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Típico do Milênio: saímos atrás de uma ideia e encontramos outras; procuramos um entrevistado e esbarramos em outros, até de programas anteriores.
Foi o caso de nossa ida a Cambridge para entrevistar o professor Richard Evans, diretor do departamento de História da universidade, especialista em Alemanha, sobretudo o período do Terceiro Reich, assunto em que é considerado uma dos maiores autoridades no mundo.
Como o cinegrafista Paulo Pimentel e eu chegamos cedo para nosso encontro com o professor, resolvemos tomar um café no prédio ao lado. Era o departamento de Economia, onde nos deparamos com o cartaz apontando a sala de John Maynard Keynes (1883-1946), considerado um dos maiores economistas de todos os tempos. Keynes defendia políticas econômicas que entram em discussão acalorada no momento, porque envolvem o papel do Estado em época de recessão. Keynes foi tema de um Milênio, em dezembro de 2006, que fizemos em Londres com seu mais dedicado biógrafo (30 anos de pesquisa), Robert Skildesky. Veja aqui:
É inevitável que uma visita a uma universidade do gabarito de Cambridge (sempre na lista das cinco melhores do mundo) desperte lembranças de outras entrevistas do Milênio, pois a área é uma fonte rica de pessoas com ideias, a meta do programa.
Nos lembramos logo de Simon Blackburn (em novembro de 2004), Quentin Skinner (em setembro de 2002) e Christopher Catherwood (em dezembro de 2006), autor do livro ‘A Loucura de Churchill’, sobre a “invenção” do Iraque pelo governo britânico como entidade política separada, na década de 1920, início da trapalhada ocidental na velha Mesopotâmia. Veja abaixo as três entrevistas:
Não muito longe de onde estávamos, outro prédio acomodou como professor e pesquisador um dos maiores gênios da humanidade: Isaac Newton. A cátedra dele, por sinal, foi herdada por outro gênio, desta vez o contemporâneo Stephen Hawking, reconhecido sempre em sua cadeira de rodas. Os assuntos em que eles dois são pioneiros já motivaram Milênios variados, alguns nos Estados Unidos, outros aqui, como o que fizemos, em dezembro de 2003, com o astrônomo-real Martin Rees, formado em Cambridge. Veja aqui:
No prédio onde Newton morou, entrevistamos para o Milênio há vários anos o então diretor do Trinity College, o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen, que nos apontou na sala de sua residência oficial um relógio de parede deixado pelo famoso astrônomo e matemático no século XVII. “O Newton deixou isso aí”, disse-nos então o mestre, em setembro de 2001, como se falasse de um visitante desleixado. Veja aqui:
Mais uma caminhada pelas ruas medievais de Cambridge (a universidade começou no século XIII) e pode-se encontrar o laboratório onde, em 1953, James Watson e James Crick desvendaram a estrutura do DNA, abrindo as portas para avanços extraordinárias em Genética. E um dos mais famosos geneticistas do mundo, Steve Jones, deu entrevista ao Milênio em dezembro 2002. Veja abaixo:
Quem veio estudar Teologia em Cambridge, mas acabou resvalando para a Ciência, foi Charles Darwin, que inspirou programas especiais na Globonews em 2009, e sobre quem conversamos muito em dois Milênios que fizemos com o evolucionista Richard Dawkins em 2009. (Clique e reveja esses programas).
A lista de ex-alunos famosos de Cambridge é longa demais para mencionar, mas só para dar um sabor, aqui vão alguns: Charles Babbage e Alan Turing (computadores), Robert Oppenheimer (bomba atômica), Frank Whittle (motor a jato), Milton Friedman (economista), os filósofos Erasmus, Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein, George Santayana e Karl Popper, os escritores Vladimir Nabokov, Kingsley Amis, JG Ballard, Iris Murdoch, Salman Rushdie, Zadie Smith e Michael Crichton, os atores e diretores Richard Attenborough, Ian McKellen, James Mason, Stephen Fry, Hugh Laurie, John Cleese, Sam Mendes, Stephen Frears e Paul Greengrass.
Cambridge formou ainda 15 primeiros-ministros britânicos (além do vice atual, Nick Clegg), três signatários da Declaração de Independência dos Estados Unidos e – com uma certa ironia – John Harvard, o fundador da concorrente universidade americana.
Certamente haverá brasileiros de renome nesta lista; que se manifestem os mais informados.
Depois deste passeio geográfico e histórico pela universidade, retornamos ao professor Evans, nosso entrevistado do dia. O prestativo zelador da Faculdade de História nos ajuda a carregar o equipamento e, surpreso de receber uma equipe sul-americana, conta-nos um segredo: foi espião britânico na Argentina!
Sua história – que não conferimos em outras fontes e apenas registramos aqui por curiosidade – é de que servia num submarino britânico nos anos 80, submerso no Atlântico Sul, quando chegaram ordens para navegar em direção à Argentina. Tinha começado a crise nas Ilhas Malvinas/Falklands e os militares britânicos precisavam saber mais sobre a capacidade da força área argentina. Nosso Jack Clifton foi desembarcado então em segredo no sul da Argentina (ele diz que não lembra o nome do local), perto de um aeroporto militar.
“Fazia um frio de matar”, nos conta ele, e por isso mesmo os guardas da base argentina estavam abrigados em cabanas, permitindo então a Jack observar os pousos e decolagens, sem ser notado. O espião reportou de volta: “os pilotos são muito bons, de alto nível profissional”. Que valor teve essa informação para a guerra que logo explodiu, Jack não sabe. Acrescenta que se surpreendeu com muita gente da população local falando inglês e logo descobriu que eram descendentes de imigrantes do País de Gales, grupo numeroso que foi para a Argentina no início do século XX. O Milênio não existia na época, mas quem quiser pesquisar arquivos vai descobrir o mesmo repórter – com menos rugas, claro – em cobertura do conflito.
Clifton está quase aposentado e seu trabalho de zelador hoje não tem a emoção de seu tempo na Marinha. Mas ele se dá por contente porque os dois filhos estão na universidade. O mais velho estuda Física Nuclear. Em Cambridge.
fotos: Paulo Pimentel
Na sala de Evans, após o “café do Keynes”, cercado pelos muitos livros que o professor já escreveu sobre Alemanha, nossa conversa rendeu o Milênio agora no ar, esclarecedor sobre um período que ainda desperta tanto interesse pelo mundo. Não ficou claro, talvez, na entrevista, que Evans depôs em 2001 como especialista no julgamento em Londres de David Irving, um pretenso historiador britânico que, ao estilo Ahmadinejad, negava a ocorrência do Holocausto. Evans desqualificou por completo as teorias de Irving, que perdeu a causa na Justiça contra um professora que o tinha acusado de simpatias pró-nazistas.
Após a entrevista, quando já nos despedíamos para voltar a Londres, Evans nos conta de um episódio curioso envolvendo Alemanha e Brasil. Uma leva de prisioneiros, destituídos, mendigos e sem-teto (mulheres e crianças inclusive) foi tirada de abrigos em Mecklenburg-Schwerin e despachados para o Brasil, a fim de servirem no Exército ou como colonos. De 1824 a 25, três navios levaram 271 pessoas. Segundo relato de alguns que voltaram, a experiência não foi das mais felizes, para os dois lados. No livro Notes from the German Underground (Yale University Press), Evans conclui que “não está claro qual governo se saiu pior, o de Mecklenburg ou o do Brasil”.
Como a visita a Cambridge demonstrou, uma história puxa outra, que puxa uma terceira, e assim o Milênio nos carrega, celebrando ideias e não idealizando celebridades.
por Silio Boccanera