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Um diplomata da neurociência

qua, 09/04/14
por Equipe Milênio |
categoria entrevista, Extras

 

 

Cientistas e leigos brasileiros terão a oportunidade de conhecer Nikolas Rose de perto em outubro, quando ele planeja visitar São Leopoldo e Porto Alegre, a convite de neurocientistas gaúchos, para participar de uma conferência sobre filosofia e bioética.

Vão conhecer então um diplomata da neurociência.

Diplomata não porque fique em cima do muro e seja cauteloso com o que diz. Mas porque Rose tenta encontrar um espaço de diálogo e troca de ideias entre os radicais do estudo do cérebro (aqueles que batem firme: “somos nossos neurônios, ponto final”) e outros especialistas do setor que dão peso considerável a outros aspectos, como as experiências de vida, na formação de nossos estados mentais, nossa maneira de ser.

Verdade que são poucos hoje os adeptos da chamada tabula rasa, que atribuem todos os traços do ser humano ao que ele absorve na sociedade ou natureza via experiências reais, educação, impacto do meio-ambiente, sem creditar características de personalidade e comportamento à herança genética. Mas ainda há um grupo que acha exagerada a tendência de muitos neurocientistas em atribuir traços humanos a nossa estrutura biológica, nossa herança evolutiva como espécie, nosso genes.

Quem tenta acompanhar essa discussão via mídia, conferências, debates acadêmicos, já percebeu que as duas facções brigam feio, com particular fúria entre os próprios neurocientistas. Rose mesmo descartou a diplomacia quando conversávamos em seu escritório no King’s College, em Londres e citei um neurocientista defensor da importância maior da herança genética (“não perco mais tempo lendo Steven Pinker”, reagiu).

Rose rejeita Pinker e tripudia ainda mais os que poderíamos chamar de fundamentalistas da neurociência, entre os quais estão alguns profissionais de renome, como o britânico Francis Crick, um dos descobridores, em 1953, da estrutura do DNA, momento chave na abertura do conhecimento sobre a genética e a natureza humana. Por isso, Crick recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina (junto com o americano John Watson e outro britânico, Maurice Wilkins, este do mesmo King’s College de Rose).

Crick morreu há dez anos e passou os últimos tempos de sua vida dedicado a estudos do cérebro. Um de seus últimos legados foi o controvertido livro The Astonishing Hypothesis (A Hipótese Espantosa), em que defende justamente a tese de que o ser humano é produto da massa gelatinosa de um quilo e meio dentro do crânio. A mente, segundo Crick e outros que endossam suas conclusões, seria apenas a expressão do cérebro, sua personalização. “Somos nosso cérebro”, resumiu Crick.

Para os seguidores dessa linha, o fundamental é conhecer o funcionamento dos 80 a 100 bilhões de neurônios e suas conexões elétricas e químicas que comandam o organismo e, na opinião deles, determinam nosso estado mental. Dão pouca ou nenhuma importância a métodos alternativos de acesso a processos mentais, como a Psicanálise. Expulsam ego, superego e id da discussão, acolhem axônios, dendritos e sinapses. Conceitos como alma ou espírito, então, não colhem mais do que desprezo.

Rose tem um trajetória profissional diferente. Vem das ciências humanas. Escreveu um livro explicando Michel Foucault aos britânicos, admira o psicanalista francês Jacques Lacan. Passou muitos anos em ativismo social e vida acadêmica como sociólogo, até que, em tempos recentes, decidiu pesquisar neurociência. Seguiu em parte os passos de seu irmão mais velho, Stephen, um reconhecido especialista em estudos da memória. Defensor de uma abordagem multidisciplinar da questão, o Rose júnior dirige agora no King’s College um recém-criado Departamento de Ciência Social, Saúde e Medicina.

por Silio Boccanera

O lado humano do vício

qui, 27/02/14
por rodrigo.bodstein |
categoria debate, Extras, Programas

 

O neuropsiquiatra norteamericano Carl Hart defendeu, em entrevista ao Milênio, a importância de se considerar a dimensão humana do vício e uma transformação na política contra as drogas: descriminalizar sem legalizar.

