Clientelismo paquistanês
Como se diz “clientelismo” e “fisiologismo” em urdu? Em pashto? Ou em inglês? Pouco importa a tradução em qualquer desses idiomas usados no Paquistão, pois o que nos chama a atenção naquele país asiático é a versão local da conhecida prática tupiniquim de proteger a família, o clã, os apadrinhados políticos. Conseguir-lhes favores do estado.
Existe lá também o “coronelismo”, aplicado pelos líderes tribais, regionais ou de famílias influentes. Mandam na área mesmo sem ter cargo político formal.
A família Bhutto, por exemplo (Benazir e seu pai Zufikar, ambos mortos, foram presidentes), dominam a região de Sindh há décadas, como os Sarney mandam no Maranhão. Competem por lá com a família Zardari (Asif é o atual presidente). Nada mais conveniente, portanto, do que um casamento para juntar as famílias, como o que uniu Benazir e Asif, para surpresa de muitos que conheceram a mulher liberal, ativa e “liberada” dos tempos em que Benazir estudou na Universidade de Oxford. Ela venceu a forte tradição paquistanesa dos casamentos arranjados pelos pais. Em alguns casos (não foi o dela), os noivos só se conhecem na noite de núpcias.
No Paquistão, como no Brasil, o poder local ainda tem enorme influência. Apesar do impacto da mídia e da urbanização crescente, algumas tradições culturais, históricas e políticas sustentam o exercício de poder no interior. E as regras aplicadas ali não se baseam nas leis herdadas do império britânico após a independência em 1947. Mais frequente é aplicar tradições tribais ou as leis religiosas islâmicas (sharia).
O clientelismo à moda paquistanesa se aplica quando partidos políticos e forças armadas dão prioridade a servir os “seus”. No caso de políticos, isso significa ajudar a família, a tribo, a região ou o distrito que permitiu à pessoa chegar a um cargo com poder. Em troca, espera-se a distribuição de empregos, benefícios e verbas públicas que tragam vantagem para o grupo e, assim, mantenham o apoio político. Se falhar no cumprimento das expectativas, o líder acaba ultrapassado por outro que promete mais favores.
As forças armadas paquistanesas funcionam de forma semelhante, em seu caso levando benefícios não às aldeias de origem de cada oficial, mas privilegiando os militares de forma corporativa, concedendo-lhes terras quando se aposentam ou empregos em estatais.
De certa forma, a prática paquistanesa que choca muitos observadores do Ocidente lembra a chamada “porta giratória” de generais americanos que deixam o Ministério da Defesa para trabalhar na indústria que produz armas para o Pentágono. Na conversa com Anatol Lieven, comentamos que, dois dias antes, os jornais britânicos anunciaram a contratação do ex-ministro da defesa britânico Geoff Hoon (no posto durante a invasão do Iraque em 2003) para dirigir uma fábrica de helicópteros militares.
Não é exatamente a mesma coisa, mas lembrem-se de que Antonio Palocci acabou bombardeado porque aproveitou os contatos adquiridos como ministro da fazenda do governo Lula para benefociar sua consultoria privada, depois de deixar o governo. Não é ilegal, mas não deixa de ser eticamente duvidoso.
Seja no Paquistão, nas Américas ou na Europa, trata-se de uma forma de aproveitar bastidores do poder para conseguir favores pessoais. Durante ou depois de ocupar cargo público. Uma espécie de “Rouba mas Faz” que deixou péssima fama no mundo político de São Paulo.
No caso dos políticos ou líderes civis paquistaneses, acaba sendo uma corrupção custosa para os próprios corruptos, porque quem está por cima é forçado a gastar muito com aqueles sob seu domínio, a fim de se manter lá em cima. Resulta que as diferenças de renda entre ricos e pobres no Paquistão são menores, por exemplo, do que no Brasil. Custa caro ser rico. Lá.
Há exceções, por certo, sobretudo entre os que “passam do ponto” e roubam tanto que provocam espanto. Daí a má fama do atual presidente Asif Zardari que, junto com a ex-mulher Benazir Bhutto (assassinada em 2007) foram acusados formalmente de mega-corrupção, a ponto de comprarem mansões em Dubai e no sul de Londres (esta, ainda em Surrey sob posse da família, tem nove quartos, vale alguns milhões de libras).
Anatol Lieven nos explica que é indispensável conhecer essas tradições para entender o Paquistão que domina as manchetes e parece uma rede de políticos civis sem poder, militares simpáticos ao extremismo e terroristas agindo impunement. Lieven se dedica a esse trabalho de esclarecimento há vinte anos, por meio de contribuições para a mídia britânica, da BBC ao Times e escrevendo livros. Trata não apenas de Paquistão mas também Afeganistão e Chechênia (sua origem familiar é russa).
Lieven se dedica atualmente ao mundo acadêmico, faz palestras pelo mundo e dá aulas no Departamento de Estudos de Guerra do King’s College, de Londres, onde orienta teses de mestrado e doutorado sobre questões de terrorismo, extremismo e segurança internacional.
Seu livro recém-lançado – Pakistan, a Hard Country (Paquistão, um país difícil) – tem sido bem recebido por analistas e especialistas na conturbada região asiática, hoje abalada por terrorismo. Uma ilustração dramática da crise no país foi a morte de Osama Bin Laden, chefe da Al-Qaida, em mãos das forças especiais americanas em ataque secreto a um vilarejo, Abbottabad, a pouca distância da capital, Islamabad, sem avisar ao governo ou às forças armadas do Paquistão.
Levamos a Lieven a especulação de curiosos no mundo inteiro sobre a operação que matou o terrorista internacional mais conhecido: os militares paquistaneses sabiam que Bin Laden estava escondido naquela casa-fortaleza há cinco ou seis anos, a menos de um quilômetro da maior academia militar do país?
– Alguns deviam saber – responde Lieven. Na entrevista, ele discute detalhes.
por Silio Boccanera
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