Lembranças de Aleppo
Nesta semana, excepcionalmente, o texto não será de autoria de Jorge Pontual. Quem assina é Renée Castelo Branco, editora experiente que ficou à frente do programa Sem Fronteiras durante anos e que tem interesse especial pela Síria e pelo Oriente Médio. Abaixo, o programa com Malek Jandali sobre a música e a história do povo sírio:
Fecho os olhos a pedido de Malek Jandali. Ele conversa com o correspondente Jorge Pontual, diante de um piano Steinway. Músico e compositor de família síria, Malek Jandali vai tocar “Ecos de Ugarit”. A música nos remete a 3.400 A.C., baseada no que parece ser a primeira música transcrita para uma partitura, gravada em tablitas encontradas numa antiga cidade síria. Na escuridão, revejo o anfiteatro a céu aberto em plena citadela, em Aleppo. Abdel, um dos guias mais velhos da cidade, me fala do amor dos sírios pela música e dos festivais de jazz que ocorrem ali nos meses da primavera. À noite, à luz das estrelas.
Era inverno, então. Frio, sol ameno num céu luminoso. Na Tunísia, uma outra Primavera, a Árabe, iria em poucos dias derrubar o ditador Ben Ali. Mas lá, o regime parecia tranqüilo, conduzindo um processo de abertura econômica que aos poucos trazia também alguma abertura política. Num sistema tão fechado quando o da Síria, pequenos movimentos repercutem demais. A fronteira com a Turquia acabara de ser aberta para incentivar o comércio. Era janeiro de 2011. Por isto, a população passou também a ter acesso pela TV a cabo, aos canais da TV turca. Até pouco tempo, impensável. Os costumes mais liberais da sociedade vizinha invadiam as casas embalados em novelas e filmes ocidentais. Uma reação imediata muito comentada, então, a nova tendência dos jovens a querer desfazer casamentos.
Havia esperança acompanhada de tensão. A iniciativa privada podia agora atuar no setor financeiro e nas universidades. Capital saudita enriquecia o país. A Síria queria fazer parte de um mercado comum dos países do Oriente Médio, que pretendia em bloco comercializar com a União Européia. Os preços dos combustíveis tinham portanto que ser atualizados para se equiparar ao dos vizinhos. Isso começava a provocar uma carestia. Medidas modernizantes também começavam a provocar desemprego. Além deste combustível para o descontentamento popular aflorar, a corrupção incomodava os sírios. Foi assim, que num protesto contra arbitrariedades de um prefeito local, começou o movimento democrático na Síria, que descambou para a guerra.
Claro que o email e os telefones de sua agência de turismo de um homem só não valiam mais. Procurei por ele no hotel onde tinha me hospedado. O Mandaloun. Um lugar simpático, com um pátio interno, como quase todas as construções na Síria, com pé direito alto, uma fonte e tranqüilidade para um chá. Ninguém sabia dele, talvez tivesse ido para a Turquia. Mas prometeram procurá-lo e finalmente consigo contato com ele. Reproduzo para vocês o que ele me respondeu por email, num inglês muito curioso:
“Bom dia, de Aleppo. Estamos bem, em Aleppo, não 100%, mas estamos vivendo. Em primeiro lugar; nunca diga Primavera Árabe. “Merda delli arabi”. não foi do céu. Primavera, outono, verão, veem do céu. Ok? Mas o que aconteceu na Tunísia, Líbia, Egito e Síria vem do diabo. Vem de satã. Vamos falar da Síria. A Síria era um paraíso. tínhamos o país mais rico e o mais barato. … e agora? A Síria está destruída, a história roubada especialmente no norte em torno de Aleppo. Todos os monumentos foram roubados e levados para a Turquia. Nossas cidades pequenas estão cheias de estrangeiros de todas as partes do mundo. Paquistão, Afeganistão, Europa e outros países. Eles têm barbas muito compridas como as pessoas de 1800 antes de Cristo. São contra todo mundo que não está com eles. Estão ensinando um novo islã. E como matar e como roubar tudo das casas e das mesquitas e das igrejas. dois dias atrás, destruíram parte da sinagoga mais antiga de todo mundo perto de Damasco, na cidadezinha de Jobar. Quebraram todos os ícones, manuscritos e muito mais … A Mesquita Oamayad, em Aleppo. A mesquita Omayad em Aleppo. Os mercados, os hotéis velhos dentro dos mercados. Estamos com muito medo estas pessoas, eles são milhares e milhares vindos das imensas fronteiras abertas com a Turquia e o Líbano e a Jordânia. Abdel”
É assim que Abdel se sente, ao contrário de nosso entrevistado, que não mora na Síria, e está muito mais otimista. É certo que não é assim que pensam os jovens, ávidos por mudança. Abdel é um velho senhor, mas foi por intermédio dele que conheci a música de Malek Jandali.
por Renée Castelo Branco