A razão que leva ao vício é uma questão que ainda não foi completamente explorada. Há um gene escondido em algum trecho do nosso DNA que indica que nos renderemos às drogas? É o contexto social ou a condição psicológica? Independente da resposta, as drogas estão presentes na sociedade e são parte da vida de milhares de pessoas direta ou indiretamente. É um tema que afeta a saúde, a segurança pública e, até mesmo, a política externa dos países.

A proposta da legalização ganhou força nos últimos meses, muito por causa do debate sobre a maconha, mas o assunto acompanha a política desde o início do século. Os Estados Unidos enfrentaram esse desafio com a proibição do álcool na década de 1920. As gangues tomaram conta do pais, a corrupção aumentou e os custos da proibição foram sentidos naquela sociedade. Pouco mais de uma década depois, a lei foi revogada. A máfia se enfraqueceu, a violência foi reduzida, mas continuaram os problemas de abuso e dos efeitos adversos que o consumo do álcool produzem.

Carl Hart, neuropsiquiatra, lembra, em entrevista a Jorge Pontual para o Milênio, que “a relação entre drogas, violência e crime sempre serviu a um objetivo político maior.” Enquanto o álcool foi uma decisão de política doméstica dos Estados Unidos, o ópio, desde o início, foi uma questão internacional. No século XIX, o ópio trazido da Índia pela Companhia Britânica das Índias Orientais começou a ameaçar a economia e a estabilidade do império chinês. O volume de importação estava tão grande que, em 1839, o Imperador determinou o fim do comércio. O Reino Unido não demorou a decretar guerra e duas Guerras do Ópio se seguiram, terminando em 1860. 15 anos depois, os Estados Unidos começaram a ter um problema com a droga. Uma lei surgiu para proibir o fumo do ópio, mas foi dirigida especialmente para os chineses que moravam no país. No início do século XX, ligaram a cocaína aos negros, que ao consumirem a substância supostamente estrupariam as mulheres brancas. Nesse meio-tempo, como Carl Hart cita na entrevista, começou um embargo informal de comerciantes chineses aos produtos norteamericanos. Em uma tentativa de responder a essa questão, os Estados Unidos buscaram realizar um tratado internacional, a Convenção Internacional do Ópio, mas precisavam ter uma lei interna que reforçasse a iniciativa. A conexão entre entorpecentes e crimes hediondos foi feita e foram lançadas as bases para a atual guerra contra as drogas.

Nesse sentido, uma pergunta feita por Inge Fryklund, ex-promotora de Chicago que trabalhou no Afeganistão, no Iraque, na Cisjordânia, no Tadjiquistão e no Kosovo, em artigo para a publicação Foreign Policy in Focus, torna-se essencial: “Qual é o problema que estamos tentando resolver ao tornarmos as drogas ilegais?” e, ainda nesse contexto, o dinheiro que está financiando guerras ao redor do mundo está diminuindo efetivamente o consumo?

As questões ainda estão em aberto, mas, para haver um debate mais profundo sobre o tema, é necessário ir além da polarização entre legalizar ou não. Carl Hart faz uma contribuição importante ao trazer a dimensão humana do vício. O neuropsiquiatra defende que há muitos níveis na relação que as pessoas têm com as drogas – incluindo as possíveis psicopatias presentes já antes do consumo – e coloca uma outra opção na mesa: descriminalizar as drogas sem legalizá-las. Isso significa que a venda continuaria proibida, mas quem estivesse em posse de entorpecentes – o usuário – poderia ser encaminhado para algum tipo de ajuda ou orientação em vez de ser fichado criminalmente, aumentando as possibilidades destas pessoas contribuírem para a sociedade em que vivem.

por Rodrigo Bodstein

 

 

 

 

 

Uma história de luta pelo direito e pela liberdade das mulheres

qua, 08/01/14
por Equipe Milênio |

 

 

 

Quando foi marcada a entrevista com Zainab Salbi, ela insistiu que fosse no escritório dela em Manhattan em vez do estúdio que usamos com mais frequência. Fica a cinco minutos da minha casa, frequentamos os mesmos restaurantes e vamos à mesma feira no sábado mas nunca havíamos nos encontrado antes. O escritório eh fica num loft bem iluminado com com moveis práticos e poucos quadro. Tem apenas um assistente.

