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Capitalismo e Desigualdade

qua, 11/06/14
por Equipe Milênio |

 

No romance Le Père Goriot, uma das obras-primas de Balzac, o personagem Vautrin, um criminoso cínico, tenta convencer o jovem Rastignac a se casar com a feiosa Victorine, moradora da pensão onde os dois vivem. Vautrin se propõe a matar o irmão de Victorine, para que ela herde a enorme fortuna do pai. O casamento com uma herdeira, diz Vautrin, seria a única maneira de Rastignac subir na vida, numa sociedade (há 200 anos) totalmente corrompida pela alta concentração da riqueza. Na fala de Vautrin, Balzac detalha os valores em dinheiro que Rastignac ganharia se optasse pelo estudo do Direito e uma carreira de advogado, juiz ou procurador, e a renda que teria imediatamente, muitas vezes maior, se se casasse com a herdeira.

Na juventude, o francês Thomas Piketty, nascido em 1971 numa família modesta de Paris (os pais, trotskistas, eram veteranos da revolução de Maio de 1968), se apaixonou pelos romances da Comédia Humana de Balzac e, especialmente, pelo “dilema de Rastignac”. Doutor em economia pela melhor escola superior da França, a École Normale Supérieure, dedicou-se a estudar a distribuição da riqueza ao longo da História moderna. Em 2001, publicou um estudo detalhado da concentração da renda e do capital na França, desde o século XVIII. Graças à Revolução de 1789, que criou a obrigatoriedade do cadastro das propriedades, a França é o país com o mais completo banco de dados sobre a riqueza. Desde então, Piketty, que em 2006 fundou a Escola de Economia de Paris, se juntou ao eminente economista britânico Sir Tony Atkinson, a outro francês, Emmanuel Saez, radicado nos Estados Unidos, ao argentino Facundo Alvaredo e a dezenas de outros economistas de vários países, para criar o website World Top Income Distribution, que coleta e publica todas as séries de dados sobre renda e patrimônio em mais de 20 países.

Para responder à pergunta de como Rastignac resolveria o dilema colocado por Vautrin (estudar ou se casar com uma herdeira, para vencer na vida), em cada fase da história do capitalismo ao longo dos últimos séculos, Piketty partiu para a construção da obra de 1 mil páginas (na edição francesa) que ganharia o título Capital no Século XXI. Além de Balzac, ele usa os romances de Jane Austen, os filmes Titanic e Aristogatas, e outras referências culturais para pintar o quadro mais completo possível de como a distribuição da riqueza estruturou a sociedade na França, na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Suécia e outros países.

Para encontrar sentido na enorme massa de estatísticas reunidas pelo grupo do WTID, Piketty trabalha com equações simples, que ele ajuda o leitor a entender, e uma série de tabelas e gráficos que dão uma visão muito clara da ordem de grandeza da distribuição por faixas de renda e de patrimônio (as duas hierarquias, a da renda proveniente do trabalho, e a do patrimônio acumulado, são analisadas em separado ao longo do livro, e por fim reunidas numa síntese do quadro de desigualdade de riqueza).

Ele constata que a acumulação da riqueza cresce em função da diferença entre a taxa de rendimento anual do capital (historicamente em torno de 4 ou 5%) e a taxa de crescimento anual da economia. A concentração do capital chegou a níveis extremos na Belle Époque, os anos anteriores à Primeira Guerra Mundial. O período das duas guerras mundiais destruiu o capital acumulado e a desigualdade caiu drasticamente. Em seguida, o forte crescimento da economia no que os franceses chamam de Les Trente Glorieuses, os 30 anos de 1950 a 1980, levou ao surgimento de uma vasta classe média, reduzindo ainda mais a desigualdade. Mas desde a revolução conservadora de Thatcher e Reagan, nos anos 80, o rendimento do capital voltou a crescer bem acima do ritmo de crescimento da economia. No século XXI, com a queda da curva demográfica, o crescimento deverá ficar em torno de 1,5% ao ano, enquanto o rendimento do capital manterá ou superará a taxa anual de 4 ou 5%. Resultado automático: uma concentração do capital comparável à da Belle Époque. Caminhamos, nos próximos anos, se nada mudar, para uma distribuição extremamente desigual na qual o 1% mais rico possuirá 70% da riqueza (no momento, segundo Piketty, em escala mundial o 1% possui 50% do capital, e o que ele chama de “as classes populares”, os 50% mais pobres, não possuem praticamente nada). Será muito difícil a democracia sobreviver a uma desigualdade tão extrema.

