A cara da reforma na Rússia
Dmitri Medvedev, o chefe de governo russo, fez a carreira sob a sombra de um quase candidato a Czar, Vladimir Putin. Talvez o fato de ter sido sempre o segundo explique seu jeito cordial, afável, direto. Medvedev não parece empenhado, como todo potentado russo, em ostentar sempre seu poder. Ele é baixinho, magrinho, sempre um pouco agitado e nada tem da majestade (natural ou treinada), da cara de mau (autêntica ou estudada) de quem ocupa lugar de destaque no Kremlin, essa palavra sinônimo de poder quase absoluto. Ao contrário: abordado informalmente na entrada do salão onde concedeu a entrevista ao Milênio, Medvedev se apressa em explicar o que está bebendo, numa xícara trazida por um garçom enquanto a tropa de assessores fica respeitosamente a distância.
- “Chá da China”, explica.
- “Chá chinês? Prá ficar acordado ou para relaxar?”, pergunto.
- “Pra ficar em forma, sete xícaras por dia”, responde Medvedev.
Medvedev é a cara do reformismo que a Rússia nunca levou ao limite, depois do flerte com o capitalismo selvagem do início da década dos noventa. Cordato e sensato, ele distanciou-se das mensagens nacionalistas e da fúria anti-ocidental desatada pelo seu criador e mentor, Putin. Essa conduta foi observada por Medvedev até mesmo ao comentar o caso Magnitsky, o advogado que foi espancado até a morte numa prisão russa por ter denunciado um esquema de corrupção praticado por dezenas altos funcionários públicos. O episódio acabou levando o Senado americano a aprovar o Ato Magnitsky, com uma série de retaliações aos personagens envolvidos no crime.
O chefe de governo russo foi igualmente contido ao falar da prisão de um conjunto punk feminino, que ficou famoso invadindo igrejas para tocar músicas com letras contra Putin. E foi até elogiado pela oposição brutalmente reprimida por Putin depois das últimas eleições — Medvedev havia prometido investigar fraudes, o que acabou não acontecendo.
Medvedev é bem humorado. Durante a entrevista, presta genuína atenção às perguntas. Ele “está ali”, como se costuma dizer na gíria jornalística – profissionais treinados para tratar com a imprensa, como Angela Merkel, por exemplo, mal disfarçam a sensação que, para ela, entrevistas são apenas um exercício formal, quase protocolar, ao visitar outro país.
E fez questão de parecer simpático. Caracterizar o Brasil como uma “Rússia tropical”, como ele fez, evidentemente abre caminho para trocadilhos. E um deles tratei de aproveitar ao final da entrevista, quando perguntei sobre Ostap Bender – um personagem literário que, para os russos, tem a mesma importância do personagem literário Macunaíma para os brasileiros. Ostap Bender é o Macunaíma russo: um esperto que tenta ficar rico sem trabalhar. Qualquer russo conhece Ostap Bender, o herói da novela “Doze Cadeiras” (no forro do assento de uma delas está escondida uma fortuna em jóias, e as cadeiras foram espalhadas pela Rússia) e sua idéia fixa: uma vez rico, é passear com calças impecavelmente vincadas por Copacabana.
Prá mim não há dúvidas de que Medvedev estava sendo sincero quando, na última pergunta da entrevista, diz que, se não fossem os assuntos chatos que sempre está tratando, iria passear de calças brancas por Copacabana. Basta lembrar quem é o chefe dele.
por William Waack