Antes da entrevista ela contou que a primeira viagem no “jato do papai”,como se referia a um 747, um dos primeiros entregues pela Boeing, foi ao Rio de Janeiro. Ficaram hospedados em Copacabana. Tinha uns 11 anos e ficou deslumbrada com a cidade. Isto foi antes do pai se tornar o piloto particular de Saddam Hussein quando a vida da tomou um novo rumo com frequentes visitas e fins de semanas nos palácios do ditador.

Zainab era bonita. Contra a vontade da família, em especial da mãe e das tias, decidiu se casar com o primeiro namorado que conheceu na faculdade. Vinha de família pobre com tradições tribais. Noivaram mas ela rompeu pouco antes do casamento quando percebeu o autoritarismo do futuro marido.

Preocupada com a proximidade de Saddam e dos filhos incontroláveis, a mãe arranjou um casamento com um homem mais velho , rico , de boa família em Chicago. O baú era furado e o senhor de boa família estuprou Zainab pouco depois do casamento. Fez as malas e, sem dinheiro, foi para Washington onde conheceu o terceiro homem de sua vida, um palestino. Foi bom enquanto durou, diz Zainab, que ainda tem boas relações com ele mas não tem filhos.

Um dia, depois de ouvir pela televisão relatos de estupros em massa na Bósnia e na Croácia, ela resolveu fundar uma ONG, Women for Women, para ajudar mulheres vítimas de conflitos. No primeiro ano, tinha 31 mulheres na lista. Hoje, a ONG já distribuiu US$ 102 milhões para 370 mil mulheres em vários países. Zainab foi homenageada pelo presidente Bill Clinton na Casa Branca, e a Women for Women foi reconhecida como uma das organizações mais influentes no socorro de vítimas de abusos em conflitos. Zainab se demitiu da direção para escrever e fazer conferências.

Contei a ela que os números sobre estupros no Brasil tinham acabado de sair e deram um salto, mas os números e o Brasil não estão no radar dela. Hoje, trabalha só com mulheres do Oriente Médio, onde as estatísticas de estupros e abusos sexuais são pouco confiáveis. Mulheres abusadas são ensinadas a se envergonhar de si mesmas e uma denúncia na polícia pode comprometer a honra da família. Nas regiões tribais, pais e irmãos ainda apedrejam filhas violentadas.

Os números sobre estupros são estuprados. Em algumas estatísticas, a Suécia é líder de estupros. As explicações são os imigrantes e os rígidos critérios suecos de definir estupros. O Brasil, com 26,9 estupros por 100 mil habitantes, tem o dobro de estupros do que o México. A pacífica Costa Rica, com 34 por 100 mil, é a campeã de estupros da América Latina. Roraima tem 52 por 100 mil, mas os números no Brasil são pouco confiáveis. O país está dividido em quatro regiões, de 1 a 4. As estatísticas da região 1 são as melhores, as da 4, as piores. Quanto mais pobre, maior a mentira das estatísticas. Nesta violência, a verdade não está nos números e Zainab não trabalha com estatísticas. Nos livros, ela conta histórias de poucas vítimas com fotos que apunhalam.

 

por Lucas Mendes

Um gigante à deriva

sex, 08/11/13
por Equipe Milênio |

 

 

Desde a guerra do Vietnã, o Pentágono tem um recorde perfeito nas previsões sobre qual seria a próxima guerra americana em seis meses ou um ano: errou todas. A citação está no livro Foreign Policy Begins at Home (“Política Externa Começa em Casa”), recém-lançado, do veterano diplomata e influente presidente do Council of Foreign Relations, Richard Haass. Com 92 anos e 5 mil afiliados de peso, o Council é o mais influente think tank americano na politica externa. Entre várias atividades, publica a revista bimensal Foreign Affairs, que acaba de comemorar 50 anos. Quando o Council aconselha, nem sempre é obedecido, mas seus conselhos sempre chegam aos ouvidos de quem decide.

