Um diplomata da neurociência
Cientistas e leigos brasileiros terão a oportunidade de conhecer Nikolas Rose de perto em outubro, quando ele planeja visitar São Leopoldo e Porto Alegre, a convite de neurocientistas gaúchos, para participar de uma conferência sobre filosofia e bioética.
Vão conhecer então um diplomata da neurociência.
Diplomata não porque fique em cima do muro e seja cauteloso com o que diz. Mas porque Rose tenta encontrar um espaço de diálogo e troca de ideias entre os radicais do estudo do cérebro (aqueles que batem firme: “somos nossos neurônios, ponto final”) e outros especialistas do setor que dão peso considerável a outros aspectos, como as experiências de vida, na formação de nossos estados mentais, nossa maneira de ser.
Verdade que são poucos hoje os adeptos da chamada tabula rasa, que atribuem todos os traços do ser humano ao que ele absorve na sociedade ou natureza via experiências reais, educação, impacto do meio-ambiente, sem creditar características de personalidade e comportamento à herança genética. Mas ainda há um grupo que acha exagerada a tendência de muitos neurocientistas em atribuir traços humanos a nossa estrutura biológica, nossa herança evolutiva como espécie, nosso genes.
Quem tenta acompanhar essa discussão via mídia, conferências, debates acadêmicos, já percebeu que as duas facções brigam feio, com particular fúria entre os próprios neurocientistas. Rose mesmo descartou a diplomacia quando conversávamos em seu escritório no King’s College, em Londres e citei um neurocientista defensor da importância maior da herança genética (“não perco mais tempo lendo Steven Pinker”, reagiu).
Rose rejeita Pinker e tripudia ainda mais os que poderíamos chamar de fundamentalistas da neurociência, entre os quais estão alguns profissionais de renome, como o britânico Francis Crick, um dos descobridores, em 1953, da estrutura do DNA, momento chave na abertura do conhecimento sobre a genética e a natureza humana. Por isso, Crick recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina (junto com o americano John Watson e outro britânico, Maurice Wilkins, este do mesmo King’s College de Rose).
Crick morreu há dez anos e passou os últimos tempos de sua vida dedicado a estudos do cérebro. Um de seus últimos legados foi o controvertido livro The Astonishing Hypothesis (A Hipótese Espantosa), em que defende justamente a tese de que o ser humano é produto da massa gelatinosa de um quilo e meio dentro do crânio. A mente, segundo Crick e outros que endossam suas conclusões, seria apenas a expressão do cérebro, sua personalização. “Somos nosso cérebro”, resumiu Crick.
Para os seguidores dessa linha, o fundamental é conhecer o funcionamento dos 80 a 100 bilhões de neurônios e suas conexões elétricas e químicas que comandam o organismo e, na opinião deles, determinam nosso estado mental. Dão pouca ou nenhuma importância a métodos alternativos de acesso a processos mentais, como a Psicanálise. Expulsam ego, superego e id da discussão, acolhem axônios, dendritos e sinapses. Conceitos como alma ou espírito, então, não colhem mais do que desprezo.
Rose tem um trajetória profissional diferente. Vem das ciências humanas. Escreveu um livro explicando Michel Foucault aos britânicos, admira o psicanalista francês Jacques Lacan. Passou muitos anos em ativismo social e vida acadêmica como sociólogo, até que, em tempos recentes, decidiu pesquisar neurociência. Seguiu em parte os passos de seu irmão mais velho, Stephen, um reconhecido especialista em estudos da memória. Defensor de uma abordagem multidisciplinar da questão, o Rose júnior dirige agora no King’s College um recém-criado Departamento de Ciência Social, Saúde e Medicina.
por Silio Boccanera