa sobre o texto. Ela interrompe Jan Alyne em uma fala e a professora chega a dizer que perdeu a linha de raciocínio.

Outra aluna tenta ajudar a professora a retomar o assunto, e Liz volta a ironizar a situação e sugere que Jan Alyne teria se perdido por estar "chateada". Quando a docente retorna ao assunto, a jovem passa a interrompê-la novamente e Jan Alyne se impõe e diz que ela é a professora.

Estudante ofendeu professora e agiu com ironia

Depois que a professora tenta retomar a autoridade em sala de aula, Liz então sobe o tom de voz novamente e passa a ofender a metodologia de ensino dela, resgatando o assunto sobre o uso do adjetivo com o gênero errado. Exaltada, a estudante diz que vai processar Jan Alyne.

"Eu sei, meu amor, mas eu estou participando da aula, e eu acho que a senhora não vai me impedir de estar criticamente contribuindo com a aula", diz a estudante com tom de voz elevado.

"E se a senhora continuar fazendo isso comigo – por que eu aguentei a senhora ter feito aquela dinâmica irrisória, insuportável comigo, desde errar o meu pronome, até fazer a minha existência, como aluna aqui dentro dessa sala, não existir, eu vou abrir um processo contra a senhora. A senhora é professora mas eu sou aluna. E o meu direito como aluno [sic] eu estou exercendo, que é participar criticamente".

Jan Alyne então sai da sala e vai atrás de outro funcionário que possa retirar Liz o ambiente. A professora disse que ficou intimidada com a reação da aluna.

"Ela se exaltou bastante, e eu tive que sair da sala, porque ela não estava deixando a gente continuar a aula. Eu desci para chamar um servidor, porque eu estava com um pouco de medo também. Eu pedi apoio a ele, porque eu queria convidá-la a sair da sala, já que eu não estava conseguindo dar minha aula. Aí ela começou a se exaltar mais ainda".

No momento em que a professora saiu da sala, é possível ouvir a voz de uma terceira aluna, que incita ainda mais Liz a brigar. Ela continua exaltada e diz que ainda assim seria obrigação da professora acolhê-la.

"Eu podia estar aqui louca, falando merda, comendo cocô, ruminando aqui, como ela faz. Ela tinha que dizer: 'vamos dialogar de onde é que vem, quais são essas referências'. E eu trouxe as malditas referências que esses brancos querem que eu traga".

Quando cessa o barulho na classe, alguém chama Jan Alyne de "vagabunda". A voz é semelhante com a da estudante trans, mas ainda não é possível confirmar. Esse áudio será periciado em inquérito policial, que poderá concluir se a voz é de Liz ou de outra aluna.

A jovem trans diz ainda que a professora: "pode fazer o 'espetaculozinho' que ela quiser, mas eu também vou". Novamente no áudio, a terceira estudante incentiva as ofensas contra Jan Alyne. Minutos depois, a professora retorna à sala e a estudante ironiza Jan Alyne mais uma vez.

"Que bom, professora, que voltou. Pensei que a senhora estava chateada", disse Liz.

Jan Alyne tenta falar que trouxe o funcionário para que Liz respeite a aula, e a aluna novamente interrompe a professora. Enquanto Liz grita e se diz uma estudante criticamente ativa, Jan Alyne conversa com outra pessoa e diz que a jovem não a deixa dar aula.

A aluna então se levanta diz que a existência dela foi negada, chama a professora de "barbaridade" e volta a fazer analogias escatológicas. "Se eu estivesse comendo cocô, pela pedagogia, a senhora deveria acolher o meu cocô", diz a estudante.

Diversos alunos pedem calma a Liz e chegam a expressar repulsa pela referência feita por ela. Liz diz então que não vai se retirar da aula e os colegas de classe voltam a pedir calma. No áudio é possível ouvir uma jovem falar, com tom perplexo, que "está todo mundo maluco" e pede para que a aula seja encerrada.

Ao fundo também é possível ouvir Liz gritar que vai abrir um processo contra Jan Alyne e a chama de violenta. Jan Alyne pede para que a jovem fale baixo e ela rebate que não vai descer o tom de voz. A professora anuncia que a aula acabou. Liz então sai gritando pelos corredores que Jan Alyne é transfóbica e racista.

O áudio encerra com o restante dos estudantes perplexos. Um rapaz chega a reclamar que Liz foi desrespeitosa o tempo inteiro. "Ela só usou o deboche, completamente 'despirocada' [doida]". Outra jovem diz que está "passada" [perplexa].

Ainda ao g1, Jan Alyne disse que, durante a discussão, Liz feriu diversas vezes a autonomia dela enquanto docente.

"Eu tenho um programa, eu tenho autonomia. Ela não pode ser a professora, e ela queria ser a professora ali. É chocante. Ela me desqualifica por não fazer slide, desqualifica o meu estilo de lecionar. Nunca aconteceu comigo, nunca fui linchada nesse nível, mas eu não posso me destituir da minha autonomia, porque eu tenho autonomia docente, ralei muito para fazer meu doutorado, fazer mestrado, passar em concurso".

Protesto

Durante protesto na UFBA, alunos acusam professora de transfobia

Um grupo de estudantes da Faculdade de Comunicação (Facom) da Ufba, liderado por Liz, fez um protesto na manhã da quarta-feira seguinte. A estudante trans, que é cantora lírica, chegou a cantar ópera durante a manifestação.

Em contrapartida, a professora cancelou as aulas previstas para a quinta-feira daquela semana e disse que vai usar o momento para se retratar com os alunos, principalmente com Liz por ter usado equivocadamente o pronome indevido. Jan Alyne disse ainda que "tudo será devidamente apurado".

O que disse a Ufba?

À época, a Universidade Federal da Bahia informou que a estudante foi acolhida pela pró-reitora de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil Cássia Maciel, que a ouviu, atendeu e orientou-a quanto aos procedimentos necessários.

Universidade Federal da Bahia — Foto: Divulgação/Ufba

Segundo a Ufba, a estudante registrou queixa junto à Ouvidoria da universidade e o caso será encaminhado para processo investigativo.

A universidade afirmou ainda que é reconhecidamente inclusiva, diversa e predominantemente negra, jovem e feminina. "Este novo perfil de comunidade - em que três a cada quatro estudantes de graduação da UFBA são negros e em vulnerabilidade socioeconômica - é o resultado de uma década e meia de ações afirmativas protagonizadas pela instituição, que a norteiam", pontuou.

A instituição destacou que a criação de cotas para pessoas trans, em vagas supranumerárias, é outra ação de inclusão.

"Sendo assim, qualquer forma de assédio é considerada não apenas uma agressão aos que foram vitimados, mas ao próprio espírito da universidade, devendo ser rigorosamente apurados e, uma vez devidamente comprovadas as acusações, punidos conforme as leis do país e os regulamentos da Universidade Federal da Bahia", ressaltou em nota.

A Ufba explicou que denúncias devem ser encaminhadas à direção da unidade ou diretamente à ouvidoria da universidade. As denúncias são apuradas e os processos asseguram o amplo direito de defesa dos acusados e preservam as partes envolvidas até o final do procedimento.

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