Richard Haass aconselhou quatro presidentes: Jimmy Carter, Ronald Reagan, Bush pai e Bush filho. Escreveu ou editou 12 livros. Neste último, ele se aventura casa adentro numa trilha diferente e independente. Haass escreve que há dez anos a política externa americana esta à deriva. As guerras do Iraque e do Afeganistão diminuíram a liderança e o prestígio dos Estados Unidos. Hora de cair fora e repensar.

Oriente Médio? Consome mais diplomacia, tempo e dólares do que merece. O país deve concentrar suas atenções na região Ásia/Pacífico e no Ocidente. China, Japão e a vizinhança ocidental são as principais peças no tabuleiro de Haass. A Europa é previsível. “Para ele, a América Latina não tem importância, nem a Venezuela.”

América Latina? “Vai muito bem”, me disse ele durante uma entrevista nesta semana no Council. Não merece nem um capítulo no livro. Sobre o Brasil, há quatro referências irrelevantes. A Venezuela merece quatro citações curtas. Cuba nenhuma. Para um homem que passou anos com o presidente Reagan resolvendo problemas na Nicarágua, El Salvador e Honduras e crises menores na América Central, tudo lá foi bem resolvido, e se não foi, dane-se. Não tem importância. Nem a Venezuela.

Na política externa, os Estados Unidos devem pensar no mundo inteiro, focar em poucas regiões e só colocar botas no chão onde há interesses vitais em jogo. Síria? Iraque? Afeganistão? Países da Primavera Árabe? Não são vitais. Israel é vital.
Um Irã nuclear, um Paquistão em decomposição, uma Coreia do Norte destramelada? Problemões. Soluções? Só milagrosas. Estão fora do alcance americano. Entrar com armas e soldados? Negativo. Terrorismo? Vai estar conosco durante décadas, mas não em grande escala, como os ataques às torres.

A segunda parte do livro e a proposta do título dominaram a segunda parte da conversa. Para Haass, o mundo quer e depende da liderança americana, mas os Estados Unidos precisam colocar a casa em ordem. Segundo o que chama de “Doutrina da Restauração”, Haass acha que os americanos devem resolver cinco problemas domésticos essenciais: deficit, energia, educação, infraestrutura e imigração.

Perguntei a ele se a palavra “restauração” foi inspirada na Restauração Britânica, que trouxe a monarquia de volta à Grã-Bretanha no século 17. Ele achou graça, mas a Restauração Britânica é considerada um milagre e o que ele propõe para Washington não exige apenas um. Exige vários: aumentar e criar novos impostos, reduzir pensões, programas de assistências social e de saúde.
A conversa enrola. Vamos terminar com o Brasil. Porque não merece nenhuma referência importante no livro? Em parte porque vai bem, mas, diz ele, não tão bem como antes.

“O Brasil era o encanto dos emergentes. Nos últimos dois, três anos, perdeu muitas atrações.” Ele fala da desilusão dele e de um grupo de americanos numa viagem recente. Os superpoderes do Executivo assombraram Haass e a turma dele. Manda em tudo, intimida o investidor. A impressão da paisagem não foi melhor. O aeroporto do Galeão também assombrou pelo desconforto e decadência. Ele acha que a Copa e a Olimpíada podem diminuir ainda mais as atrações brasileiras.

Para Haass, o México é o novo Brasil. As novas atrações do vizinho pareciam irresistíveis: um novo e jovem presidente, abertura política, menos governo central, menos poderes das oligarquias, menos corrupção, reforma disto e daquilo. Promessa de crescimento a 4,5, 5% ao ano. Promessas.

No primeiro trimestre deste ano, o México cresceu 0,8%. O Brasil cresceu 0,6%. Os números confirmam: o México é o novo Brasil. Neste e noutros índices, estamos quase gêmeos, vamos de mal a pior. O próximo livro de Richard Haass merece um capítulo sobre a América Latina. Antes que ela vá para o brejo.

por Lucas Mendes

Uma ponte entre as religiões

qua, 31/07/13
por Equipe Milênio |

 

 

Karen Armstrong recebeu a equipe do Milênio em seu apartamento de Londres, às vésperas de embarcar para o Brasil, onde faria palestras em Porto Alegre e São Paulo, a convite da organização Fronteiras do Pensamento. Para quem não compartilha de fé religiosa e ia ao encontro de uma ex-freira, autora de uma dúzia de livros sobre religião, a expectativa era de encontrar uma sisuda senhora de meia-idade, pregando ideias conservadoras e tradicionais. Quem sabe até não iríamos ter de aturar uma carola.

