Passei uma tarde com um homem que passou a vida com Abraham Lincoln. Harold Holzer tinha 11 anos quando o professor escreveu e colocou vários nomes de líderes históricos num chapéu. Cada aluno tirava um papel. Holzer tirou Lincoln. Tema de redação. Cinquenta anos depois, está no 44º livro, como autor ou editor. Mais de 500 ensaios e milhares de consultorias. Desde 2009, no bicentenário de Lincoln, ele vive num interminável circuito “lincolniano” de palestras e entrevistas.
Holzer foi consultor do filme Lincoln, de Steven Spielberg, sério candidato a Oscar, que estreará no Brasil nos próximos dias. Mais uma baforada na fogueira cultural do presidente assassinado em 1865, numa sexta-feira santa, pouco depois de ser reeleito para o segundo mandato e cinco dias depois do fim da Guerra Civil americana.
Lincoln, o presidente dos presidentes, é uma fornalha no mundo editorial. O nome dele no título vende mais do que o de John Kennedy, o segundo presidente campeão de vendas desde a década de 60. Há 16 mil livros sobre Lincoln, 6 mil biografias. George Washington, pai da pátria, mereceu 3 mil biografias. Segundão. Só no ano do bicentenário foram publicadas 249 biografias de Lincoln e Harold Holzer, que era o coordenador de eventos literários, achou que a fogueira dele viraria um braseirinho. O trabalho mais monumental, publicado em 2009, foi a antologia de mil páginas editada por Holzer com 110 textos de 95 autores. Até Karl Marx tinha opinião sobre Lincoln. Falou bem do capitalista republicano e democrata.
Mas o fogo Lincoln não diminuiu, contou Holzer. Uma das biografias, Killing Lincoln, de Bill O’Reilly, apresentador da rede Fox, no ano passado vendeu 2 milhões de exemplares. O livro de Doris Kerns Goodwill, Team Of Rivals, que serviu de base para o roteiro (do filme Lincoln) de Tony Kushner, foi lançado em 2005, vendeu 1,5 milhão de exemplares. Quando o filme foi lançado, o livro voltou ao 5º lugar na lista dos best-sellers.
Holzer acha que o fenômeno Lincoln está, em parte, “ligado à Guerra Civil e estamos em pleno aniversário de 150 anos“. “Durou de 1861 a 1865. Há milhares de americanos fanáticos sobre o assunto. O tema vende e com o nome de Lincoln no título as vendas multiplicam.” Há uma foto impressionante dos livros sobre Lincoln feita no The Ford’s Theater For Education and Leadership, em Washington. Criaram uma coluna com de mais de um metro quadrado que sobe três andares com os livros sobre o presidente.
E quantos falam mal de Lincoln? “A minoria, mas algumas críticas são fortes e têm credibilidade. Lincoln suspendeu ‘habeas corpus’ e deu ordens que, num país obcecado com a Constituição, pareciam ditatoriais. Uma outra crítica relevante é referente à falta de planejamento sobre o que fazer com os escravos depois da libertação. A solução de Lincoln era recrutar todos os homens para o Exército, mas eram milhares, um número impossível de ser treinado, vestido e alimentado. Muitos lutaram e, contrariando as críticas de militares brancos, de que os negros tinham medo da guerra, lutaram com garra e morreram em percentagens mais altas que os brancos. Um número muito maior, inclusive mulheres e crianças, morreu de doenças e fome”.
Há Lincolns fortes e fracos, há o Lincoln gay do livro The Intimate World of Abraham Lincoln, de C. A. Tripp. Na época, condenado por muitos como um insulto, mas Holzer acha que é “uma declaração de amor, uma tese interessante, mas sem fundamentos sólidos”. Há o Lincoln preguiçoso, desorganizado e incompetente de William Herndon, sócio do presidente durante 17 anos no escritório de advocacia. “Foi baseado em depoimentos que Herndon colheu de centenas de pessoas que conheceram Lincoln e é levado a sério por alguns dos maiores especialistas no 16º presidente, entre eles Douglas Wilson e Rodney Davis”. Há o Lincoln do romance de Gore Vidal, “errático, com permanente prisão de ventre, egomaníaco, que gerou uma minissérie na televisão com enorme audiência”. “Eu discordo de quase tudo e tivemos brigas via imprensa e palestras, mas tudo isto só reforça o interesse por Lincoln”. Para Holzer, ótimo.
Há o Lincoln Obama. As semelhanças e conexões são fortes. Dois políticos de Illinois, não nascidos no Estado, com origens humildes e que chegaram a Presidência. Lincoln nasceu num mato, mudou para outro mato, perdeu a mãe cedo, tinha um pai que não acreditava em educação e, se não fosse pela madrasta, talvez nem aprendesse a ler. A educação formal dele foi quase nula, mas se educou à noite, à luz de vela. De dia, trabalhava com o pai no campo. Detestava. A única experiência como politico, antes de chegar à Presidência, foi como deputado estadual. Qual era a força dentro dele que despertou e impulsionou esta determinação que o levou à Presidência? Vários presidentes saíram do nada, como ele, mas quantos transformaram o país?
Lincoln e Obama assumiram o poder com um país profundamente dividido. No país de Obama, não há possibilidade de guerra civil, diz Holzer, mas “a imobilidade política é pior do que no Congresso de Lincoln, onde houve brigas físicas, com sangue e ossos quebrados entre deputados no plenário, mas conseguiam legislar. Hoje não”. Há também grandes diferenças. A excelente educação universitária de Obama é uma delas. A outra é óbvia. A cor. Holzer acha que Obama marca a complementação do “trabalho não terminado” da democracia americana, à qual Lincoln se referiu no discurso de Gettysburg, cemitério e cenário de uma das batalhas mais brutais e decisivas da Guerra Civil.
O filme de Spielberg joga luz num período essencial na vida de Lincoln, os cinco meses que marcam a luta pela passagem, na Câmara, da emenda que libertou os escravos e o fim da Guerra Civil. Holzer: “O filme ilumina, mas não revela quem foi o verdadeiro Lincoln. Os 16 mil livros, inclusive os meus 44, as 6 mil biografias e os filmes vão gerar outros livros e outros filmes, vão aumentar ou diminuir o presidente, mas não vão desvendar o homem”.
por Lucas Mendes