Um visionário com os pés no chão
“Angels in America” é um obra-prima. Na peça de Tony Kushner, em duas partes (Millennium Approaches e Perestroika, num total de 7 horas) adaptada para o cinema (disponível em DVD) sob a direção de Mike Nichols, com Al Pacino e Meryl Streep, e que continua a ser encenada mundo a fora (no Brasil, em 1995), o teatro de Bertold Brecht e o de Tennessee Williams se casam para gerar algo novo, o que o autor descreve como uma fantasia homossexual sobre temas políticos. Os personagens traem uns aos outros e traem a si mesmos, mas resgatam sua própria humanidade em meio à crise da AIDS.
“Lincoln“, quer ganhe ou não o Oscar, é também uma obra-prima. O diretor Steven Spielberg usou o roteiro de Tony Kushner para criar algo novo, um filme nos melhores padrões do cinema espetáculo de Hollywood, mas com uma abordagem brechtiana, que subverte a mitologia em torno de Abraham Lincoln para revelar a realidade do político que suja as mãos para garantir o fim da escravidão.
Confesso que além de ter Angels in America como uma das peças que me tocaram mais fundo, tenho um amor imenso por Brecht, e me deixa muito feliz ver em Tony Kushner um Brecht do nosso tempo, um artista que olha os dramas do momento com as lentes da História, um visionário com os pés no chão, materialista e dialético. Como é bom saber que esses termos que pareciam tão vitais quando eu era jovem, e que andaram por tanto tempo desacreditados e traídos, estão de volta, revigorados, na obra de um escritor que alcança o grande público e inspira os jovens.
Para entrevistar Tony Kushner reli Angels, revi o filme de Mike Nichols, e li outras peças dele, Homebody/Kabul, Calorine or Change, A Dibbuk, The Intelligent Homosexual’s Guide to Capitalism and Socialism with a Key to the Scriptures, A Bright Room Called Day, e Slavs. Li as excelentes traduções que ele fez de Brecht: Mother Courage (vi a montagem com Meryl Streep) e The Good Person of Szechuan. E vi os documentários Theatre of War e Wrestling with Angels. Li também livros de ensaios e entrevistas de Kushner. E isso foi só uma fração do que ele produziu nos últimos 25 anos, quando se tornou uma presença constante e prolixa no universo intelectual e artístico dos Estados Unidos. Uma entrevista de 23 minutos é muito pouco para refletir sequer um milésimo de tanta criatividade. Mas espero conseguir que quem assistir sinta o mesmo prazer e entusiasmo que eu tive ao trocar idéias com Tony Kushner.
por Jorge Pontual