Nada disso. Esbarramos em alguém que embora apóie o lado espiritual e transcendental da experiência religiosa, rejeita e critica muito do que considera tradicional e retrógrado nas várias formas de religião organizada. E nas várias interpretações sectárias de livros sagrados. Sobre o novo Papa argentino, por exemplo, que só iria ao Brasil bem depois, nos contou de bom humor mas também com convicção que Francisco I deveria tirar a sede da Igreja Católica de Roma e transferi-la para Buenos Aires. “Estaria assim mais perto dos pobres que Jesus Cristo apoiava do que dos privilegiados instalados nesta má imitação do Império Romano que é o Vaticano.”

Karen repudia o comportamento dos “ativistas religiosos”, com suas interpretações rígidas e literais de textos na Bíblia, no Corão, no Torá. Considera, por exemplo, “um absurdo” a alegação de extremistas judeus ao tomar terras dos palestinos de que, segundo a Bíblia, Deus presenteou aquelas terras somente aos judeus e, portanto, os árabes não teriam direito a elas, mesmo se suas famílias ali estavam há várias gerações. “A Bíblia não pode ser lida como um documento de posse emitido pela prefeitura”—diz ela. “Sua mensagem é simbólica”.

Karen critica também os evangélicos que lêm a Bíblia como se fosse um relato de historiadores e cientistas, com afirmações sobre a criação do universo em uma semana, de uma vez só, com as formas de vida e geologia que têm até hoje, o que nos obrigaria a aceitar, por exemplo, que o ser humano e os dinossauros viveram na mesma época. “Isso é uma banalidade, que a ciência desmente sem muito esforço – diz ela – “e não leva em conta que as histórias na Bíblia são alegorias, parábolas, para serem lidas pelo seu valor simbólico e não pelo significado literal.”

Mesma coisa para o Corão, lembra ela, criticando os fundamentalistas que extraem trechos isolados que mais lhes convêm no livro sagrado muçulmano, enquanto ignoram outras partes que contradizem as mesmas afirmações, como o tratamento às mulheres ou o uso de violência. “Eles se esquecem também do contexto histórico em que surgiu o texto do Corão, século VII, quando o combate ao Islã foi intenso e seus adeptos tinham de se defender, muitas vezes à força. Aplicar as mesmas recomendações em pleno século XXI não faz o menor sentido”.

Uma das histórias curiosas envolvendo Karen ocorreu quando ela dava uma palestra nos Estados Unidos, pouco tempo depois dos ataques terroristas de 2001, e foi abordada pela polícia. Detetives pediam sua ajuda para decifrar o caso de um jovem local que tinha matado a família e se suicidado. Ao lado do corpo do rapaz, havia um livro escrito por ela, informou a polícia, sem maiores detalhes.  No contexto da época, a reação de Karen foi imaginar duas possibilidades de fanatismo religioso associado com atos de violência mais recentes: talvez um extremista cristão de direita lendo uma obra dela sobre a Bíblia ou quem sabe um fundamentalista islâmico que estivesse folheando e distorcendo o que ela escreveu sobre o Islã.

Na verdade, o livro dela que o rapaz lia era sobre budismo, tido como uma religião de paz e tranquilidade, nada a ver com fanatismo. O episódio serviu para ela como mais uma demonstração de que um indivíduo mentalmente desequilibrado pode encontrar justificativa para a violência até em textos religiosos que só pregam paz. Karen Armstrong procura explicar e não converter. A não ser para promover o que chama de regra de ouro da compaixão: tratar os outros como gostaria de ser tratado..

por Silio Boccanera

O local e a globalização

qui, 25/04/13
por Equipe Milênio |

 

Quando Saskia Sassen nasceu, num janeiro provavelmente gelado de 1949, na cidade holandesa de Haia, conceitos como “globalização” e “cidades globais” ainda não faziam parte do vocabulário corrente das ciências sociais. Mas, para aquela “baby boomer”, que se mudaria ainda criança para a Argentina e mais tarde se radicaria em Nova York, o mundo, literalmente, viria a se tornar algo menor e com fronteiras mais fluidas.