Piketty, ao contrário do que muitos afirmam (obviamente sem terem lido o livro), não é marxista nem neomarxista, defende o capitalismo e a economia de mercado, e não vê alternativa à globalização da economia. Mas ele aponta para os riscos que a desigualdade crescente acarretará: tensão social, estados mais repressivos, e forças protecionistas (que ele chama de “recuos nacionais”) levando países e regiões a tentarem se isolar da economia global. Ele não chega a especular sobre a possibilidade de novas guerras mundiais, como a de 1918, que resultou em parte da extrema desigualdade da Belle Époque. Mas insiste na urgência de soluções, para obter o “controle do capitalismo pela democracia”.

Uma das saídas, que ele mesmo considera utópica, seria um imposto global sobre o capital, da ordem de 1 ou 2%, que resultaria de uma coordenação entre todos os países e instituições financeiras, pressupondo o fim dos paraísos fiscais. Seria uma forma de reduzir a taxa de rendimento do capital, para que fique mais próxima da taxa de crescimento da economia. Outra ideia é a volta do imposto de renda progressivo de caráter confiscatório (alíquota de 80% para as grandes fortunas) que esteve em vigor nos Estados Unidos entre as décadas de 30 e 80, e não freiou o alto crescimento da época.

Piketty não é dogmático quanto a essas propostas, que ele lança apenas para despertar o debate. Algo tem que ser feito, e essas medidas extremas (mas que, segundo ele, seriam eficazes) servem de balizamento para comparação com outras propostas de controle da acumulação excessiva do capital. O que ele aponta como indispensável é a transparência, no momento inexistente, dos dados sobre a riqueza: para estudar a faixa mais alta, a dos bilionários, só se dispõe dos dados altamente duvidosos da revista Forbes. O debate democrático sobre como enfrentar a crescente desigualdade exige o conhecimento exato da realidade da distribuição da riqueza.

Neste sentido, o Brasil está bastante atrasado. Piketty se diz otimista, e acredita que com a divulgação de suas ideias e a publicação do livro no Brasil, em setembro, a Receita Federal venha a entregar à equipe do WTID a série completa de dados sobre as faixas de renda e de patrimônio no Brasil. Segundo o economista Facundo Alvaredo, encarregado de coletar esses dados, a última publicação completa fornecida pela Receita Federal é de 1989. Há sete anos, Alvaredo solicita formalmente esses dados (anônimos, obviamente) , para que o Brasil possa ser intregrado ao WTID, e sequer obteve resposta. Mas Piketty acredita que isso vai mudar e sua equipe terá acesso às informações brasileiras. Sem o que, nada de definitivo se poderá afirmar sobre a desigualdade da riqueza no Brasil. O resultado das pesquisas domiciliares feitas pelo IBGE, e que mostram uma acentuada queda da desigualdade nos últimos anos, não incluem as faixas mais altas de renda e de patrimônio. Por isso, não servem para o levantamento mundial do WTID. Mais de 20 países, entre eles Argentina, Colômbia e Uruguai, estão no banco de dados porque seus governos liberam essas informações, que o Brasil não fornece. Sem transparência, não há como conhecer a extensão da desigualdade.

O livro de Piketty, muito bem traduzido para o inglês e publicado em abril, tornou-se um hit imediato. Já vendeu mais de 100 mil exemplares de capa dura e está no topo dos mais vendidos da Amazon.com. Piketty foi recebido pelo Secretário do Tesouro em Washington e pelo Conselho Econômico da Casa Branca, lotou auditórios em Nova York, discutindo suas ideias com economistas, e desencadeou uma verdadeira Pikettymania. Apareceu nas principais redes de TV e seu sotaque carregado foi ridicularizado (com simpatia) pelo comediante Steve Colbert. De uma hora para outra, os americanos descobriram, através de um francês, que sua desigualdade de riqueza alcançou níveis estratosféricos, bem mais altos que os da Europa, e cresce sem controle. Em represália, surgiu o que o prêmio Nobel de Economia Paul Krugman chama de “a indústria de negação da desigualdade”.

