Karen Armstrong recebeu a equipe do Milênio em seu apartamento de Londres, às vésperas de embarcar para o Brasil, onde faria palestras em Porto Alegre e São Paulo, a convite da organização Fronteiras do Pensamento. Para quem não compartilha de fé religiosa e ia ao encontro de uma ex-freira, autora de uma dúzia de livros sobre religião, a expectativa era de encontrar uma sisuda senhora de meia-idade, pregando ideias conservadoras e tradicionais. Quem sabe até não iríamos ter de aturar uma carola.
Nada disso. Esbarramos em alguém que embora apóie o lado espiritual e transcendental da experiência religiosa, rejeita e critica muito do que considera tradicional e retrógrado nas várias formas de religião organizada. E nas várias interpretações sectárias de livros sagrados. Sobre o novo Papa argentino, por exemplo, que só iria ao Brasil bem depois, nos contou de bom humor mas também com convicção que Francisco I deveria tirar a sede da Igreja Católica de Roma e transferi-la para Buenos Aires. “Estaria assim mais perto dos pobres que Jesus Cristo apoiava do que dos privilegiados instalados nesta má imitação do Império Romano que é o Vaticano.”
Karen repudia o comportamento dos “ativistas religiosos”, com suas interpretações rígidas e literais de textos na Bíblia, no Corão, no Torá. Considera, por exemplo, “um absurdo” a alegação de extremistas judeus ao tomar terras dos palestinos de que, segundo a Bíblia, Deus presenteou aquelas terras somente aos judeus e, portanto, os árabes não teriam direito a elas, mesmo se suas famílias ali estavam há várias gerações. “A Bíblia não pode ser lida como um documento de posse emitido pela prefeitura”—diz ela. “Sua mensagem é simbólica”.
Karen critica também os evangélicos que lêm a Bíblia como se fosse um relato de historiadores e cientistas, com afirmações sobre a criação do universo em uma semana, de uma vez só, com as formas de vida e geologia que têm até hoje, o que nos obrigaria a aceitar, por exemplo, que o ser humano e os dinossauros viveram na mesma época. “Isso é uma banalidade, que a ciência desmente sem muito esforço – diz ela – “e não leva em conta que as histórias na Bíblia são alegorias, parábolas, para serem lidas pelo seu valor simbólico e não pelo significado literal.”
Mesma coisa para o Corão, lembra ela, criticando os fundamentalistas que extraem trechos isolados que mais lhes convêm no livro sagrado muçulmano, enquanto ignoram outras partes que contradizem as mesmas afirmações, como o tratamento às mulheres ou o uso de violência. “Eles se esquecem também do contexto histórico em que surgiu o texto do Corão, século VII, quando o combate ao Islã foi intenso e seus adeptos tinham de se defender, muitas vezes à força. Aplicar as mesmas recomendações em pleno século XXI não faz o menor sentido”.
Uma das histórias curiosas envolvendo Karen ocorreu quando ela dava uma palestra nos Estados Unidos, pouco tempo depois dos ataques terroristas de 2001, e foi abordada pela polícia. Detetives pediam sua ajuda para decifrar o caso de um jovem local que tinha matado a família e se suicidado. Ao lado do corpo do rapaz, havia um livro escrito por ela, informou a polícia, sem maiores detalhes. No contexto da época, a reação de Karen foi imaginar duas possibilidades de fanatismo religioso associado com atos de violência mais recentes: talvez um extremista cristão de direita lendo uma obra dela sobre a Bíblia ou quem sabe um fundamentalista islâmico que estivesse folheando e distorcendo o que ela escreveu sobre o Islã.
Na verdade, o livro dela que o rapaz lia era sobre budismo, tido como uma religião de paz e tranquilidade, nada a ver com fanatismo. O episódio serviu para ela como mais uma demonstração de que um indivíduo mentalmente desequilibrado pode encontrar justificativa para a violência até em textos religiosos que só pregam paz. Karen Armstrong procura explicar e não converter. A não ser para promover o que chama de regra de ouro da compaixão: tratar os outros como gostaria de ser tratado..
por Silio Boccanera