Saskia é uma personagem da dimensão global que a existência tomou e também uma especialista no assunto. Mas não se comporta como autoridade no que quer que seja. Antes de gravarmos, me convidou para um café. Queria saber do que falaríamos. Simpática, comentou sobre a oportunidade que entrevistas “in depth” (aprofundadas), a exemplo do Milênio, representam para pesquisadores (como ela) exporem suas ideias.

Na gravação propriamente dita, a prosa fluiu – e não fosse o fato de ela ter outros compromissos em seguida e um “jet lag” na bagagem (havia chegado dos EUA naquela manhã; o tal café tinha sido a primeira “refeição” em solo brasileiro), talvez tivéssemos registrado horas de conversa (dando ainda mais trabalho que o habitual ao editor do programa, Rodrigo Bodstein).

Casada com o também sociólogo Richard Sennet, Saskia faz parte da chamada intelligenzia. Confesso que fiquei imaginando o nível dos diálogos entre o casal e seus pares, na cena nova-iorquina. E deu vontade de testemunhar, num ambiente sem os salamaleques do meio acadêmico, a construção das ideias contemporâneas. Talvez de forma tão natural quanto durante nosso cafezinho.

por Leila Sterenberg

A fornalha Lincoln

qua, 23/01/13
por Equipe Milênio |

Passei uma tarde com um homem que passou a vida com Abraham Lincoln. Harold Holzer tinha 11 anos quando o professor escreveu e colocou vários nomes de líderes históricos num chapéu. Cada aluno tirava um papel. Holzer tirou Lincoln. Tema de redação. Cinquenta anos depois, está no 44º livro, como autor ou editor. Mais de 500 ensaios e milhares de consultorias. Desde 2009, no bicentenário de Lincoln, ele vive num interminável circuito “lincolniano” de palestras e entrevistas.

Holzer foi consultor do filme Lincoln, de Steven Spielberg, sério candidato a Oscar, que estreará no Brasil nos próximos dias. Mais uma baforada na fogueira cultural do presidente assassinado em 1865, numa sexta-feira santa, pouco depois de ser reeleito para o segundo mandato e cinco dias depois do fim da Guerra Civil americana.

Lincoln, o presidente dos presidentes, é uma fornalha no mundo editorial. O nome dele no título vende mais do que o de John Kennedy, o segundo presidente campeão de vendas desde a década de 60. Há 16 mil livros sobre Lincoln, 6 mil biografias. George Washington, pai da pátria, mereceu 3 mil biografias. Segundão. Só no ano do bicentenário foram publicadas 249 biografias de Lincoln e Harold Holzer, que era o coordenador de eventos literários, achou que a fogueira dele viraria um braseirinho. O trabalho mais monumental, publicado em 2009, foi a antologia de mil páginas editada por Holzer com 110 textos de 95 autores. Até Karl Marx tinha opinião sobre Lincoln. Falou bem do capitalista republicano e democrata.

Mas o fogo Lincoln não diminuiu, contou Holzer. Uma das biografias, Killing Lincoln, de Bill O’Reilly, apresentador da rede Fox, no ano passado vendeu 2 milhões de exemplares. O livro de Doris Kerns Goodwill, Team Of Rivals, que serviu de base para o roteiro (do filme Lincoln) de Tony Kushner, foi lançado em 2005, vendeu 1,5 milhão de exemplares. Quando o filme foi lançado, o livro voltou ao 5º lugar na lista dos best-sellers.

Holzer acha que o fenômeno Lincoln está, em parte, “ligado à Guerra Civil e estamos em pleno aniversário de 150 anos“. “Durou de 1861 a 1865. Há milhares de americanos fanáticos sobre o assunto. O tema vende e com o nome de Lincoln no título as vendas multiplicam.” Há uma foto impressionante dos livros sobre Lincoln feita no The Ford’s Theater For Education and Leadership, em Washington. Criaram uma coluna com de mais de um metro quadrado que sobe três andares com os livros sobre o presidente.