O jornal britânico Financial Times publicou com grande alarde uma análise do livro de Piketty acusando-o de errar nas contas. Segundo o jornal, pelo menos na Grã-Bretanha a desigualdade teria diminuído em vez de crescer nos últimos anos, o que, afirma, lança dúvidas sobre toda a obra do francês. O artigo teve repercussão enorme. Piketty publicou uma resposta detalhada, na qual mostra que, no caso britânico, o jornal comparou dados históricos obtidos por métodos diferentes – foi como comparar alhos e bugalhos. Mas o economista considera muito positivo esse debate. É exatamente o que ele quer, levantar uma discussão mundial sobre a desigualdade.

por Jorge Pontual

Um encontro com o homem mais procurado do mundo

qua, 04/06/14
por Equipe Milênio |

 

 

Em carne e osso, Edward Snowden parece pouco o rapaz sério que num quarto de hotel em Hong Kong se apresentava como o responsável pelos vazamentos de documentos ultrassecretos da NSA, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos – o único vídeo disponível, até então, em que se podia vê-lo e ouvi-lo. Parece ainda mais jovem que seus trinta anos. E tem um andar leve, um jeito de quem dorme sem preocupações.

Comentei isso com o Paulo Zero – repórter cinematográfico e meu marido-, quando ele deixou nosso quarto, depois de uma hora de conversa que serviu apenas para ele nos conhecer. A entrevista seria no dia seguinte, às 9 e meia da manhã. Estávamos na Rússia havia 24 horas, num estresse imenso por causa de todos os segredos que rondavam a entrevista, pela incerteza que é esperada quando se lida com uma pessoa procurada pelo serviço secreto mais poderoso do mundo.

Já muito tarde na noite anterior, quando fizemos o check-in no hotel Kempinski, onde fomos instruídos a nos hospedarmos, nem perguntei se havia, por acaso, um hóspede chamado Snowden. Sabia que ele jamais estaria registrado com o próprio nome. Tentamos dormir, com fuso de 7 horas atrapalhando. E, bem cedo, começamos a garantir a logística da entrevista – receber as câmeras e luzes de fornecedores russos que não sabiam falar uma palavra em inglês, e insistiam em querer ficar “vigiando” o equipamento. Nesse caso, não podíamos ter nenhum estranho na sala. E com muita linguagem corporal e a ajuda de uma tradutora que estava em São Paulo, conseguimos convencê-los a voltar só no fim do dia seguinte. Não sem antes ouvir, entre muitas palavras incompreensíveis trocadas entre eles, o nome Snowden. Eles deduziram ou estavam ironizando nosso comportamento de agentes secretos? Snowden é assunto na Rússia, não só porque mora lá – o país concedeu a ele asilo temporário, de um ano. O taxista que nos levou do aeroporto, falando um inglês de palavras truncadas, ao saber que eramos brasileiros disse: Brasil presidente americanos espiar. Ele sabia que a Dilma Rousseff havia sido espionada pela NSA. Não desconfiou que éramos os repórteres por trás da revelação feita com documentos vazados por Snowden.

Nove e trinta e dois, um toc-toc na porta. Ed – como ele gosta de ser chamado – chega com sua mochila, um sorriso largo. Em seguida, aparecem Glenn Greenwald e seu companheiro, David Miranda. Glenn é o jornalista americano radicado no Brasil que, junto com a documentarista Laura Poitras, recebeu os milhares de documentos das mãos de Snowden em Hong Kong. Glenn participou da primeira parte da entrevista e saiu para arrumar as malas – ele devia seguir para Frankfurt, onde faria palestra no mesmo dia. Laura, num determinado momento, se juntou a nós, acompanhou um pouco da entrevista e se foi. Na maior parte do tempo, fomos Paulo e eu, naquele quarto de hotel com vista para a Praça Vermelha, e o espião mais procurado do mundo. E ele estava à vontade. Ofereci café, ele aceitou água. Sem gás. Não bebe café, nem chá, nem refrigerante, nem álcool. Não fez restrição a nenhuma pergunta. Riu várias vezes – como quando contei do taxista – e algumas vezes parava para pensar nas palavras – nesse momento ele não pode se dar ao luxo de permitir duplo sentido no que diz. A única resposta que não deu, foi com bom humor: -Essa, é melhor não responder, quando perguntei sobre sair à rua disfarçado.

Assim, durante 3 horas gravamos esta entrevista. Quando acabou ele ainda foi para o corredor comigo, para gravarmos uma imagem. Se despediu de Glenn, David e Laura, que haviam voltado a se juntar a nós, e desapareceu pela saída dos fundos. Usou a escada, em vez do elevador. Não tenho ideia de para onde foi. Como nunca soube como ele apareceu no hotel.

por Sônia Bridi



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