E quantos falam mal de Lincoln? “A minoria, mas algumas críticas são fortes e têm credibilidade. Lincoln suspendeu ‘habeas corpus’ e deu ordens que, num país obcecado com a Constituição, pareciam ditatoriais. Uma outra crítica relevante é referente à falta de planejamento sobre o que fazer com os escravos depois da libertação. A solução de Lincoln era recrutar todos os homens para o Exército, mas eram milhares, um número impossível de ser treinado, vestido e alimentado. Muitos lutaram e, contrariando as críticas de militares brancos, de que os negros tinham medo da guerra, lutaram com garra e morreram em percentagens mais altas que os brancos. Um número muito maior, inclusive mulheres e crianças, morreu de doenças e fome”.

Há Lincolns fortes e fracos, há o Lincoln gay do livro The Intimate World of Abraham Lincoln, de C. A. Tripp. Na época, condenado por muitos como um insulto, mas Holzer acha que é “uma declaração de amor, uma tese interessante, mas sem fundamentos sólidos”. Há o Lincoln preguiçoso, desorganizado e incompetente de William Herndon, sócio do presidente durante 17 anos no escritório de advocacia. “Foi baseado em depoimentos que Herndon colheu de centenas de pessoas que conheceram Lincoln e é levado a sério por alguns dos maiores especialistas no 16º presidente, entre eles Douglas Wilson e Rodney Davis”. Há o Lincoln do romance de Gore Vidal, “errático, com permanente prisão de ventre, egomaníaco, que gerou uma minissérie na televisão com enorme audiência”. Eu discordo de quase tudo e tivemos brigas via imprensa e palestras, mas tudo isto só reforça o interesse por Lincoln”. Para Holzer, ótimo.

Há o Lincoln Obama. As semelhanças e conexões são fortes. Dois políticos de Illinois, não nascidos no Estado, com origens humildes e que chegaram a Presidência. Lincoln nasceu num mato, mudou para outro mato, perdeu a mãe cedo, tinha um pai que não acreditava em educação e, se não fosse pela madrasta, talvez nem aprendesse a ler. A educação formal dele foi quase nula, mas se educou à noite, à luz de vela. De dia, trabalhava com o pai no campo. Detestava. A única experiência como politico, antes de chegar à Presidência, foi como deputado estadual. Qual era a força dentro dele que despertou e impulsionou esta determinação que o levou à Presidência? Vários presidentes saíram do nada, como ele, mas quantos transformaram o país?

Lincoln e Obama assumiram o poder com um país profundamente dividido. No país de Obama, não há possibilidade de guerra civil, diz Holzer, mas “a imobilidade política é pior do que no Congresso de Lincoln, onde houve brigas físicas, com sangue e ossos quebrados entre deputados no plenário, mas conseguiam legislar. Hoje não”. Há também grandes diferenças. A excelente educação universitária de Obama é uma delas. A outra é óbvia. A cor. Holzer acha que Obama marca a complementação do “trabalho não terminado” da democracia americana, à qual Lincoln se referiu no discurso de Gettysburg, cemitério e cenário de uma das batalhas mais brutais e decisivas da Guerra Civil.

O filme de Spielberg joga luz num período essencial na vida de Lincoln, os cinco meses que marcam a luta pela passagem, na Câmara, da emenda que libertou os escravos e o fim da Guerra Civil. Holzer: “O filme ilumina, mas não revela quem foi o verdadeiro Lincoln. Os 16 mil livros, inclusive os meus 44, as 6 mil biografias e os filmes vão gerar outros livros e outros filmes, vão aumentar ou diminuir o presidente, mas não vão desvendar o homem”.

 

por Lucas Mendes

 

 

Grande estudo sobre o Nazismo e a 2a. GM

qua, 05/12/12
por Equipe Milênio |

 

O Milênio entrou em reprise para preparar programas mais especiais para a próxima temporada. Nessa semana, voltamos a exibir a entrevista com um dos estudiosos mais respeitados sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial.

Richard Evans dirige o departamento de História da Universidade de Cambridge, onde recebeu o Milênio, no ano passado, para uma conversa esclarecedora sobre aquele período sombrio da história alemã.
Depois da entrevista, o historiador nos contou de um episódio curioso envolvendo a Alemanha e o Brasil no século XIX.
Uma leva de prisioneiros, destituídos, mendigos e sem-teto (mulheres e crianças inclusive) foi tirada de abrigos em Mecklenburg-Schwerin e despachados para o Brasil, a fim de servirem no Exército ou como colonos. De 1824 a 25, três navios levaram 271 pessoas.
Segundo relato de alguns que voltaram, a experiência não foi das mais felizes, para os dois lados.

No livro Notes from the German Underground (Yale University Press), Evans conclui que “não está claro qual governo se saiu pior, o de Mecklenburg ou o do Brasil”.

por Silio Boccanera

Ideias que se movem pelo mundo

qua, 15/08/12
por Equipe Milênio |

 

 

Quando procuramos o sociólogo britânico John Urry para uma entrevista ao Milênio, a resposta dele aceitando nosso pedido não veio de Lancaster, norte da Inglaterra, onde mora e dá aulas na universidade local. Passava por Santiago do Chile, a caminho do Rio de Janeiro.

Amostra perfeita da vida peripatética de Urry levando suas ideias pelo mundo, a convite de centros de estudo ou organizações interessadas em conhecer mais de perto o que ele divulga numa vasta produção de papers e livros, traduzidos em vários idiomas.

Quase fui ao Rio encontrá-lo para a entrevista, mas acabei bloqueado pela falta de lugar em vôo que me trouxesse de volta a Londres a tempo de outras entrevistas já marcadas. Como atestam outros que também participam dessa missão cansativa mas enriquecedora, o Milênio não dá sossego na busca de pessoas interessantes que possam compartilhar ideias com o público da Globonews.

Sabemos que você que nos lê aqui ou vê/ouve no ar tende a se interessar mais pelo que o entrevistado tem a dizer do que pela mais recente namorada que conquistou ou a roupa que usa.
Nisso se baseia o Milênio.

por Silio Boccanera

Um sonho real

qua, 08/08/12
por Equipe Milênio |

 

 

Há muito tempo eu queria entrevistar Sylvia Earle, desde que vi o célebre video da palestra que ela deu em 2009 na série TED sobre os oceanos, e que me deixou empolgado. Sylvia ganhou o prêmio anual da organização TED, que escolhe todo ano uma personalidade para dizer ao mundo qual é o seu sonho. O dela: ainda é possível salvar os oceanos.

Finalmente o meu sonho de entrevistá-la para o Milêniuo se realizou, e fui encontrá-la em Oakland, na baía de San Francisco, onde funciona, num enorme galpão, a empresa dela, DOER, Deep Ocean Exploration and Research.

Lá fui recebido por Liz Taylor, não a atriz famosa, claro, mas uma bela jovem de longos cabelos ruivos encaracolados, que satisfez todos os meus caprichos e providenciou uma turma de funcionários para levar até o cais o minisubmarino de Sylvia, pra servir de fundo para a entrevista. Uma operação complicada. Enquanto esperávamos a chegada da aterafadíssima oceanógrafa, que acabava de chegar de uma expedição à Antártica e estava prestes a partir para uma conferência ambiental em Manaus, perguntei a Liz há quanto tempo ela estava com Sylvia. “Desde que eu nasci”, ela respondeu. Oooooops! Eu não sabia que a jovem presidente da DOER é a filha de Sylvia Earle. Tudo em casa.

A DOER é na verdade um mini-estaleiro que fabrica minisubmarinos de pesquisa. E depois da entrevista – ainda mais empolgante do que eu esperava – Sylvia me levou lá dentro para ver o protótipo de seu novo aparelho, no qual ela descerá ao fundo do mar quando já tiver 80 anos (está quase lá). Por enquanto é só uma esfera de acrílico, suspensa no ar, com uma abertura embaixo. Sylvia se enfiou dentro da bola e me convidou. Me arrisquei a pagar um tremendo mico mas consegui entrar – claro que não tão ágil quanto ela.

Realizei meu sonho de trazer para o público brasileiro essa mulher extraordinária, sábia, valente, apaixonada pelo que faz, e com uma mensagem de esperança e ação inigualável. Valeu a espera.

 

por Jorge Pontual

 



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